segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Opinião do dia: Luiz Werneck Vianna

Na cena política aberta à nossa frente não há como negar que o longo ciclo da modernização conservadora chegou ao fim nesta triste sucessão presidencial. O passado não mais ilumina, como diria um grande autor, e não se pode ser mais fiel a ele. Reflexividade não é um conceito da moda entre cientistas sociais, mas uma exigência do tempo presente que requer de cada um de nós a escolha do caminho a seguir quando nos devemos soltar do que nos aparecia como destino de um país do Terceiro Mundo e dele prisioneiros. Sem os intelectuais não faremos isso.
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Sociólogo, PUC-Rio. ‘A hora dos intelectuais’, O Estado de S. Paulo, 4/11/2018.

Fernando Gabeira: Crônicas do ensaio geral

- O Globo

A fusão de Meio Ambiente e Agricultura suscitaria acusações do tipo raposa tomando conta do galinheiro

Numa antiga peça de Harold Pinter, dois andarilhos entram, de repente, na cozinha de um grande restaurante. Subitamente, começam a ouvir pedidos de pratos sofisticados. Aturdidos, olham para o embornal e percebem que há em suas modestas provisões um pão, uma fruta talvez.

Cada vez que vejo uma equipe nova assumir o governo, lembro-me dos andarilhos aturdidos por sofisticadas demandas a que não podem atender. Quando Bolsonaro apareceu diante da câmera, ao vencer as eleições, tinha apenas uma bandeira do Brasil, levemente torta, colada com durex na parede. No passado, candidatos contratavam hotéis, posavam diante de grandes painéis, e suas imagens eram transmitidas em alta definição.

Isso só aumentou em mim a suspeita de que, apesar de sua força descentralizada na sociedade, a campanha de Bolsonaro era modesta e artesanal. Basta lembrar que, nos últimos dias, todos os principais atores do grupo foram silenciados. Compreendo que isso era para não causar polêmicas. Teoricamente, nos últimos dias, todos falam porque o o objetivo central é persuadir.

Bolsonaro tem noção dos limites. Num culto religioso, ele afirmou que pode não estar bem preparado, mas Deus capacita os escolhidos. Acho que a fé ajuda, suscitando energia, resiliência e até compaixão. Nesse sentido, a fé ilumina.

Demétrio Magnoli: Você disse ‘Dois Brasis’?

- O Globo

O mapa eleitoral do segundo turno reproduz, em cores ainda mais nítidas, a polaridade regional de 2014. Bolsonaro triunfou, quase sempre por largas margens, no Centro-Sul e nas suas extensões amazônicas. O PT venceu, avassaladoramente, no Nordeste e na Amazônia “tradicional”. A fronteira geográfica do voto foi traçada em 2006, na reeleição de Lula, e sedimentou-se nas duas eleições presidenciais seguintes. A velha tese dos “Dois Brasis”, enunciada pelo sociólogo francês Jacques Lambert em 1957, emerge como profecia oracular. Desconfio, porém, que o brilho intenso do mapa regional binário sinalize a sua explosão. A cartografia política de 2018 funciona como diagnóstico, não como prognóstico.

São raros os países, como EUA e Itália, que exibem persistentes padrões regionais de voto. O Brasil não teve nada parecido com isso até o ciclo de poder lulopetista. Lula triunfou no país todo (menos em Alagoas) em 2002. Depois, porém, o lulismo perdeu a maior parte do eleitorado do Centro-Sul, enquanto ampliava sua hegemonia no Nordeste. A derrota de Haddad marcou a conclusão do percurso, com a transferência de Minas Gerais e do Rio de Janeiro para o campo antipetista. De certo modo, é Lambert que venceu as eleições de 2018.

A tese binária da oposição entre um “Brasil moderno” e um “Brasil arcaico” está refletida no mapa do voto por município. Nele, aparecem tanto os bastiões remanescentes de voto petista em bolsões deprimidos do Centro-Sul (sul do RS, norte de MG) quanto as veredas do voto antipetista nos eixos de expansão da fronteira agrícola na Amazônia (sul do PA, RO, AC). O gráfico de dispersão do voto segundo o IDH confirma a natureza da polaridade expressa no mapa: Bolsonaro venceu em 97% dos municípios de maior renda; Haddad, em 98% do municípios de renda menor. A correlação voto/ renda é tão brutal quanto a voto/região —e a primeira explica a segunda.

Cacá Diegues: Uns choques necessários

- O Globo

Na democracia, a maioria escolhe os que comandarão a sociedade, mas também os que vão fazer oposição

O Partido dos Trabalhadores conseguiu produzir, em crescendo, uma autoimagem negativa para seus aliados naturais e eleitores de sempre. A alta auto-concentração de seus projetos, a ausência de autocrítica, o culto à personalidade sem limites, o fracasso espetacular do governo Dilma e a arrogância apesar de tudo fizeram do PT um alvo prioritário de eleitores irritados. Os inúmeros erros desde o mensalão, negados sem explicação conveniente e com intransigência autoritária, acabaram por contagiar tudo o que vinha dali. Inclusive a cândida candidatura de Fernando Haddad.

Em grande parte do voto majoritário que elegeu o novo presidente, deve estar a rejeição a um partido político que, apesar de anos no poder, quase nunca realizou o prometido, enquanto anunciava sua excelência como representante das classes populares e exibia uma velha liderança que, ao contrário do que já fora, se tornara populista, personalista e cheia de ambiguidades. O PT se tornaria assim eleitor involuntário de um candidato conservador que se dispunha a acabar, na marra, com a corrupção no serviço público, principal razão da miséria brasileira da qual o próprio Partido dos Trabalhadores fazia parte.

Mesmo que não concordemos com as ideias e com o programa dos vencedores, não podemos esquecer que eles foram eleitos pelo voto popular, uma maioria indiscutível do país. Mas, numa democracia, não é por ser maioria que eles se tornam inquestionáveis. Temos o direito de discordar, desejar para o Brasil um outro futuro que não aquele que anunciam. Numa democracia, a maioria escolhe os que vão comandar a sociedade, mas também aqueles que vão lhes fazer oposição, mantendo sempre acesa a possibilidade de a minoria estar eventualmente com a razão. É para isso que existem os outros, os que não pensam como eles, que não são iguais a eles.

Marcus André Melo: Como viemos até aqui

- Folha de S. Paulo

As questões redistributivas no país não foram eclipsadas pelas identitárias

O que Brexit, Trump, Erdogan, Duterte e Bolsonaro têm em comum? Muito pouco.

