quinta-feira, 4 de julho de 2019

William Waack: Os números que não mentem

- O Estado de S. Paulo

O Brasil tem lições a dar em questões ambientais, mas está na defensiva

Números e narrativas não necessariamente coincidem e o Brasil é vítima de uma delas, com relevante repercussão internacional, sobretudo diante do anunciado acordo de livre-comércio entre União Europeia e Mercosul.

Exemplo clássico de números absolutos que não conseguem “narrar” corretamente uma situação é o da criminalidade. No Atlas da Violência do Ipea, verifica-se que São Paulo, com 4.631 mortos, figura entre os primeiros na lista de homicídios de 2017. Com menos da metade desse número – 2.203 casos – o Rio Grande do Norte está “confortavelmente” lá no meio da lista. Mas, em termos relativos, o Rio Grande do Norte apresentou uma taxa de 62 mortos (arredondando) por 100 mil habitantes em 2017. A mesma taxa para São Paulo era de 10, brutalmente inferior à do Rio Grande do Norte.

Vamos agora a um dos pontos nevrálgicos da discussão que o governo brasileiro terá de enfrentar ao tentar convencer europeus – governos e, especialmente, consumidores de produtos agrícolas brasileiros – de que o País atende aos padrões internacionais para o emprego de agrotóxicos. A narrativa consolidada é a de que o Brasil é o campeão mundial de uso de agrotóxicos, e o número absoluto não mente. Agrotóxicos são commodities, cotadas em dólares, e o valor do consumo brasileiro é o maior do mundo (indicando, portanto, a quantidade de toneladas compradas).

Vera Magalhães: Fracassa acordo com policiais na reforma

- O Estado de S. Paulo

Fracassou a tentativa, encabeçada por Jair Bolsonaro, de um acordo para flexibilizar as regras para policiais federais, rodoviários e legislativos na reforma da Previdência. Isso pode salvar a reforma, mas depende de o governo garantir os votos.

Presidente na linha. Bolsonaro não resistiu a alguns gritos de “traidor” e já cedeu. Telefonou ao relator, Samuel Moreira, sugerindo que tentasse uma solução para os policiais. Mas o acordo emperrou na regra de transição para quem já está nas cadeiras: as entidades queriam uma regra semelhante à que está no projeto dos militares, mas o relator só aceitou abrandar a idade mínima para a aposentadoria (de 55 anos para ambos os sexos para 53 para homens e 52 para mulheres).

Dia da Marmota. O vaivém dos policiais consumiu um dia inteiro, sendo que o prazo para que se cumpra o plano de encerrar a votação da reforma na Câmara antes do recesso já está para lá de exíguo. Enquanto esta newsletter é fechada para chegar ao leitor a quente, a comissão especial discute todas as tentativas de adiamento e obstrução. Mas o texto da reforma só deve ser votado, com sorte, na quinta-feira. Isso se até lá não aparecer outra crise.

E agora, presidente? Coube a Hugo Leal (PSD-RJ) apresentar um destaque com o pleito dos policiais. E cabe ao governo deixar claro se vai exigir dos seus deputados o voto para assegurar a reforma de R$ 1 trilhão ou se vai abrir a fenda pela qual podem passar todas as corporações —e toda a economia fiscal.

E quem foi às ruas? O saldo imediato da ação direta do presidente para beneficiar uma categoria da qual é historicamente próximo é péssimo na semana subsequente às manifestações em que pessoas foram às ruas entoar o grito da reforma de um trilhão e colocar a culpa pelo atraso do País no parlamento. Afinal, não foi Rodrigo Maia, e sim Bolsonaro, quem cedeu às pressões dos policiais e colocou em risco a espinha dorsal da reforma de Paulo Guedes.

Gilles Lapouge: A reinvenção da Europa

- O Estado de S. Paulo

Para recolocar em marcha a UE foram necessárias negociações intermináveis

A União Europeia, incapaz de nomear um novo governo, estava com sua saúde abalada na manhã desta quarta-feira. Mas, à noite, estava salva, entusiasmada, um pouco como a Fênix, ave da mitologia grega que tinha o estranho dom de se transformar numa ave de fogo, de tempos em tempos, para depois renascer das cinzas.

A nova Comissão Europeia aparenta confiança. Conseguiu respeitar a complicada regra da “paridade”, nomeando para os dois postos mais elevados duas mulheres: na chefia da Comissão (o equivalente à primeira-ministra) está agora a alemã Ursula von der Leyen, uma senhora mãe de seis filhos, poliglota, francófila. Para a presidência do Banco Central Europeu (BCE), a francesa Christine Lagarde (antes diretora do Fundo Monetário Internacional).
Esta não é a única surpresa: essas decisões só foram adotadas graças à harmonia reconstituída de dois pesos-pesados da União Europeia: França e Alemanha, que estava em ponto morto havia meses. E indicam também que as relações entre Emmanuel Macron e Angela Merkel, glaciais e quase descorteses havia algum tempo, milagrosamente ficaram mais calorosas.

Macron, com índices de aprovação em queda desde o ano passado, parece ter reencontrado sua “boa estrela”: há um mês, sua popularidade na França parou de desmoronar. E, no plano internacional, ele retoma o controle dessa União Europeia tão criticada há meses que ele sempre desejou tornar uma alavanca da sua glória mundial.

Angela Merkel também faz um “retorno” surpreendente. Muito criticada na Alemanha depois de 12 anos de poder incontestado, com as pessoas achando que ela havia entrado no seu crepúsculo, conseguiu duas proezas: salvar a União Europeia e mostrar que o motor franco-alemão, que todos davam como morto, voltou a funcionar.

Esse motor regenerado está impaciente para transportar, para todos os lados, o comboio pesado, cansado, envelhecido, heterogêneo e indócil que é a União Europeia. Mais do que nunca, Merkel faz jus ao slogan que lhe foi aplicado na época do seu esplendor: “A política é um esporte complexo. Dezenas de homens correm atrás de uma bola durante alguns dias e, no final, é Merkel quem vence.”

É o caso de afirmar que “tudo é para o melhor na melhor das Europas?” Claro de não. Para se chegar a esse feliz resultado foram necessárias longas negociações, obter o acordo dos 28 membros da UE – alguns rigorosos, outros frívolos ou desatentos, uns do Sul, outros do Norte. E em todos os lados, antagonismos.

Os interesses, os costumes, as filosofias, se contradizem. Alguns países são minúsculos. Outros, enormes. Há os que temem a Rússia e os que não. Há ricos e pobres, democratas e autoritários, globalistas e protecionistas. Assim, a União Europeia reuniu e levou ao máximo todos os defeitos dos regimes parlamentares, mas multiplicados por 28.

Merval Pereira: Obsessão

- O Globo

Bolsonaro insiste em paparicar seu núcleo duro de eleitores, que o elegeram para mandatos sucessivos de deputado

O presidente Jair Bolsonaro tem uma fixação: não depender do Congresso para governar. É o sonho de consumo de todo político populista com pendores autoritários. Várias vezes ele já abordou o assunto, que ontem voltou a ser seu tema, no encerramento do discurso no Comando Militar do Sudeste, na transmissão de posse do general Andrade Ramos, que será o novo ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência.

O presidente repete com constância desagradável que só deve “lealdade absoluta” ao povo, numa visão de democracia muito peculiar, que coloca essa entidade, o povo, acima de todas as instituições.

Ontem, além de agradecer às Forças Armadas, que seriam responsáveis por tudo o que alcançou na vida, Bolsonaro se dirigiu ao “povo brasileiro”: “Devo isso a vocês, povo brasileiro. Que são muito mais importantes que qualquer instituição nacional. Vocês conduzem nosso destino. A vocês, povo brasileiro, e somente a vocês, eu devo lealdade absoluta. Contem comigo, que eu conto com vocês.”

Bolsonaro parece não saber que “o povo brasileiro” tem seus representantes, eleitos pelo voto popular tanto quanto ele, trabalhando no Congresso Nacional, onde ele atuou por 28 anos. E que o presidente da República deveria representar todos os cidadãos, mesmo aqueles que não votaram nele.

Mas ele insiste em paparicar seu núcleo duro de eleitores, que o elegeram para mandatos sucessivos de deputado federal. Mas, se bastava esse eleitorado, basicamente de militares e congêneres, como guardas municipais, policiais militares, para elegê-lo deputado federal, agora teria que ampliar o alcance de seus atos.

Mas não, e o exemplo recentíssimo está na sua intervenção na reforma da Previdência para abrandar as condições de aposentadoria dos policiais militares e federais, entre outros.

Essa fixação em um apoio direto do eleitor não é de hoje. Em março, na cerimônia do 211º aniversário do Corpo de Fuzileiros Navais, no Rio, Bolsonaro disse que a democracia só existe se as Forças Armadas quiserem. Ele fez o comentário quando descrevia sua vitória nas eleições do ano passado: “A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia. E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”.

Míriam Leitão: O presidente que desidrata

- O Globo

Policiais já têm regras mais brandas na reforma, mas querem mais. Bolsonaro fez lobby, mas relator não cedeu

A entrada do próprio presidente da República para desidratar a reforma da Previdência é algo realmente inusitado. Mas foi o que Jair Bolsonaro fez ontem. A mudança pela qual o presidente se bateu beneficiava quem já é beneficiado. Fica estranha a situação do ministro Paulo Guedes, que reagiu de maneira tão eloquente criticando a Câmara de ter cedido ao lobby de servidores do legislativo e ficou em silêncio diante da pressão do presidente da República para aumentar as vantagens dos funcionários do setor de segurança. Os policiais federais e rodoviários federais já tinham, na reforma, uma idade mínima 10 anos menor do que a do resto da população, mas quiseram mais vantagens. E tiveram como lobista o presidente.

Parlamentares relataram terem se sentido ameaçados pelos policiais. A um certo momento da tarde, falou-se em redução da idade mínima para 52 e 53 anos. Era proposta do governo, mas os policiais federais não aceitaram. O que complica a negociação é que eles têm dezenas de lideranças e a negociação fica fragmentada.

Com todas essas dificuldades e pressões, o relator Samuel Moreira (PSDB-SP) decidiu não ceder à pressão e manteve os 55 anos. Foi um dia muito tenso, e o presidente da República que não se mobilizou por nenhum ponto, nem mesmo pela inclusão dos estados e municípios, não poupou esforços para defender os policiais.

Durante as conversas mantidas com a equipe econômica, os policiais civis, federais e rodoviários federais disseram inicialmente que queriam as regras semelhantes aos militares das Forças Armadas. 

Os economistas afirmaram que aceitariam, desde que eles aceitassem também o mesmo tempo de trabalho para aposentadoria. Os policiais não concordaram. Nas Forças Armadas não há idade mínima, mas o pessoal tem que comprovar 30 anos de trabalho militar para ter direito à integralidade. 

Ascânio Seleme: História do Brasil mal contada

- O Globo

Brancos primeiro escravizaram e depois eliminaram qualquer chance de convivência com os índios

Historiadores e cineastas vão brigar comigo, mas a literatura e o cinema devem ao Brasil mais documentos sérios e bem elaborados que contem com minúcia e paixão a sua história. Desconfio que os brasileiros conheçam melhor e com mais detalhes a Guerra Civil americana do que a Guerra do Paraguai. Também conhecem mais a saga dos povos indígenas americanos do que a tragédia das diversas nações que habitavam o Brasil em 1500. Num pequeno museu de Washington, situado em frente ao Teatro Ford, onde Abraham Lincoln foi assassinado, há uma torre de livros com mais de 500 títulos sobre o ex-presidente americano. De Getúlio Vargas, no Brasil, há um único trabalho transcendental, a biografia em três volumes publicada em 2012 pelo escritor e jornalista Lira Neto.

Por isso, vale a pena assistir à série “Guerras do Brasil.doc”, de Luiz Bolognesi, disponível na Netflix. É um documentário dividido em cinco episódios que conta momentos cruciais da história da formação do país. O primeiro episódio relata como se deu a conquista do território pelos portugueses. Trata-se de um trabalho acadêmico, repleto de dados, mas sem o ritmo do cinema. Mesmo assim, a ocupação portuguesa foi tão intensa e dramática que em alguns momentos o documentário ganha vigor de thriller. Os outros quatro episódios retratam a Guerra de Palmares, a Guerra do Paraguai, a Revolução de 30 e as guerras do crime organizado nos presídios do país.

Mas vamos ficar apenas no primeiro episódio, que até hoje é problema não resolvido no Brasil. Segundo o documentário, calcula-se que em 1500 viviam aqui entre 8 milhões e 40 milhões de índios, alguma coisa como um pouco mais do que um Paraguai ou um pouco menos do que uma Argentina. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, 896 mil brasileiros se declararam indígenas. A distância entre esses números não deixa dúvida, eles foram dizimados. O que ocorreu no Brasil e em toda a América do Sul, onde viviam mais de 80 milhões de almas na época do Descobrimento, foi um holocausto. O maior da história.

Monica De Bolle: 4 de julho

-Época

Todos se apoderaram de símbolos de seus países para traçar a linha que divide os lados.

Por acaso, este artigo vai para o site de ÉPOCA no dia 4 de julho. Não por acaso, este 4 de julho em especial não é um 4 de julho qualquer. Trata-se, sim, do Dia da Independência dos Estados Unidos, mas no Brasil não costumamos dar muita atenção a isso — ou não costumávamos. Sabe-se lá o que o clã Bolsonaro, em sua veneração deslavada por Donald Trump, resolverá tuitar amanhã. Pouco importa. 

O que importa é que neste 4 de julho o atual presidente americano resolveu encampar a data historicamente apolítica para fazer um quase inédito discurso nos monumentos de Washington DC, bem como pôr à mostra tanques, aviões de caça e outras parafernálias militares. Desde que foi convidado por um recém-eleito Emmanuel Macron para participar das comemorações do Dia da Bastilha em Paris, a ideia de imitar os franceses não lhe sai da cabeça. 

A diferença é que o Dia da Bastilha sempre teve essa tradição. Já aqui, com um discurso que inevitavelmente tocará em temas da campanha presidencial de 2020, a iniciativa de Trump é obviamente divisiva.

Age o presidente americano como outros líderes nacionalistas contemporâneos e passados.

Do lado de cá, os que defendem Trump, os patrióticos, a gente “do bem”. Do lado de lá, os críticos do presidente, logo os que rechaçam os símbolos nacionais. Soa familiar? Alguém aí com uma certa aflição de vestir a camisa da Seleção Brasileira e ser rotulado de defensor do “mito”? Alguém aí desconcertado com o que hoje significa a amarelinha, a canarinho? Em caso de resposta positiva, saibam que não estão sós. 