Analistas têm subsumido fenômenos inteiramente heterogêneos em uma onda conservadora, conceito de escassa tração analítica, a não ser quando aplicado a domínios restritos.

Trump e o Brexit refletem, de fato, um movimento comum de “globalization losers” (perdedores da globalização).

Se na Europa e nos EUA a globalização produziu deslocamentos sociais —declínio e crise de antigas regiões industriais e violento recrudescimento da imigração para países ricos—, engendrando crise de representação política e populismo, no Brasil e na América Latina, o efeito foi outro.

A globalização e a ascensão da China provocaram entre nós um boom de commodities que teve efeito avassalador. Some-se a isso a descoberta do pré-sal, que magnificou o efeito “maldição de recursos”.

No plano da representação política, as questões redistributivas não foram eclipsadas pelas identitárias. Conferir centralidade à guerra cultural (forte nas das democracias avançadas) no caso brasileiro constitui grave equívoco interpretativo.

Celso Rocha de Barros: E aí, Moro? Qual vai ser?

- Folha de S. Paulo

Há bons testes de sua convicção democrática que podem ser aplicados já hoje

A decisão de Sergio Moro de aceitar o Ministério da Justiça no governo do sujeito que só ganhou porque o Lula foi preso é, enfim, leiam essa frase de novo, e levem em conta que ela saiu nos principais jornais do mundo.

Moro no governo Bolsonaro trinca a imagem da Lava Jato e dificulta a vida de quem defendia a operação diante da esquerda.

Mas isso tudo é discussão pré-Bolsonaro.

Até o dia 28, estávamos preocupados com instituições, com partidos, com programas, com nossa imagem externa. Agora todos os cenários otimistas já sumiram no retrovisor, e sobrou a tarefa de conter isso aí até a eleição de 2022.

Há quem diga que Moro ministro poderia moderar Bolsonaro, e conter a escalada autoritária que o novo presidente evidentemente pretende iniciar em breve. Se for verdade, é o que importa em nossa situação atual, que é muito ruim.

Antes de discutirmos é provável que Moro modere Bolsonaro, é bom dizer que é possível.

Moro é mais popular que Bolsonaro, e Bolsonaro foi eleito surfando a onda da Lava Jato. Custaria muito, muito caro para Bolsonaro demitir Moro. O ex-juiz tem ampla margem para contrariar, frustrar ou ofender Bolsonaro antes de ser demitido.

Mas Moro quer controlar Bolsonaro?

Eugênio Bucci: Macarthismo e mau-caratismo

- Folha de S. Paulo

Brasil transita em direção a uma cultura da violência

O senador americano Joseph McCarthy (1908-1957), republicano, virou o ícone da sanha anticomunista que tomou conta dos Estados Unidos entre os anos 40 e 50. A ordem democrática não foi oficialmente quebrada, mas quase.

O "macarthismo" foi uma santa inquisição sem batina, perseguindo fanaticamente escritores, roteiristas, atores e jornalistas, sem prova. Queimou reputações e estripou a honra de suas vítimas, numa campanha trágica e ridícula, de uma só vez. Não tinha justificativa, mas tinha um contexto: a Guerra Fria.

O planeta se dividira entre comunismo e capitalismo. O Tio Sam temia que a União Soviética infiltrasse na "América" seus agentes malignos disfarçados de pessoas aparentemente "normais", como na série de televisão "Os Invasores". Era preciso incinerá-los. O cidadão pacato podia ser o inimigo "disfarçado".

Na ditadura militar brasileira, os governantes, convencidos de que a política era a continuação da guerra, destroçaram famílias, vidas e esperanças sob o pretexto imundo de combater o "inimigo interno", que estaria a serviço do "inimigo externo". O resultado foi uma farsa grotesca e sanguinária que, além de não ter justificativa, não tinha nem contexto.

Agora, com a vitória de Jair Bolsonaro, ganha estridência no Brasil uma fúria anticomunista de cunho patrioteiro, religioso, moralista --e anacrônico. Seus agentes gritam em defesa dos costumes da "família". Não admitem que adolescentes vejam beijos homoafetivos em livros ou na televisão, embora declarem não ter "nada contra" a "opção" (outro sem sentido) homossexual. Invocam o nome de Deus como cruzados. Consideram imorais as novelas da Globo.

Vinicius Mota: Quem não teve Blair terá Thatcher

- Folha de S. Paulo

Quando a centro-esquerda não compreende o mundo, arrisca-se a ter Paulo Guedes como resposta

A democratização brasileira, observada pelas lentes da economia política, obedeceu a ciclos relativamente identificáveis. Coalizões que favoreceram soluções caseiras e autonomistas se alternaram com outras mais conectadas aos consensos técnicos e acadêmicos globais.

As transições entre um movimento e outro, curiosamente, sempre ocorreram dentro da mesma gestão. Os desastres de seguidos planos econômicos voluntaristas levaram o presidente José Sarney a alterar a linha de ação no final do seu mandato.

Com o breve e traumático interregno da passagem de Zélia Cardoso de Mello, no início da administração Collor, a conexão com o que o conhecimento produzia de mais consensual no planeta continuou prevalente até meados da gestão Lula.

Em meio ao frenesi da descoberta de petróleo abundante nas profundezas do leito marítimo —e às vultosas intervenções dos países ricos e da China para evitar uma depressão após a debacle financeira de 2008—, a orientação aqui mudou outra vez.

Leandro Colon: A Casa Civil de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Pasta é bem maior que biografia de Onyx Lorenzoni. Deputado terá de surpreender no cargo

O governo Bolsonaro começa a atuar oficialmente nesta segunda-feira (5) em Brasília com a nomeação do deputado Onyx Lorenzoni como ministro extraordinário para coordenar o processo de transição.

Filiado ao DEM do RS, o futuro chefe da Casa Civil é figura conhecida no Congresso há mais de uma década. Ganhou visibilidade inicial em 2005, logo no primeiro mandato, quando dividiu com os então deputados ACM Neto e Eduardo Paes o palanque da gritaria oposicionista da CPI dos Correios, que investigou o mensalão no governo Lula.

“O que diferencia as pessoas é se elas são corruptas ou não são corruptas, se são éticas ou não são éticas. Se têm padrões morais sérios ou se não têm padrões morais”, disse Onyx em sessão daquela comissão.

Doze anos depois, ele admitiu ter recebido R$ 100 mil em caixa dois da JBS na campanha de 2014 (a empresa, em delação, mencionou R$ 200 mil).

Mesmo tendo liderado a bancada do partido por um período, Onyx nunca foi um personagem do primeiro escalão de comando do DEM. Alijado do pelotão de frente, construiu o próprio caminho na Câmara.

Cláudio Gonçalves Couto: O papel do STF no bolsonarismo de coalizão

- Valor Econômico

Proteção do STF às universidades pode ser um prenúncio

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, sinaliza desde a campanha para um novo modo de construir maiorias legislativas. Em vez de seguir o protocolo de todos os governos brasileiros no período pós-transição democrática, não construiria coalizões partidárias no Congresso. No lugar delas, optaria por negociações transversais, alicerçadas sobre as bancadas temáticas organizadas no Legislativo - no caso dele, notadamente, a ruralista, a evangélica e a da segurança pública.

Na avaliação do presidente eleito, tais apoios seriam suficientes para aprovar medidas caras aos membros dessas bancadas, como a flexibilização da legislação ambiental e a criminalização do Movimento Sem-Terra, a implantação de uma agenda de "moral de bons costumes" que passe pelo controle estrito do ensino e o endurecimento no tratamento com a criminalidade. Como tais bancadas se mostram favoráveis aos itens dessas pautas, o apoio já estaria em boa medida assegurado.

Claro que além dessas questões, há também outras, de grande importância, que passam em boa medida ao largo dessas clivagens particulares e, consequentemente, requerem costura de tipo distinto. A mais notável delas é a reforma previdenciária, seja qual for o formato que assumir. Os percalços do governo Temer no encaminhamento dessa agenda, antes ainda que fosse colhido pelo tsunami do escândalo da JBS, mostram como é difícil aprovar temas espinhosos mesmo a um governo hábil para lidar com o Congresso.

Angela Bittencourt: Em 3 dias, 5 ministros e pressões setoriais

- Valor Econômico

EWZ iShares Brazil ETF: concentração de apostas na queda

Jair Bolsonaro, presidente eleito do Brasil, é um homem de espírito tripartite. Na semana passada, a primeira de trabalho após a vitória no 2º turno com 58 milhões de votos, cometeu algumas proezas. Em três dias nomeou cinco ministros para o seu gabinete que deve ter no máximo 17. Nele já estão representados os Três Poderes da República e um ativo "núcleo" para tomada de decisões rápidas para a transição e o andamento do programa de governo que, naturalmente, passará por ajustes.

Ao aceitar o convite de Jair Bolsonaro para ocupar o futuro Ministério da Justiça e Segurança Pública com a intenção de seguir uma cartilha implacável contra a corrupção, o juiz Sergio Moro deixa 22 anos de magistratura e alinha-se ao presidente eleito, capitão reformado do Exército, e ao vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, hoje na reserva. Preenchem os demais cargos do primeiro escalão, economistas, engenheiros, advogados, ao menos um deputado e o astronauta - também engenheiro - que comandará o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Indicação política, até agora, nenhuma.

Gustavo Loyola: E agora, Jair?

- Valor Econômico

Com a visão ultra liberal de Guedes, seria de se esperar uma agenda mais agressiva de privatizações e concessões

Durante a campanha, ao escolher Paulo Guedes para seu principal assessor econômico, Jair Bolsonaro aparentemente abraçou uma agenda liberal distante, portanto, da orientação que prevaleceu durante os governos petistas. Nas próximas semanas, perceberemos com maior nitidez os contornos do que será a política econômica nos quatro anos de seu mandato presidencial. Caso prevaleça a visão liberal de Guedes, o Brasil tem uma janela de oportunidade para a realização das reformas necessárias para melhorar o ambiente de negócios, acelerar o crescimento da produtividade e elevar os investimentos.

O impeachment de Dilma significou uma guinada importante na política econômica prevalecente nos governos petistas. Temer conseguiu formar uma excelente equipe econômica e foi possível colecionar muitos avanços durante sua gestão. Infelizmente, dificuldades políticas trazidas pelo envolvimento do presidente em denúncias graves de corrupção prejudicaram o aprofundamento da agenda de reformas, principalmente no que diz respeito à Previdência Social.

Desse modo, sob o ângulo estrito da política econômica, a administração de Bolsonaro se caracterizará mais pela continuidade do que pela ruptura. A rigor, considerando a visão ultra liberal de Guedes, seria de se esperar uma agenda mais agressiva de privatizações e concessões, assim como de reformas microeconômicas, sem deixar de lado a manutenção da responsabilidade fiscal e monetária e a realização da reforma previdenciária.

Cida Damasco: Primeiros sinais

- O Estado de S.Paulo

Ministérios, Previdência, impostos. Nova equipe busca discurso comum

O presidente eleito Jair Bolsonaro entra na sua segunda semana pós-segundo turno ainda comemorando o golaço de Sergio Moro no superministério da Justiça. Mas tem pela frente a tarefa de desfazer alguns desacertos no seu programa de governo, principalmente na área econômica. Ninguém espera que um presidente recém-eleito tenha um projeto de governo pronto e acabado.

Para preencher os vazios, com alterações ou contribuições de parceiros, servem inclusive os dois meses de transição até a chegada ao Planalto. Ainda mais quando se trata de uma espetacular virada no quadro político, como a protagonizada por Bolsonaro, que abriu espaço para novos personagens não só no Planalto, como nos governos estaduais e no próprio

Congresso. Mesmo assim, não convém deixar que mensagens transmitidas ao País nesse período sejam contraditórias, até porque se o quadro político é novo, o econômico está aí há um bom tempo à vista de todos, com problemas mais do que identificados exigindo soluções certeiras.

Pelo menos duas grandes fontes de discordâncias e/ou indefinições dentro do time de Bolsonaro chamam a atenção nesse primeiro momento. A primeira diz respeito ao enxugamento de ministérios, de 29 para praticamente a metade. Promessa recorrente de vários outros governantes, a fusão de ministérios, além de não trazer o corte de gastos imaginado, sempre acaba atropelada pela necessidade de fazer valer o “presidencialismo de coalização”, que na prática resulta no tal loteamento de cargos. Porém, mesmo que Bolsonaro consiga de fato se descolar dessa lógica na chegada ao Planalto, também impressionam critérios para definir o perfil de algumas pastas que vão vingar depois do redesenho.