*Maria Hermínia Tavares de Almeida: Mudou o clima

- Folha de S. Paulo

Governo Bolsonaro terá de alterar o discurso e a orientação de suas políticas

Em 1972, na primeira conferência da ONU sobre meio ambiente, em Estocolmo, o chefe da delegação brasileira, Costa Cavalcanti, ministro do presidente Médici (1969-1974), proclamou que a política oficial era "desenvolver primeiro, e pagar os custos da poluição depois".

A lenda lhe atribui o brado retumbante: "Bem-vinda a poluição!". Com efeito, aqui se acreditava que a causa ecológica era pretexto do primeiro mundo para barrar o caminho do país ao progresso.

Desde então muita coisa mudou. Em 1987, o relatório da Comissão Brundtland da ONU, "Nosso Futuro Comum", reconhecendo a natureza global do desafio, consagrou o princípio de que o desenvolvimento não poderia se dar às custas da destruição dos recursos do planeta: teria de ser sustentável do ponto de vista ambiental.

Lentamente, por meio de árduas negociações, foram se erguendo nas instituições multilaterais as estruturas normativas —acordos, convenções, painéis— do que passaria a se chamar regime internacional de mudanças climáticas, cuja expressão mais recente é o Acordo de Paris de 2016.

Valendo-se de seu imenso patrimônio ambiental, o Brasil enfrentou os dilemas comuns. Entre eles, uma divisão de custos e responsabilidades, aceitável para sociedades menos ou mais industrializadas. Tendo sediado em 1992, no Rio, a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o país participou de todas as iniciativas seguintes, transformando sua atuação em recurso de "soft power" da política externa.

*Fernando Schüler: Quem detém o monopólio da virtude?

- Folha de S. Paulo

Sociedades plurais supõem um arranjo no qual diferentes verdades morais possam coexistir: a democracia liberal

Dias atrás, Ciro Gomes confirmou seu ataque ao vereador Fernando Holiday, com um adendo: capitãozinho do mato “e nazista”. Ok, o mundo anda forrado de palavrões. Imagino que a palavra nazista apareça milhares de vezes, todos os dias, na selva digital. Mas este caso é diferente. Ele toca em questões sensíveis. O tema racial, por óbvio, e uma pergunta hoje surpreendentemente incômoda: até onde podemos divergir, com alguma civilidade?

Não julgo as escolhas políticas de Holiday nem as de Ciro. Meu ponto é perguntar o que autoriza, em nossa sociedade, um líder poderoso, estudado, não importando a cor da sua pele ou sua condição social, a chamar um jovem vereador negro de São Paulo, com altivez e ares de virtude, de capitãozinho do mato.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu com o vereador. Em uma refrega, tempos atrás, na Câmara de São Paulo, ele foi chamado de “negro falso”. O grito ficou no ar, anônimo. Diria que pairava na cabeça de muita gente boa. Agora ganhou um porta-voz de carne e osso. Ele fala em nome de muita gente e pegou o vereadorzinho de jeito: se comporta, rapaz, se comporta como um negro de verdade!

Mariana Carneiro: Vitória de um

- Folha de S. Paulo

Estilo Bolsonaro de governar parece premiar o 'fominha' em detrimento da consagração do time

Ao celebrar o acordo com a União Europeia, não ocorreu ao presidente Jair Bolsonaro agradecer nenhum dos antecessores que, por anos, se esforçaram para tentar alcançar o mesmo desfecho.

Ao contrário, horas depois do anúncio, Eduardo Bolsonaro, filho do mandatário, resumiu nas redes sociais o sentimento da cúpula. Em seis meses, disse ele, Bolsonaro entregou o que nenhum presidente foi capaz de fazer em 20 anos.

Dessa forma, como delineia Eduardo, o presidente trabalha sozinho, guiado pelos próprios ideais. E desconsidera o trabalho feito por técnicos e diplomatas (a propósito, "globalistas") que por anos depuraram as bases da negociação e testaram os limites dos europeus e dos industriais brasileiros.

A reação do núcleo duro do presidente denuncia algo mais sobre o estilo Bolsonaro de governar, que parece premiar o "fominha" em detrimento da consagração do time.

Neste momento acompanhamos o contorcionismo do governo nas negociações pela reforma da Previdência.

Embora a equipe econômica tenha advogado pelo fim dos privilégios e Paulo Guedes criticado o "lobby das corporações", o PSL e o próprio presidente atuam para dar tratamento especial a policiais. O argumento é que a categoria foi determinante para a eleição do grupo de Bolsonaro.

Vinicius Torres Freire: Brasil, ainda infeliz e com medo

- Folha de S. Paulo

Pessimismo para de aumentar, mas índices de satisfação estão perto das mínimas

Faz quatro anos, o Brasil tem medo e é infeliz como nunca, pelo menos no último quarto de século, por aí.

O Índice de Satisfação com a Vida (ISV), por exemplo, nunca foi tão baixo por tanto tempo desde que o Ibope começou a fazer tal pesquisa para a Confederação Nacional da Indústria, em 1996. O Índice de Medo do Desemprego flutua nos níveis mais altos em 20 anos desde o início de 2015.

O prestígio de Jair Bolsonaro está em patamar neutro (nível equivalente de notas “ótimo” e “péssimo”), mas fraco para um presidente em início do mandato, segundo as pesquisas CNI-Ibope. Supera os desastres de popularidade de Dilma 2 e de Michel Temer, mas equivale ao de Dilma 1 depois do colapso de junho de 2013, ao de Lula 1 no pior do mensalão e ao de fins de FHC, em 2002, desgastado por oito anos de mandato, pela desvalorização do real e pelo apagão.

O ISV e o Índice de Medo do Desemprego (IMD), também da CNI-Ibope, e outras medidas de satisfação pessoal, política e econômica deram uma melhorada depois da eleição, como costuma ocorrer depois do voto. Em fevereiro, o desânimo voltou a aumentar. Entre os mais pobres, o medo do desemprego e a satisfação com a vida não se moveram das profundezas a que desceram na recessão. Há uma notável disparidade de classe.

Luiz Carlos Azedo: Primeiro os teus!

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Bolsonaro não suportou as pressões de sua própria base eleitoral, depois de ser chamado de traidor por policiais na Esplanada e, principalmente, ter recebido vaias de torcedores no Mineirão”

A expressão “Mateus, primeiro os teus” tem origem bíblica, mas é uma derivação popular, segundo o mestre Luís Câmara Cascudo, muito citada por causa da rima. Não tem muito a ver com o texto original dos conselhos de Jesus ao discípulo, que era cobrador de impostos em Cafarnaum, na Judeia. Pelo fato de ser judeu e servir aos romanos, Mateus sofria muita hostilidade. A passagem da Bíblia é a seguinte: “Hipócrita! Tira primeiro a trave do teu olho, e então poderás ver com clareza para tirar o cisco do olho de teu irmão”.

A citação vem ao caso por causa da interferência do presidente Jair Bolsonaro na apresentação do relatório do deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) sobre a reforma da Previdência, lido ontem na comissão especial da Câmara. Na manhã de ontem, o presidente da República despachou o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, para uma reunião na casa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), com objetivo de incluir na reforma certas “percepções” sobre as reivindicações de policiais civis e militares e outros segmentos da área de segurança pública.