Eleição testa pesos e contrapesos da democracia: Editorial | O Globo

Mecanismo de equilíbrio do regime demonstra seu funcionamento no pleito

As eleições presidenciais de 1989 foram acompanhadas de alguma tensão. Era a primeira pelo voto direto depois dos 21 anos de ditadura militar. A campanha do candidato Fernando Collor de Mello tinha alguma agressividade e havia o ineditismo do enfrentamento aberto, democrático, entre a esquerda, por meio de Lula, e um representante da direita. Antecedeu, de certa forma, 2018.

O clima de tensão deste pleito, no entanto, foi o mais denso entre as eleições diretas depois da redemocratização. Formou-se um cenário perfeito para o aguçamento dos choques entre grupos políticos. Com o risco de violência, que afinal ocorreu no atentado contra o ainda candidato Jair Bolsonaro, em Juiz de Fora.

A atmosfera ficou pesada durante meses, devido ao julgamento de Lula, na segunda instância, em Porto Alegre. A defesa havia recorrido da condenação do ex-presidente em primeiro grau, em Curitiba, pelo juiz Sergio Moro, no processo do tríplex do Guarujá. Ele foi acusado dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Vaivém ambiental: Editorial | Folha de S. Paulo

Bolsonaro indica recuo na intenção de anexar pasta do Meio Ambiente à da Agricultura; o que importa é conciliar melhora da produção rural e preservação

Na reforma administrativa planejada pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), a drástica redução prometida do número de ministérios representa, de modo simbólico, a intenção de enxugar a máquina de Estado e não subordiná-la a barganhas partidárias ou ativismos ideológicos.

Se tais objetivos são fáceis de vender numa campanha eleitoral, a execução concreta se mostra menos simples. O exemplo mais claro, até aqui, é o da eventual fusão das pastas da Agricultura e do Meio Ambiente —que tem gerado um vaivém de declarações do eleito, de auxiliares e aliados.

Na mais recente, Bolsonaro considerou que, “pelo que tudo indica”, as duas áreas permanecerão geridas por órgãos próprios no primeiro escalão federal. Trata-se de uma providência mais sensata, em tese ao menos, que a reivindicação de hegemonia por parte da banda mais atrasada do agronegócio.

Cada vez mais urgente: Editorial | O Estado de S. Paulo

O esgotamento do prazo para a criação, pela União, de uma linha de crédito especial para governos estaduais pagarem precatórios, sem que nenhuma medida tenha sido tomada pelas autoridades federais, torna ainda mais evidente a gravidade da crise financeira dos Estados e a urgência com que a questão precisa ser resolvida. As atuais administrações estaduais foram beneficiadas com o alongamento da dívida com a União, tiveram autorização para contratação de empréstimos com o aval do governo federal, ganharam mais prazo para pagar os precatórios judiciais, mas, em sua grande maioria, continuam em busca de socorro financeiro e não têm capacidade para cumprir o teto de gastos que acertaram quando tiveram seus compromissos financeiros renegociados. A falta de regulamentação de uma linha de crédito estimada em R$ 100 bilhões e que deveria ter sido criada pela União até o dia 30 de junho passado é um problema adicional às dificuldades que os Estados já enfrentam.

A Emenda Constitucional n.º 99, aprovada no fim do ano passado, estendeu de 2020 para 2024 o prazo para os Estados e municípios pagarem os precatórios, que são suas dívidas com pessoas físicas e jurídicas reconhecidas por sentença definitiva da Justiça. Os precatórios se referem a salários, pensões, aposentadorias e indenizações por morte ou invalidez (são os chamados precatórios de natureza alimentar) ou decorrem de ações de outros tipos, como as dívidas referentes a desapropriações. Em muitos casos, por isso, são valores devidos a pessoas necessitadas ou que tiveram seus imóveis desapropriados para a execução de obras públicas.

Cenário melhora após eleição, mas Copom mantém cautela: Editorial | Valor Econômico

Na sua primeira reunião após a eleição do deputado Jair Bolsonaro (PSL) para a presidência da República, os membros do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central concluíram que os riscos para o cumprimento das metas de inflação diminuíram, mas ainda não o suficiente para baixar a guarda sobre uma eventual alta de juros nas suas próximas reuniões.

Faz sentido uma dose de cautela. A equipe de Bolsonaro, chefiada pelo economista Paulo Guedes, demonstrou um compromisso mais forte do que os adversários com o ajuste fiscal e reformas que ampliam a produtividade da economia. Saíram derrotadas plataformas eleitorais que propunham retrocessos, como a extinção do teto de gastos públicos e propostas de equacionar o déficit público com medidas de expansão fiscal - ou seja, com mais gastos.

Resta saber, porém, se o novo governo vai mesmo entregar o prometido. Isso depende da capacidade das áreas técnicas formularem propostas exequíveis. Uma dúvida recorrente nos mercados é se o governo Bolsonaro conseguirá mobilizar uma base parlamentar para apoiar medidas impopulares, sobretudo uma ampla reforma da Previdência Social.

Apesar de um nível ainda grande de incertezas, os riscos sem dúvidas diminuíram. Isso já se reflete nas projeções de inflação apresentadas pelo Copom em comunicado de reunião da semana passada, que manteve os juros básicos da economia em 6,5% ao ano pela quinta vez.

Oposição tenta se reinventar para travar pauta conservadora

Com 150 deputados eleitos, partidos de esquerda buscam pautas comuns, mas já há rachaduras entre eles

Angela Boldrini | Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Na tarde de quarta (31), quem passasse pelo corredor das comissões da Câmara dos Deputados ouvia gritos à medida que se aproximava do plenário oito, local marcado para a votação do projeto Escola Sem Partido.

“Abaixo a lei da mordaça!”, gritavam manifestantes contrários ao texto, com cartazes ligados a movimentos como UNE e CUT.

Enquanto isso, no plenário da Casa, deputados da oposição se apressavam em marcar presença para atingir o mínimo de 257 deputados para abrir a ordem do dia, a sessão de votação que derruba todos os outros trabalhos na Câmara.

A combinação resultou no adiamento da reunião que analisaria o relatório favorável à proposta, uma bandeira da bancada evangélica que tem o apoio do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL).

A estratégia demonstra como deve ser o processo de atuação da oposição no Legislativo. Com cerca de 150 deputados, apostará em táticas de obstrução, aliadas a protestos de movimentos sociais, para tentar travar a pauta conservadora.

Segundo o líder do PT, Paulo Pimenta (RS), a decisão de como agir é tomada dia a dia. “No caso do Escola Sem Partido, era importante dar presença para fazer cair a sessão da comissão. Em outros, evitamos dar quorum”, diz.