Bolsonaro não suportou as pressões de sua própria base eleitoral, depois de ser chamado de traidor por policiais que se manifestaram na Esplanada dos Ministérios na terça-feira e, principalmente, ter recebido vaias de torcedores no Mineirão, ao testar mais uma vez a popularidade num jogo da Seleção Brasileira. Foi o bastante para o presidente da República sugerir mudanças no texto que seria apresentado pelo relator, cujo verdadeiro teor, porém, não foi revelado pelo porta-voz da Presidência, general Rego Barros, na coletiva na qual explicou a posição do governo, ou melhor, “percepções”, no final da tarde, no Palácio do Planalto.

O governo também aproveitou a reunião de líderes para negociar a liberação de emendas parlamentares, demanda dos deputados para votar a reforma. Por mais que se diga que não, é uma espécie de toma lá dá cá: o governo libera verbas para as bancadas e Bolsonaro negocia mudanças no relatório de Samuel Moreira para evitar que sua base se volte contra o governo. A terceira versão do relatório deve excluir qualquer medida que possa atingir estados e municípios, como a que permitiria o aumento da contribuição previdenciária de servidores pelos governadores e prefeitos.

Com isso, a aprovação do relatório da Previdência antes do recesso subiu no telhado. Hoje, haverá nova tentativa de concluir a aprovação do texto na comissão especial. Será preciso muito esforço dos líderes da Casa e do próprio governo para que isso ocorra. Voltando ao texto bíblico, como no dito popular de viés egoísta, Bolsonaro quer proteger sua base eleitoral na área de segurança pública, que pleiteia tratamento privilegiado, como tiveram os militares das Forças Armadas. Com apoio de Maia, o relator não flexiblizou as regras propostas para os policiais, que já têm regime especial. Se houver mudança, será em plenário.

A analogia com a versão original vale mais para os deputados, porque o cisco no olho é a inclusão do aumento das contribuições previdenciárias de estados e municípios na reforma, como queriam os governadores. Os deputados federais querem dividir a conta da reforma da Previdência com governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. Não querem queimar o filme com servidores estaduais e municipais, que poderiam dar o troco nas próximas eleições, votando contra a reeleição dos deputados federais que aprovassem a reforma e elegendo deputados estaduais e prefeitos para as vagas na Câmara. Citam, como exemplo, o que aconteceu em relação à reforma trabalhista nas eleições passadas.

Cristian Klein: Democracia de 'bocas abertas'

- Valor Econômico

Para a esquerda, Cunha e Moro são faces da moeda

Numa das cenas mais singulares do documentário "Democracia em vertigem", da diretora Petra Costa, a então presidente Dilma Rousseff está no Palácio do Planalto assistindo aos votos que decidiam a abertura do impeachment. Circulando em pé, diante da TV, aparentando nervosismo, Dilma reage ao discurso de Glauber Braga (Psol-RJ). O deputado, dedo em riste, ataca o presidente da Câmara, que dirigia a sessão e havia sido o responsável pela admissão do processo que levaria à derrubada da petista. "Eduardo Cunha, você é um gângster. E o que dá sustentação à sua cadeira cheira a enxofre". Numa expressão facial, Dilma mostra surpresa e aprovação pela braveza do parlamentar em sua defesa.

Não se sabe se o então juiz federal Sergio Moro prestou atenção ao voto do deputado, embora não seja difícil imaginar para que lado pendia. Cunha e Moro são grandes protagonistas de um mesmo processo que abateu o PT. O primeiro foi algoz de Dilma, o segundo, o do ex-presidente Lula. A legitimidade de Cunha, reconhecidamente um corrupto, para conduzir o impeachment contra uma presidente cujo crime de responsabilidade não se tratava de corrupção, pouco importou para a aparência de lisura do processo. A legitimidade de Moro, um juiz alegadamente parcial, de acordo com conversas reveladas pelo site "The Intercept", tampouco compromete, para os adversários do PT, o conjunto da obra de quem prendeu Lula.

Para Glauber Braga, porém, um coadjuvante de destaque no enredo de tantos personagens da política brasileira dos últimos seis anos, Cunha e Moro são faces da mesma moeda. Se o primeiro mereceu o epíteto de "gângster", o segundo é como o árbitro de futebol que favorece um dos times em campo. "O senhor vai estar, sim, nos livros de história, como um juiz que se corrompeu, como um juiz ladrão", vituperou, a poucas horas do Brasil x Argentina de terça-feira.

Da prisão, em Curitiba, não se sabe a reação de Lula diante da TV, como sabemos a de Dilma. Mas, na audiência da Câmara, a virulência do deputado causou revolta e instalou o furdunço entre os parlamentares que, de um lado, atacavam, e de outro, protegiam o (anti-)herói da Lava-Jato. Com o libelo de Braga, os grupos quase se atracam e o ministro da Justiça encerra seu depoimento aos gritos de "Fujão!". O ex-juiz, na saída, justifica: "A culpa é desse deputado totalmente despreparado. Glauber, acho, Glauber alguma coisa. Sabe Deus de onde veio isso aí".

Filho de uma ex-prefeita de Nova Friburgo (RJ) por dois mandatos, o parlamentar, de 37 anos, está na quarta legislatura seguida na Câmara. É duvidoso se Moro perguntou de onde vieram os deputados que o sabujaram. Carlos Jordy (PSL-RJ), também de 37 anos, outro integrante da bancada fluminense, vem de Niterói, onde se elegeu com o slogan "filhote de Bolsonaro", no ano passado. Em 2016, o presidente, então deputado, já havia sido padrinho político de Jordy, que se elegera vereador pelo PSC.

Numa cena burlesca, Moro recebeu um troféu oferecido por outro aliado. Com carreira polêmica, Boca Aberta (Pros-PR) se elegeu vereador em 2016 pelo PSC, como Jordy, mas em Londrina, a 100km de Maringá, cidade natal de Moro. Pela proximidade, é mais provável que o ministro, em suas palavras, saiba de "onde veio isso aí".

Operador de equipamento de rádio e televisão, Emerson Miguel Petriv teve o mandato na Câmara Municipal cassado, em 2017, por fazer vaquinha virtual para pagar multa eleitoral. Em 2016, foi alvo de busca e apreensão pela Polícia Federal, por suspeita de organizar a invasão de um conjunto residencial. Em junho de 2018, foi condenado a quase nove meses de prisão em regime semiaberto por injúria e difamação cometidas em vídeo publicado em redes sociais contra o então prefeito Alexandre Kireeff, em 2013.

À época, Boca Aberta rodava as ruas da cidade a bordo de uma bicicleta, batizada de "Grace Kelly", equipada com microfone e caixa de som para desancar o prefeito. Em abril deste ano, foi condenado a 22 dias de prisão em regime semiaberto por perturbar o trabalho de funcionários de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), quando era vereador. O parlamentar realizava uma fiscalização, que chamava de "blitz da saúde", durante a madrugada, e teria gritado com médicos e enfermeiros para agilizar o atendimento. Sem foro privilegiado, mesmo sendo deputado federal, ele ainda pode recorrer à segunda instância.

Carlos Jordy e Boca Aberta são exemplos dos representantes eleitos na onda Bolsonaro. Um grupo, em regra, conservador, com pouca experiência e radical. Numa autocrítica, o despreparo a que Moro atribui a Glauber Braga seria, segundo Alexandre Frota (PSL-SP), um dos baluartes dessa bancada, a marca dos recém-chegados pela direita, em contraste a experientes adversários. "A esquerda, você tem que lembrar que o mais bobo ali tem quatro mandatos", já disse Frota, ao criticar a falta de articulação do governo Bolsonaro no Congresso.