O chamado “kit obstrução” é amparado pelo regimento da Câmara e consiste em manobras para segurar votações. Os deputados podem, por exemplo, deixar de registrar presença para evitar que se atinja o número mínimo necessário para se iniciar uma sessão.

PSDB junta os 'cacos' depois da eleição

Fernando Taquari | Valor Econômico

SÃO PAULO - A eleição de 2018 terminou com um gosto amargo para o PSDB e acentuou as incertezas que cercam o partido. Não há até o momento nenhuma reunião marcada para fazer um balanço dos resultados nas urnas e projetar o futuro. Por ora, tucanos conversam nos bastidores. Há um consenso sobre a necessidade de uma autocrítica. Mas muitos divergem em relação aos rumos daqui para frente.

As diferenças colocam em lados opostos os grupos do ex-governador Geraldo Alckmin, derrotado na eleição presidencial, e do futuro ocupante do Palácio dos Bandeirantes, o ex-prefeito João Doria. Os doristas defendem um alinhamento do PSDB com o governo eleito de Jair Bolsonaro (PSL) e pedem passagem nos cargos da executiva nacional. Essa postura desagrada integrantes históricos e aliados de Alckmin.

Os tucanos fizeram neste ano a menor bancada de sua história na Câmara dos Deputados (29) e terão o menor número de governadores (3) desde 1990. Com 4,76% dos votos válidos, Alckmin ainda registrou a mais baixa votação de um tucano numa sucessão presidencial. O saldo poderia ter sido pior não fossem as vitórias no Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e, sobretudo, em São Paulo, onde o PSDB conseguiu, por uma estreita vantagem, manter uma hegemonia no Estado que já dura 24 anos.

Raquel Tavares: As rosas não falam (Cartola)

Cecília Meirelles: A arte de ser feliz

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.
Ás vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.
Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

domingo, 4 de novembro de 2018

Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica

- O Estado de S.Paulo

Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.

Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.

Luiz Werneck Vianna: A hora dos intelectuais

- O Estado de S.Paulo

Caem os véus e já se divisa a situação de risco a que seremos submetidos

O martelo está batido. Começamos uma nova história sem uma ideia na cabeça, condenados em meio às trevas a tatear em busca de um caminho para uma sociedade que se perdeu de si mesma, do seu passado e de suas melhores tradições, tanto nas elites como nos setores subalternos. É hora de recolher os cacos, identificar as raízes dos nossos erros, da autocrítica impiedosa quanto aos rumos equívocos em que nos deixamos enredar e ameaçam pôr sob risco nossas conquistas democráticas. Trata-se de uma derrota política levada a efeito no campo do processo eleitoral, terreno que sempre identificamos como propício ao avanço dos temas sociais e das lutas pela igualdade, e cuja expressão quantitativa ainda mais denuncia a sua gravidade e o alcance de suas repercussões.

Mas com o erro também se aprende e não são poucas as lições que essa miserável sucessão presidencial deixa como legado para os que recusam que o veneno do que há de mais anacrônico no passado volte a assumir as rédeas do nosso futuro, como nesse retorno patético ao anticomunismo do presidente eleito, que, na verdade, visa a atingir a nossa Constituição. Com efeito, fora os artifícios de mão usados na campanha vitoriosa de Bolsonaro, como o desse cediço anticomunismo, analisados os resultados eleitorais, principalmente em alguns dos Estados da Federação, o que há de comum neles é o argumento utilitarista, fundamento filosófico do neoliberalismo. No cerne do texto constitucional, entretanto, vige o princípio da solidariedade, antípoda desde E. Durkheim, das concepções utilitaristas, alvo oculto das campanhas bolsonaristas em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, acompanhando a orientação da candidatura presidencial e do seu principal consultor econômico de explícita adesão ao ideário do neoliberalismo.

O princípio da solidariedade e o centro político guardam relações antigas no processo de modernização conservadora do País, pois se iniciam com Vargas na legislação social sob a inspiração do corporativista Oliveira Vianna, embora sob o registro restritivo do autoritarismo e da tutela dos trabalhadores. Depurada dessa chave a Constituição, que é obra do centro político, a solidariedade foi elevada a princípio fundador da República, com o mesmo estatuto dos princípios da liberdade e da igualdade, conferindo caráter público à previdência social, que ora muitos dos atuais eleitos querem deslocar para a dimensão do mercado.

Vera Magalhães: O mundo de Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Eleito pauta declarações sobre política externa e comércio exterior pela ideologia

Para vencer uma eleição contra o PT diante do desgaste do partido, provocado por muitos anos de recessão e um escândalo de corrupção vasto, a divisão de tudo segundo conceitos rudimentares de esquerda e direita se mostrou eficiente.

Ao pintar o Brasil indistintamente de verde oliva e vermelho, Jair Bolsonaro e seus apoiadores conseguiram arregimentar um exército fanático e acrítico nas ruas e nas redes sociais.

Todos os principais temas, da política à economia, passando por educação, cultura, saúde e segurança pública foram submetidos a esta clivagem, que deverá pautar nos próximos quatro anos as discussões no Congresso, as intervenções do Supremo Tribunal Federal no debate público – vide o aperitivo dado nesta semana com o debate sobre liberdade de expressão nas universidades – e, principalmente, a gritaria no ambiente público já ensurdecedor.

Mas será que essa simplificação grosseira serve para amparar a política externa brasileira, sua inserção diplomática no mundo e, sobretudo, sua atuação comercial? Dificilmente. Porque o Brasil não é os EUA e Bolsonaro terá de descobrir que não é Donald Trump.

Eliane Cantanhêde: “Pouco contato”?!

- O Estado de S.Paulo

Inteligente, preparado e falante, o vice Mourão ainda vai dar muita dor de cabeça

Passou suavemente, quase despercebida, a frase do presidente eleito, capitão reformado Jair Bolsonaro, sobre seu vice, general de quatro estrelas da reserva Hamilton Mourão, mas ela diz e projeta muito de um governo que nem começou. “Tenho pouco contato com ele”, disse Bolsonaro, com um ar de pouco caso, deixando uma pulga atrás da orelha de atentos e curiosos.

Mourão tem respeitável carreira no Exército, ocupou postos de destaque dentro e fora do País, inclusive o Comando Militar do Sul, foi bem em entrevistas às tevês (dizem que até melhor do que o próprio Bolsonaro) e acaba de passar muito bem no teste de inglês ao falar à BBC. Mas é dado a declarações polêmicas, às vezes chocantes.