Ribamar Oliveira: "Vou resolver o caso de vocês, viu"?

- Valor Econômico

Policiais querem benefícios que foram extintos em 2003

O presidente da República é capitão do Exército. O líder do governo na Câmara é major. O líder do PSL na Câmara é delegado. O líder do PSL no Senado é major. Todos eles fizeram suas campanhas eleitorais defendendo as respectivas categorias e a bandeira da segurança pública. Agora, nada mais lógico que essas categorias esperem ser atendidas em seus interesses. Elas querem regras previdenciárias muito favorecidas em relação aos demais servidores e trabalhadores. O Congresso vai aceitar? A resposta a esta questão poderá ter desdobramentos importantes a frente.

O que querem os policiais? O direito a se aposentar com 100% da última remuneração do cargo efetivo que ocupam - benefício chamado de integralidade. E que os inativos tenham os mesmos aumentos salariais concedidos aos policiais da ativa - benefício conhecido como paridade.

A integralidade e a paridade, como regras de aposentadorias, foram extintas em dezembro de 2003 pela emenda constitucional 41, de iniciativa do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A partir de então, o cálculo do valor da aposentadoria passou a considerar a média das remunerações utilizadas para a contribuição ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS). Os aumentos das aposentadorias e pensões dos servidores passaram a ser definidos em lei específica e, agora, têm que ser iguais aos concedidos no Regime Geral da Previdência Social (RGPS).

Ricardo Noblat: Bolsonaro planta e colhe outra derrota

- Blog do Noblat / Veja

De messias a traidor

Era irresistível para um presidente acidental como ele. Distante nos últimos seis meses da proposta de reforma da Previdência, agora quando parecia que ela caminhava muito bem, o capitão Jair Bolsonaro resolveu meter-se onde não era mais chamado. Ao fazê-lo, poderá ter contribuído para que a reforma fique para ser votada no Congresso só a partir de agosto.

A interferência súbita e, como sempre, atabalhoada, se deu porque o capitão foi vaiado e acusado de traidor por policiais civis e militares insatisfeitos com o preço a pagar pela reforma. Eles cobram o tratamento especial que Bolsonaro lhes prometera antes e depois de eleito. E Bolsonaro, sem consulta ao ministro Paulo Guedes, seu ex-Posto Ipiranga, decidiu atendê-los.

“Vou resolver o caso de vocês, viu?” – anunciou Bolsonaro a um grupo de PMs. Bem que tentou. Disparou ligações para o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), relator da reforma na Câmara, e para líderes de partidos até concluir que seu desejo não seria satisfeito. Para variar, colheu mais uma derrota e deu munição aos interessados em torpedear a aprovação da reforma.

Como uma reforma que acabará com os privilégios, a acreditar-se nos seus patrocinadores, poderia conviver com mais um privilégio a ser mantido? Por que só os que vestem ou vestiram fardas merecem ser premiados na hora em que se exigem sacrifícios de todo mundo? Já não basta a desidratação da reforma que deixará de fora Estados e Municípios? Corre-se o risco de a montanha parir mais um rato.

Para Bolsonaro, pouco se lhe dá. Seu negócio é tentar segurar ao seu lado os que o elegeram, não importa o quanto isso possa custar ao país. O inferno para ele são os outros, os que lhe negaram o voto. Quando candidato, disse que apresentaria proposta de emenda à Constituição para acabar com a reeleição de presidente, governadores e prefeitos. Eleito, lançou-se candidato à reeleição.

Segue o baile, sob o comando do presidente mais desconexo que o país já conheceu.

Eugênio Bucci*: O metrô comunista e os pesadelos governistas

- O Estado de S.Paulo

Nas escadas rolantes, placas conclamam: ‘Deixe a esquerda livre’. Entendeu?

No domingo, um general ministro subiu num caminhão de som em Brasília e deu de esbravejar contra os “esquerdopatas”. É um soldado em missão. Não dará trégua. Para ele, os males do Brasil são muita esquerda, não muita saúva. Seus colegas de primeiro escalão concordam. Houve um que declarou que, no Brasil, os banqueiros são comunistas. Sabe como é, ficam lá com o capital para cima e para baixo, isso sem falar nos que insistem em usar vermelho na propaganda. No Brasil, crê o ministro, o capital financeiro filiou-se ao Komintern.

O governo está de olho. Diariamente, autoridades amaldiçoam as “ditaduras de esquerda” nas universidades públicas – e, nota de rodapé, nas particulares idem, ibidem. O chanceler anunciou em vídeo uma descoberta teórica na mesma frequência metal: o nazismo era de esquerda. Isso mesmo. Como tudo o que há de ruim na face da Terra há de ser de esquerda, aquele tal de Hitler só podia mesmo ser comunista. E não só Hitler. O mosquito da dengue anda em via de ser declarado “comunista”, bem como os radares de trânsito, as árvores, os índios e os ecologistas. Esquerdopatas. Gays, jornalistas, fiscais do Ibama e artigos da Constituição que dificultam o liberou geral das armas de fogo: comunistas de uma figa.

Ninguém aqui vai contestar a clarividência cívica das saneadoras crenças governamentais. Nada contra a sacralidade messiânica da missão maior de livrar o País do comunismo. E Deus acima de tudo – pois Deus, o governo intui, é capitalista até o último fio de cabelo branco.

Assim sendo, nada a opor quanto a isso. A incumbência de não deixar que o comunismo tome conta da nação desprotegida é por demais onerosa e exigente. Dedicados a essa causa maiúscula durante as 24 horas do dia, o chefe do governo e seus subalternos mal têm tempo de cuidar de reformas ou de estagnações econômicas, esses detalhes desimportantes. É compreensível. O comunismo dá muito trabalho, ele e seus filhotes malévolos, como a “ideologia de gênero” e o limite de pontos na carteira de motorista. A trabalheira do governo é imensa. Não sobra energia para mais nada.

À espera dos resultados: Editorial / Revista Época

Ao completar seis meses de mandato, o governo do presidente Jair Bolsonaro recebeu sinais negativos de que parlamentares vão postergar a votação da reforma da Previdência na Câmara para depois do recesso parlamentar, marcado para começar em 18 de julho.

A falta de articulação política na base governista e o aumento da tensão entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, colaboraram diretamente para a lentidão da tramitação do projeto-chave do governo. A equipe econômica passou todo o primeiro semestre de 2019 voltada exclusivamente para a reforma da Previdência, gerando expectativas agora frustradas. Os resultados econômicos que o governo tem a apresentar são projetos e respostas que tiveram origem no governo Michel Temer.

O campo das concessões e privatizações, por exemplo, aparece nos balanços governamentais como sucesso do governo Bolsonaro. É fato que foram leiloados 12 aeroportos neste ano, mas o modelo de venda havia sido desenhado no ano anterior. Tal situação também se repete nos leilões de campos de petróleo. A audaciosa meta do Ministério da Economia de arrecadar US$ 30 bilhões com privatizações até o final deste ano parece cada vez mais inexequível.