Sua primeira vitória foi ultrapassar Janaína Paschoal, Marcos Pontes, Magno Malta, Luiz Philippe Orleans e Bragança na corrida pela vice. Entre professores, políticos, astronautas e príncipes, Bolsonaro ficou com um general gaúcho que surgiu no cenário político ainda na ativa, ao ser afastado da Secretaria de Economia e Finanças do Exército em 2017, não por coincidência, após defender intervenção militar.

Merval Pereira: Separação de Poderes

- O Globo

A separação dos poderes não é intrínseca à democracia, mas ao presidencialismo, criada na Constituição americana em 1789

O debate sobre a nomeação do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça com superpoderes no governo Bolsonaro levantou pontos relevantes sobre a relação entre os Poderes da República e o exercício da política para além do jogo partidário.

Moro sempre declarou que nunca faria carreira política, obviamente se referindo à política partidária. Mesmo porque já era um “agente político” na sua atuação como magistrado, de acordo com a definição da Controladoria-Geral da União (CGU): “agente político é aquele investido em seu cargo por meio de eleição, nomeação ou designação, cuja competência advém da própria Constituição, como os Chefes de Poder Executivo e membros do Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas, além de cargos de Diplomatas, Ministros de Estado e de Secretários nas Unidades da Federação, os quais não se sujeitam ao processo administrativo disciplinar”.

A separação dos poderes não é intrínseca à democracia, mas ao presidencialismo, criada na Constituição americana em 1789. Já existia na teoria, pela famosa obra de Montesquieu “O espírito das leis” e outras, e incipientemente na Inglaterra, à época uma monarquia constitucional que ainda não separava claramente o Poder Judiciário do Executivo.

Os EUA formaram a primeira república constitucional do mundo moderno. O verdadeiro fundo filosófico é que nos EUA quem governa dá os rumos; é o Congresso. Um congressista faz parte de um poder verdadeiro. O Legislativo é um poder que não tem chefe. Um deputado, um senador, não é subordinado a nenhum chefe. Não pode ser demitido por chefe nenhum. Muito menos pode ser subordinado ao simples chefe de outro poder, o Executivo.

Míriam Leitão: Governo terá briga de agendas

- O Globo

Novo governo vai ter que enfrentar o dilema de escolher em qual das suas agendas pretende investir a lua de mel do começo de mandato

O mercado financeiro acredita que a agenda prioritária do presidente eleito Jair Bolsonaro será a de reformas econômicas e já comemora por antecipação. O juiz Sergio Moro foi para o governo convencido de que será possível tocar a agenda anticorrupção. Bolsonaro deu sinais de que continua focado nas suas ideias sobre segurança, como liberação de armas, redução da maioridade penal e o “excludente de ilicitude" para proteger policiais. Enquanto isso, tem feito anúncios na política externa.

Apenas 11 países, dos 193 da ONU, têm relações com todos os membros e o Brasil é um deles. É um dos orgulhos da nossa diplomacia. Bolsonaro quer sair desse simbólico clube rompendo relações com Cuba. Um ato sem maiores motivos e ganhos. Avisou que será o terceiro país do mundo a transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Deveria ser lembrado do relevante comércio com os países árabes. A Liga Árabe tem 22 membros e a Conferência Islâmica, 57. Recados diplomáticos estão desembarcando em alguns ouvidos de que pode haver retaliação comercial por parte de países com os quais temos superávit comercial. A falta de prioridade do Mercosul foi dita com ênfase bem audível pelo futuro ministro da Economia. A Argentina é o maior comprador de manufaturados do Brasil.

Enquanto o governo Bolsonaro exercita sua diplomacia, já vai ficando claro que haverá no Congresso, no ano que vem, pelo menos três agendas em conflito. Em qual delas, o presidente eleito Jair Bolsonaro pretende investir a sua lua de mel? A econômica, a do seu pacote de segurança, ou o combate à corrupção.

O cientista político Carlos Pereira, da FGV, lembra o grande capital político que ele terá ao assumir.

— Minha impressão é que ele aprovará tudo o que quiser no Congresso no curto prazo, porque é um governo inaugural e que terá uma maioria homogênea com partidos de centro-direita.

Elio Gaspari: Moro no governo dos ‘humanos direitos’

- O Globo

Sergio Moro lustrou a biografia de Jair Bolsonaro e de seu futuro governo ao aceitar o superministério da Justiça. Foi um tiro na mosca, pois seu trabalho à frente da Lava-Jato tornou-se um marco na História da política nacional, faxinando a corrupção do andar de cima.

Ao se sentar na cadeira, será apresentado a outro tipo de corrupção sistêmica, aquela que ofende os direitos dos cidadãos. Ele entrará num governo em que o futuro ministro da Defesa, general da reserva Augusto Heleno, disse que “direitos humanos são basicamente para humanos direitos”. Desfolhando as mazelas da criminalidade nacional, acrescentou: “É um absurdo tratar isso como uma situação normal. É situação de exceção que merece tratamento de exceção”.

Quais tratamentos de exceção Moro sancionará, ninguém sabe.

O futuro governador do Rio de Janeiro, oficial da reserva da Marinha, singra um discurso apocalíptico e anuncia que “não vai faltar lugar para colocar bandido, cova a gente cava e presídio, se precisar, a gente bota em navio em alto-mar.” Pura demagogia, e Witzel conhece a história dessas cadeias flutuantes. Elas se chamavam “presigangas” e eram usadas na Colônia e no Império. A última “presiganga” de que se tem notícia funcionou no navio Raul Soares, onde puseram presos políticos em 1964.

Os discursos repressivos de hoje têm amplo apoio popular, o que os torna mais perigosos, pois quando ficar demonstrada a vacuidade do palavrório, os demagogos mudarão de assunto.

Sergio Moro diz que a sua prioridade será o combate à corrupção e ao crime organizado. Por falta de experiência na área criminal do andar de baixo, descobrirá isso quando cair sobre sua mesa o caso de alguma roubalheira que usava um posto de gasolina da Baixada Fluminense para lavar dinheiro da corrupção e do tráfico. Puxando os fios, como ele fez em Curitiba, será fácil descobrir poderes que se instalaram no século passado, sobreviveram à ditadura, aninhados nos desvãos dos DOI e ressurgiram com a redemocratização, sambando na avenida e negociando nos palácios.

Hoje, como sempre, os ferrabrás ganham desenvoltura quando sentem-se amparados pela opinião pública. Alguns ministros da Justiça, como Seabra Fagundes e Milton Campos, sentiram o cheiro de queimado e foram-se embora. Outros, como o professor Luís Antônio da Gama e Silva, redator do AI-5, inebriaram-se. Cada um escolhe seu caminho, e Moro escolherá o seu.

Pode-lhe ser útil a lembrança do que ocorreu com Carlos Medeiros Silva quando se sentou naquela cadeira, em 1966. Um coronel que servia no gabinete apresentou-se:

— Ministro, vim conhecê-lo. Sou o representante da linha dura aqui no ministério.

Medeiros era um mineiro miúdo e discreto. Cioso da autoridade, sobretudo da sua, respondeu:

— Coronel, agradeço muito seus relevantes serviços, mas o senhor está dispensado. Agora, o representante da linha dura aqui sou eu.

Ascânio Seleme: Montando o governo

- O Globo

A redução do número de ministérios no governo de Jair Bolsonaro não vai resultar necessariamente em queda importante das despesas orçamentárias. Se a Esplanada ficar com 17 pastas, o novo governo terá extinto 12 dos 29 ministérios hoje existentes. Será um bom símbolo de austeridade e de empenho no enxugamento da máquina e na diminuição do Estado, mas é preciso muito mais do que isso para que as contas públicas sofram impacto.

Com 12 ministros a menos, o Estado poderá cortar em cargos de assessoramento e secretariado no máximo uns 300 postos, nada mais do que uma vírgula no oceano de 630 mil servidores civis ou mais de 320 mil militares na ativa no Brasil.

O que Bolsonaro vai fazer, a grosso modo, é reagrupar setores do governo que foram divididos ao longo dos anos para abrigar aliados dos que detinham o poder. Por isso, as funções distribuídas nos ministérios criados sem necessidade não deixam de existir em razão da sua reunião sob comando único, apenas perdem status. No governo Lula, o Estado chegou a ter 37 ministérios, com Dilma foram 39, todos entregues a partidos da base.

Hélio Schwartsman: A revolta dos oprimidos

- Folha de S. Paulo

Cientistas políticos ligam onda de populismo a uma insatisfação popular com as elites

Cientistas políticos vêm associando a onda de populismo que varre algumas democracias estabelecidas a uma espécie de revolta da população contra a arrogância de elites políticas, econômicas e culturais, que sempre exerceram posições de mando na democracia.

Fenômenos como o Brexit, Trump e até Bolsonaro seriam a reação a um establishment que cessou de dar aos eleitores o que eles exigem. É um populismo que tende à direita, tem fortes traços de anti-intelectualismo e pendor por uma retórica mais efusiva, para não dizer violenta.

Razões para as pessoas se sentirem insatisfeitas é o que não falta. Elas vão da má distribuição de renda à corrupção, passando pela imigração e o desemprego. Cada país terá o seu próprio blend de tendências globais e elementos locais. Cobrar mais dos administradores, mandando-os para casa quando a gestão deixa a desejar, é algo que está inscrito no DNA da democracia.

Bruno Boghossian: Os Lorenzonis

- Folha de S. Paulo

Pauta ruralista e evangélica será chave de Bolsonaro no Congresso

O próximo ministro da Fazenda não gostou de ver um deputado dando palpite em sua área. “É um político falando de economia”, reclamou Paulo Guedes ao desautorizar Onyx Lorenzoni, articulador do futuro governo.

Guedes terá que se acostumar. As medidas que propõe para colocar as contas do país em ordem dependerão de 513 Lorenzonis na Câmara e outros 81 no Senado.

A capacidade de formar maioria no Congresso para aprovar propostas impopulares como a reforma da Previdência será uma das principais provas para Jair Bolsonaro. Sob a promessa de romper a tradição de distribuir cargos aos partidos aliados, o presidente eleito usará sua popularidade como chave para uma lua de mel com o Legislativo.

A plataforma conservadora que teve êxito nas urnas deve ser uma das peças centrais desse jogo. Ainda em campanha, Bolsonaro sugeriu que aproveitaria a pauta de costumes para adoçar a boca dos parlamentares e convencê-los a engolir a pílula amarga do aperto fiscal.

“Se nós tipificarmos ações do MST como terrorismo, será que a bancada ruralista não vai estar conosco?”, perguntou o então candidato em uma palestra a empresários, em julho. “Se nós buscarmos resgatar os valores familiares, não vamos ter simpatia dos evangélicos?”

Vinicius Torres Freire: Quais são os superpoderes de Moro

- Folha de S. Paulo

Ministro terá poder de investigação do governo e informação sobre crimes financeiros

O ministério que Sergio Moro deve assumir não seria mais do que a velha pasta da Justiça não fosse a incorporação de duas instituições importantes: a CGU (Controladoria-Geral da União) e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras).

Com a CGU, Moro passaria a comandar uma espécie de polícia administrativa e a inspetoria do governo.

Com o Coaf, terá algum controle sobre uma agência de inteligência que recebe, analisa e encaminha ao Ministério Público e à polícia denúncias de lavagem de dinheiro e uso de recursos para fins criminosos, terrorismo inclusive.

Desde que foi criada, em 2003, a CGU teve ligação direta com o presidente da República —ora é um ministério. O Coaf é filho da lei de lavagem de dinheiro, de 1998, desde sempre abrigado no Ministério da Fazenda.

No mais, a Justiça de Moro vai reabsorver as polícias federais, deslocadas neste ano para o breve Ministério da Segurança.

Samuel Pessôa: Narrativas

- Folha de S. Paulo

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.

A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.

A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.

Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.

Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.

Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.

Luiz Carlos Azedo: Os mascates

- Correio Braziliense

Há um mês, cerca de mil pessoas — homens, mulheres crianças e até idosos —, fugindo da fome e da violência, deixaram a cidade de São Pedro Sula, em Honduras, em busca do sonho americano. A notícia se espalhou pelas redes sociais, e milhares de pessoas de outros países da América Central se juntaram a elas na Guatemala, em direção ao México. Às vésperas das eleições legislativas de 6 de novembro, a marcha virou uma dor de cabeça para o presidente dos Estados Unidos, porque já reúne quase 10 mil pessoas e chegou ao México, sendo acompanhada pela mídia do mundo inteiro.