Tão necessária quanto as mudanças na Previdência, a reforma tributária segue em zona cinzenta, em que propostas diversas se chocam, com idas e vindas constantes do governo. O Legislativo tomou a iniciativa de desenhar uma reforma sem a liderança da equipe econômica. Para ser efetiva, ela precisará mexer com impostos federais, estaduais e municipais. Nenhum dos três níveis parece disposto a uma equação de soma zero. Todos querem mais para si, apontando para um impasse cuja solução exigiria um poder moderador forte.

Projeto de reforma recebe pressão renovada de lobbies: Editorial / Valor Econômico

Na reta final para a votação em plenário, o projeto de reforma da previdência atrasou na Comissão Especial, aonde se trava a batalha entre lobbies, em especial a bancada da bala, para convencer o relator Samuel Moreira (PSDB-SP) a retirar policiais federais e carreiras relacionadas à segurança pública do projeto, e incluí-los com mais benefícios no projeto que contempla os militares. O presidente Jair Bolsonaro, cujo ativismo nesta reforma foi perto de nulo, entrou em campo para apoiar os interesses de um dos grupos que mais fortemente o apoiaram até hoje.

Da forma como estava até o início da noite de ontem, a proposta de reforma permitia a economia perto de R$ 1 trilhão desejada pelo governo, com algumas gambiarras, como o aumento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) dos bancos, de 15% para 20%. Pelos cálculos da Instituição Fiscal Independente, o CSLL majorado trará receitas de R$ 40 bilhões em uma década. Ainda sobre as propostas da segunda versão do relator, a IIF calcula que as modificações feitas retirarão R$ 210,2 bilhões em economias em relação à PEC 6 proposta originalmente pelo Executivo. Como a reestimativa da potência da reforma feita pelo Executivo previu uma redução dos gastos previdenciários da ordem de R$ 1,23 trilhão, a desidratação, por enquanto, é suave.

Se passar como está pelo plenário da Câmara e pelo Senado, será a reforma de maior impacto feita até hoje. A mudança nas regras de idade mínima e de tempo de contribuição para mulheres (servidores e professoras) reduzirá a economia esperada em R$ 51,8 bilhões. A não elevação da idade para a aposentadoria rural eliminará outros R$ 49,7 bilhões, segundo a IFI. A manutenção em sua forma atual do Benefício de Prestação Continuada, e a restrição do abono salarial não mais para quem ganha um salário mínimo, mas para quem recebe 1,4 salário mínimo, aumentarão a perspectiva de despesas em mais R$ 108,7 bilhões.

Real, 25: Editorial / Folha de S. Paulo

Como no lançamento da moeda; conserto da economia depende de acerto político

Com alguma licença aritmética, não é descabido considerar que só no Plano Real, levado a cabo em julho de 1994, chegou ao fim a década perdida dos anos 1980.

Acabava ali, afinal, um longo período não apenas de baixo crescimento da renda nacional, mas de completa desorganização da economia —desrespeito recorrente a contratos privados e ao Orçamento público, taxas de câmbio oficiais e paralelas, calote da dívida externa e, claro, hiperinflação.

Não é que a moeda lançada há 25 anos tenha a marca da plena estabilidade. De lá para cá, os preços subiram a uma média próxima de 7,5% anuais, acumulando mais de 500%. Entretanto essa era a taxa verificada ao longo de apenas cinco meses anteriores ao real.

O presente aniversário se dá em momento dramático —o país vai completando outro decênio perdido em expansão do Produto Interno Bruto per capita. Persiste na sociedade e na política pública, todavia, o valor da solidez monetária.

A boa batalha: Editorial / O Estado de S. Paulo

Há batalhas que merecem ser travadas não apenas pelo objeto da disputa, mas também pela reafirmação de valores caros a seus contendores. Foi imbuído deste espírito que O Estado de S. Paulo decidiu prosseguir com a ação cível movida contra o jornal pelo empresário Fernando Sarney mesmo quando o autor optou pela desistência de seu pleito censório, em 18 de dezembro de 2009. Este jornal desde sempre quis ver a causa julgada em seu mérito, pois, além de lutar pelo direito de informar, o Estado luta pela liberdade e pelo direito da sociedade de ser informada. O esforço e a firmeza de propósito foram recompensados.

O juiz Atalá Correia, da 12.ª Vara Cível de Brasília, julgou improcedente a ação que impedia o jornal de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica. A ação da Polícia Federal (PF) apurou o envolvimento de Fernando Sarney, filho do então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), em um esquema de contratação de parentes e afilhados políticos do ex-presidente da República por meio de atos secretos do Senado. Uma liminar concedida pelo desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) – que à época mantinha notórias relações sociais com a família Sarney –, acolheu recurso interposto por Fernando Sarney contra a decisão de primeira instância que havia negado a censura prévia ao jornal.

Desde então, o que se viu foi uma longa e tortuosa batalha jurídica até que, em outubro do ano passado, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), cassasse a decisão liminar do TJDFT e remetesse o processo de volta à primeira instância do Distrito Federal para que o mérito da causa fosse julgado.

Casos do ‘laranjal’ e de Queiroz têm de ser resolvidos: Editorial / O Globo

Bolsonaro se elegeu com a promessa de combater a corrupção e não pode fingir que nada acontece a seu lado

Assim que denúncias e evidências de corrupção chegaram a seu território, o governo Bolsonaro, apesar de ter assumido com a acertada bandeira do combate ao roubo do dinheiro público, tem se comportado como vários outros: protela punições, não afasta suspeitos cercados de evidências, e usa o surrado argumento de que nada está provado.

Esquece-se de que o melhor é afastar a autoridade em questão, até que as investigações cheguem ao fim. O bom exemplo foi dado ainda pelo presidente Itamar Franco, ao destituir o chefe da Casa Civil, seu amigo Henrique Hargreaves, até que se esclarecessem denúncias feitas contra ele na CPI do Orçamento. Esclarecidas, Hargreaves reassumiu.

O governo de Jair Bolsonaro, que na campanha acenou com uma “nova política”, se comporta no figurino dos velhos costumes na vida pública, por desconsiderar as evidências do envolvimento do ministro do Turismo,

Marcelo Álvaro Antônio, no golpe do uso da cota de gênero nas eleições. A manobra é lançar candidaturas dentro da cota das mulheres, apenas com a finalidade de desviar dinheiro público do financiamento de campanha.

Antonio Machado: Cantares

Tudo passa e tudo fica
porém o nosso é passar,
passar fazendo caminhos
caminhos sobre o mar

Nunca persegui a glória
nem deixar na memória
dos homens minha canção
eu amo os mundos sutis
leves e gentis,
como bolhas de sabão

Gosto de ver-los pintar-se
de sol e grená, voar
abaixo o céu azul, tremer
subitamente e quebrar-se…

Nunca persegui a glória

Caminhante, são tuas pegadas
o caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho,
se faz caminho ao andar

Ao andar se faz caminho
e ao voltar a vista atrás
se vê a senda que nunca
se há de voltar a pisar

Caminhante não há caminho
senão há marcas no mar…

Faz algum tempo neste lugar
onde hoje os bosques se vestem de espinhos
se ouviu a voz de um poeta gritar
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar”…

Golpe a golpe, verso a verso…

Morreu o poeta longe do lar
cobre-lhe o pó de um país vizinho.
Ao afastar-se lhe viram chorar
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar…”

Golpe a golpe, verso a verso…

Quando o pintassilgo não pode cantar.
Quando o poeta é um peregrino.
Quando de nada nos serve rezar.
“Caminhante não há caminho,
se faz caminho ao andar…”

Golpe a golpe, verso a verso.

(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

Fantasía Flamenca (Claro de Luna./ Beethoven)

quarta-feira, 3 de julho de 2019

*Elio Gaspari: Fanfarronadas têm um preço

- O Globo / Folha de S. Paulo

A capitã do navio de africanos expôs o risco político do radicalismo xenófobo de Matteo Salvini

O retumbante Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália, aprendeu uma lição. Quando o barco Sea Watch 3 entrou à força no porto de Lampedusa com 40 refugiados líbios, ele anunciou a prisão da capitã Carola Rackete com a teatralidade do radicalismo fanfarrão. A entrada do navio no porto teria sido um "ato de guerra" praticado por uma embarcação "pirata".

Os 40 africanos que haviam sido resgatados pelo Sea Watch em alto-mar seriam mais um lote de desesperados e Carola Rackete, mais uma ativista dessas ONGs que azucrinam os poderes estabelecidos. Nunca se sabe quando o vento da história sopra em cima de um poderoso da ocasião. O vento soprou em cima de Salvini.

O Sea Watch tem a bandeira holandesa e Carola Rackete é alemã. O ministro das Relações Exteriores de Berlim, Heiko Maas, pediu a libertação da marinheira: "Quem salva vidas não pode ser chamado de criminoso" —exatamente o que achou a juíza que ordenou sua soltura nesta terça (2). O governo da França classificou o ato de "histeria" e o presidente italiano recomendou que se baixasse a bola. Duas vaquinhas internacionais arrecadaram mais de 1 milhão de euros para ajudar a ONG do Sea Watch.

Os refugiados não precisam ficar na Itália e não era razoável que 40 pessoas ficassem à deriva no Mediterrâneo. As leis italianas pretendem conter o êxodo de refugiados africanos, na defesa dos interesses do país, e quando a marinheira desceu no cais de Lampedusa, populares chamaram-na de "vendida". Um deles gritou que ela devia ser estuprada pelos negros que transportou. Coisa dos tempos de hoje. No século passado os europeus fizeram coisas piores e em 1944 o governo italiano colou cartazes mostrando um soldado simiesco com o uniforme americano saqueando obras de arte. Deixar barcos em alto mar, chamando os tripulantes de piratas metidos em atos de guerra, é um triste retorno, e Salvini percorreu-o.

Míriam Leitão: O custo de se tirar estados e cidades

-O Globo

Retirar estados e municípios da reforma custará R$ 520 bi em 10 anos e deixará a União com o risco de um caro socorro aos estados em breve

O custo de excluir os estados e municípios da reforma da Previdência pode chegar a R$ 520 bilhões em dez anos. Caso nenhum estado ou município faça a sua reforma, a manutenção das regras atuais impedirá uma economia de R$ 350 bilhões nos sistemas estaduais e de R$ 170 bilhões nos municipais. Ainda assim, a reforma como ficou na sua versão final nessa comissão especial é a mais ampla já feita até agora e representa, segundo calcula o governo, uma economia de R$ 1 trilhão em dez anos.

No seu voto complementar, o deputado Samuel Moreira constitucionalizou o critério de um quarto de salário mínimo como a renda

familiar per capita para a pessoa receber, após os 65 anos, o Benefício de Prestação Continuada. Para uma reforma que queria, inicialmente, desconstitucionalizar todos os parâmetros, pode parecer uma derrota. Não foi. Nesse ponto estava havendo uma sucessão de decisões judiciais dando o direito de receber o BPC a pessoas com renda familiar mais alta do que estava prevista na lei que criou o benefício. Tem havido também decisões aceitando o cálculo da renda com o desconto de várias despesas. O gasto com o BPC estava aumentando desde uma decisão do STF que deu margem a essas sentenças.

Uma mudança foi considerada uma derrota pela equipe econômica: o fim do gatilho demográfico que faria a idade mínima subir conforme o aumento da expectativa de sobrevida. Isso caiu. Obrigará, na opinião de economistas de dentro e de fora do governo, a fazer nova mudança da idade mínima num horizonte de dez anos. Houve uma redução da idade de aposentadoria das professoras, mas para o relator isso foi feito como forma de corrigir um defeito criado pela própria mudança incluída no primeiro relatório.

Merval Pereira: Na boa direção

- O Globo

Governo terá condições financeiras para retomar a proposta de capitalização num futuro próximo

A proposta da reforma da Previdência que sairá da Comissão Especial, se aprovada no plenário, abre caminho para uma futura capitalização do sistema previdenciário, embora o tema não faça parte do texto oficial.

Mas, com uma economia prevista de R$ 1 trilhão, está indicado no subtexto que o governo terá condições financeiras para retomar a proposta num futuro próximo.

A capitalização poderá ser explicada com mais detalhamento ao Congresso nos meses posteriores à aprovação da reforma. Outro tema que ainda vai levar tempo para ser resolvido é a participação dos estados e municípios.

Pode ser que se demorar mais a aprovação, passando para o segundo semestre, haja mais tempo para convencer os governadores. Com a triste certeza de que a situação de estados, de maneira geral, se deteriorará, e da economia nacional como um todo, à medida que a reforma não seja aprovada.

Uma reforma menor que R$ 900 bilhões não daria condições de formar o fundo para a capitalização, e tornaria a economia obtida em objeto de consumo de todo o governo, invertendo a lógica própria da reforma, a de poupar para as futuras gerações.

Vinicius Torres Freire: Esquerda e bolsanaristas, aliados?

- Folha de S. Paulo

Governadores sabotam reforma previdenciária nos estados; PSL ameaça negar votos

É provável que a reforma da Previdência chegue com poucas amputações ao plenário da Câmara. Isto é, no que diz respeito à contenção de despesas no governo federal, o projeto que deve ser em breve votado pelos deputados chega quase inteirinho, segundo as contas do ministério da Economia. A contenção prevista de gastos é de R$ 1 trilhão, em dez anos. Caso assim seja aprovada, será um espanto.

A questão maior, difícil de apurar na confusão dos últimos dias, é saber o quanto dos acordos costurados até agora, na Comissão Especial da Câmara, vale para o conjunto dos deputados. Sabe-se que pelo menos os deputados governistas ameaçam sabotagem. Sim, governistas. Sem os votos do indizível PSL de Jair Bolsonaro, a reforma não passa.

Quanto à Previdência de Estados e de parte dos municípios, a gente toda deveria anotar o nome de governadores que por ora conseguem sabotar a reforma, com a conivência de certos deputados. É para eles que se deve mandar a conta quando hospitais estiverem em ruínas; quando faltar equipamento para as polícias, merenda e dinheiro para pagar salários. Fora da reforma, alguns estados começam a explodir no ano que vem.

Bolívar Lamounier*: O peixe não vê a água

- O Estado de S.Paulo

A Constituição pode ser incapaz de reger os destinos da sociedade em momentos de má-fé...

Há quem singelamente acredite que certas mazelas que assolam países comparáveis ao Brasil – corrupção, violência, crime organizado – diminuem automaticamente à medida que o crescimento econômico avança e a sociedade enriquece. Que bom se o mundo fosse tão simples!