Trump já anunciou a intenção de impedir a entrada dos imigrantes e mandou mais 5 mil homens da Guarda Nacional para a fronteira. Acusa o Partido Democrata de estimular a marcha. O risco é os mexicanos aderirem em massa ao movimento, autodenominado “Pueblo Sin Fronteiras” (Povo Sem Fronteiras). Cerca de 10% da população da Guatemala, El Salvador e Honduras já deixaram seus países para fugir da criminalidade e do recrutamento forçado por gangues, em busca de poucas oportunidades de trabalho. Trump ameaça cortar a ajuda norte-americana aos países de América Central. Segundo a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional, a Guatemala recebe mais de US$ 248 milhões por ano; Honduras, US$ 175 milhões; e El Salvador, US$ 115 milhões.

Esse fenômeno parecia distante do Brasil, mas também já é vivido por nós em razão da crise venezuelana. A diferença é que o governo brasileiro, depois dos incidentes entre brasileiros e venezuelanos em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, com apoio das Forças Armadas, montou uma infraestrutura adequada para receber milhares de refugiados, que são redistribuídos para os diversos estados do país. O êxodo de 2,4 milhões de venezuelanos, em apenas dois anos, já é o maior da história da América do Sul e atinge praticamente todos os países do subcontinente. A diferença é que o presidente Michel Temer, ele próprio descendente de imigrantes libaneses, seguindo a tradição de nossa política externa, tem uma posição oposta à xenofobia de Trump.

Senado semeia incerteza com veto à privatização: Editorial | O Globo

Proibição da venda de empresas da Eletrobras gera insegurança jurídica e perdas para o Erário

Em fim de legislatura, o Senado conseguiu aquilo que parecia extremamente difícil: ampliar a margem de insegurança jurídica em contratos do governo. Na semana retrasada, num plenário com um terço ainda afetado pelo amargor da derrota nas urnas, rejeitou-se o projeto de lei autorizando a privatização de distribuidoras de energia do grupo Eletrobras.

De seis subsidiárias estatais, quatro haviam sido leiloadas no mês anterior, a R$ 50 mil cada. Restaram a de Alagoas, que, em esdrúxula decisão, a Justiça impediu de privatizar; e a empresa do Amazonas.

A rejeição do projeto no Senado não anula as vendas já realizadas, mas torna possível uma miríade de questionamentos sobre os contratos assinados na recente privatização. Além disso, semeia ceticismo sobre a capacidade financeira da Eletrobras no curto prazo, pela extensão da carga imprevista nas operações no Amazonas e em Alagoas. Note-se que as dívidas dessas duas companhias superam R$ 20 bilhões, o que não é pouco para um grupo estatal à beira do colapso, como tem advertido o governo.

Na ressaca eleitoral, os senadores decidiram, em última análise, contra os interesses do Estado. Vetaram a privatização, sem se preocupar em construir uma solução para a Eletrobras. No máximo, propuseram uma investigação sobre prejuízos.

É grave equívoco depreciar as relações com China e Mercosul: Editorial | O Globo

Novo governo deve ter prudência ao reavaliar interesses do país na diplomacia e no comércio

O presidente eleito Jair Bolsonaro deveria adotar a cautela como postura nas mudanças de rumo nas relações exteriores e nas revisões que pretende realizar na política comercial.

Palavras de um presidente eleito têm peso específico, assim como a de seus principais assessores na transição de governo. É prejudicial ao país, por exemplo, o flerte com a dialética da banalização nas abordagens sobre o futuro das relações com a China e com o Mercosul, e, neste caso, especialmente com a Argentina. Elas são um legado diplomático de governos militares (de Ernesto Geisel a João Figueiredo) aos civis na redemocratização (de José Sarney a Itamar Franco).

Faz sentido, sim, o próximo governo balizar a política externa de acordo com as premissas programáticas legitimadas pela maioria de 57,7 milhões de eleitores.

É lógico, também, que altere e ajuste o foco no comércio exterior, em busca de maior liberalização da economia, com redução programada de tarifas e barreiras, e de medidas de defesa comercial —sempre de forma planejada, porque a situação é complexa: o déficit comercial de US$ 20,3 bilhões do setor industrial nos primeiros nove meses deste ano foi dez vezes maior que o do mesmo período do ano passado.

Teste na Previdência: Editorial | Folha de S. Paulo

Primeiro desafio de Bolsonaro é definir estratégia para conter déficit do sistema de aposentadorias; há opções mais e menos ambiciosas de reforma

Depois de idas e vindas, o presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), e sua equipe parecem adotar uma visão mais realista e pragmática da reforma da Previdência, decisiva para o sucesso do próximo governo.

Bolsonaro indicou que pretende aproveitar ao menos partes do projeto do governo Michel Temer (MDB), cuja medida mais importante é a introdução de uma idade mínima para o acesso aos benefícios, de 65 anos para homens e 62 para mulheres. O texto, que tramita na Câmara dos Deputados, poderia avançar ainda neste ano.

O presidente eleito desautorizou, assim, a insensatez do futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que havia chamado o texto de “porcaria” —e até colocado em dúvida a existência do déficit gigantesco do sistema previdenciário.

Os desesperados: Editorial | O Estado de S. Paulo

Uma oposição “propositiva” ao governo de Jair Bolsonaro é o que prometem alguns partidos de esquerda que já começam a se organizar com vista à próxima legislatura. Não por acaso, esse bloco excluirá o PT. Segundo explicou o deputado André Figueiredo (CE), líder do PDT na Câmara, o partido do ex-presidente e hoje presidiário Lula da Silva “tem um modus operandi próprio dele”, enquanto o bloco formado por PDT, PSB e PCdoB “tem um outro modelo de oposição”, isto é, “um modelo construtivo para o País”.

Ainda será preciso esperar que esses partidos passem das belas palavras aos atos concretos, mas é significativo que agremiações que tão fortemente antagonizaram com Bolsonaro durante a campanha agora se digam dispostas a fazer oposição responsável ao próximo governo.

Também é significativo que o grupo tenha dispensado o PT e sua linha auxiliar, o PSOL, das conversas para a formação de um bloco de oposição. O pedetista André Figueiredo explicou que não é mais possível aceitar “o hegemonismo que o PT quer impor aos demais partidos” e que nenhuma dessas legendas de esquerda aceita ser “um puxadinho do PT”.

O isolamento do PT no campo da oposição é a consequência natural do comportamento autoritário do partido, incapaz de uma convivência democrática mesmo com aqueles com os quais nutre alguma afinidade ideológica. Para os petistas, nada que não tenha sido ditado pelo PT tem legitimidade.

Martinho da Vila: Onde o Brasil aprendeu a Liberdade

Carlos Drummond de Andrade: José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, proptesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você consasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?