Na verdade, a relação é curvilínea. É certo que, na origem, os dois fatos coincidem. No nível mais baixo de desenvolvimento, todas essas mazelas (vou usar esse termo como abreviação) permanecem contidas. Baixo crescimento, baixa incidência de tais mazelas. Mas, com o avanço do crescimento, elas aumentam de maneira acentuada e se mantêm por muito tempo em níveis muito elevados. Só começam a declinar quando a sociedade atinge níveis muito altos de renda por habitante e bem-estar.

Por que a corrupção, a criminalidade e a violência são baixas quando o nível de riqueza econômica é baixo? Por várias razões. Primeiro, porque a riqueza móvel é diminuta e a riqueza imóvel (terra, gado...) é difícil de roubar ou de tomar pela força. Segundo, porque a maioria da população se encontra dispersa em grandes extensões geográficas, com baixa capacidade de organização e comunicação e pouca instrução. É pouco adestrada no manejo de armas – quando possui armas, fator crucial que as elites dominantes controlam sem muita dificuldade. Ou seja, tudo o que as camadas majoritárias de baixa renda não possuem as camadas dominantes têm de sobra.

Vera Magalhães: O trilhão voltou

- O Estado de S.Paulo

Ajusta daqui, mexe dali, e a reforma da Previdência voltou à cifra simbólica de R$ 1 trilhão de “economia” em dez anos. Era uma espécie de questão de honra para o ministro Paulo Guedes, que chegou a externar sua contrariedade diante da possibilidade de o texto ser desidratado.

Mas sua equipe, responsável por divulgar, ato contínuo à leitura do parecer final do relatório do tucano Samuel Moreira, o cálculo do trilhão realcançado, garante que não fez uma conta de chegada em nome da narrativa e da cifra redonda. O mérito, garante o secretário especial da Previdência, Rogério Marinho, é todo do relator, que teria introduzido mudanças capazes de, ao mesmo tempo, garantir o ganho fiscal e corrigir eventuais injustiças sociais.

Os confetes destinados a Moreira, aliás, fazem parte da tentativa do governo de distensionar a relação com o Parlamento e facilitar a aprovação do parecer na comissão e no plenário.
Nos últimos dias da negociação, governo e relator também afinaram a estratégia de inverter o ônus da inclusão ou não de Estados e municípios no texto da reforma: se governadores e prefeitos estão assim tão interessados em ser contemplados pela emenda, que trabalhem para assegurar os votos em plenário para que voltem a ela.

A ideia é “tirar do armário” sobretudo a esquerda, que faz discurso público contra o texto enquanto sonhava, em privado, com a unificação do sistema que lhe retirasse o desgaste de ter de encarar Assembleias e Câmaras em busca de aprovação.

Monica De Bolle*: O acordo UE-Mercosul

- O Estado de S.Paulo

Há risco de que o acordo não avance devido à radical mudança do governo Bolsonaro na área ambiental

O anúncio de que após 20 anos de negociação finalmente a União Europeia e o Mercosul chegaram ao tão esperado acordo de livre-comércio foi notícia e tanto na semana passada. Para quem defende a liberalização comercial e a abertura da economia brasileira, o acordo abre caminhos para que finalmente o Brasil saia do isolamento. Os que acompanham essa coluna além de outros artigos que já escrevi sobre o tema sabem que há tempos defendo a abertura com base na ampla literatura empírica existente sobre os efeitos de longo prazo da abertura comercial no crescimento, na produtividade, nas transferências de tecnologia, nos investimentos.

Dito isso, acordos comerciais são notoriamente difíceis de explicar para o público geral pois as minúcias e detalhes técnicos é que determinam a extensão dos benefícios pretendidos e se os números veiculados pelos governos envolvidos refletem adequadamente as medidas que o texto final contém. Antes de prosseguir, advirto: muito se tem falado nos últimos dias sobre o acordo com o Mercosul. No entanto, ainda não dispomos do texto completo do acordo para analisá-lo. Dispomos tão somente de um documento de 17 páginas publicado pela UE resumindo alguns pontos do acordo preliminar.

O primeiro ponto importante: o que foi anunciado na semana passada trata-se de um acordo preliminar, não final. O acordo final só virá após a sequência de revisões técnicas e jurídicas a serem feitas pelos países envolvidos, o que significa que as negociações ainda não terminaram.

E, o que se sabe até agora? Não muito. Do texto de 17 páginas é possível extrair alguns detalhes sobre o acesso aos mercados para bens industriais e agrícolas, mas acordos modernos contém bem mais do que apenas a redução de tarifas e a abertura de mercados – embora o resumo da UE forneça lampejos do conteúdo dos demais capítulos, ainda é difícil saber o que de fato foi negociado nas áreas de propriedade intelectual, e-commerce, regras de origem, barreiras técnicas ao comércio, convergência regulatória, além de tantos outros temas complicados e bastante técnicos.

Luiz Carlos Azedo: O mito do “homem cordial”

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça”

O “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, não é bem aquilo que o senso comum deduz à primeira vez que se depara com o conceito-chave de sua obra seminal, Raízes do Brasil. A expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza, vem de “cordis”, em latim, ou seja, relativo a coração. Para Buarque, o brasileiro não suporta o peso da própria individualidade, precisa “viver nos outros”. A apropriação afetiva do outro seria um artifício psicológico e comportamental predominante na sociedade brasileira, parte integrante do nosso processo civilizatório.

A cordialidade “pode iludir na aparência”, explica Buarque. A polidez do “homem cordial” é organização da defesa ante a sociedade. “Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.” O brasileiro dispensa as formalidades, pretende estreitar as distâncias, não suporta a indiferença, prefere ser amado ou odiado.

Em grande parte, a “fulanização” da política brasileira vem desse viés antropológico, embora nossas instituições políticas sejam surpreendentemente robustas, como destacou recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao comentar a relação do presidente Jair Bolsonaro com o Legislativo: os partidos são fracos, mas o Congresso é forte. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essas características do “homem cordial”. Num primeiro momento, nas relações interpessoais; depois, no processo político, principalmente nas disputas eleitorais.

Bolsonaro e sua antítese, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi condenado e está preso, exacerbam essas características da política brasileira. Ambos flertam com o populismo, buscam aproximação afetiva com aliados e eleitores, protagonizam a exacerbação das paixões políticas. Ambos se enquadram no “tipo ideal” da obra de Sérgio Buarque, se analisarmos com esse olhar o papel de cada um na vida nacional.

E o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que ontem estava sendo sabatinado na Câmara, por sua atuação heterodoxa, digamos assim, na Operação Lava-Jato? Pelas próprias características de seu trabalho como juiz federal, seu comportamento formal e circunspecto não se enquadra nesse tipo ideal do “homem cordial”. Ou melhor, não se enquadrava, até serem reveladas as conversas que mantinha com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato.

Malu Delgado: Reeleição em Cristo

- Valor Econômico

Bolsonaro estará cada vez mais em palcos evangélicos

Os Policiais Militares em Cristo (PMs em Cristo, o segmento evangélico da corporação no Estado de São Paulo) especulam em publicações internas e nas redes sociais que o presidente Jair Bolsonaro poderá ser a grande atração do congresso anual dos militares cristãos evangélicos do Brasil, a ser realizado em Atibaia (SP), em outubro deste ano. O pastor Silas Malafaia será um dos palestrantes e o deputado federal Marco Feliciano é outro que deve prestigiar o encontro. A presença de Bolsonaro em palcos evangélicos será cada vez mais naturalizada, sobretudo depois que o presidente colocou a reeleição na agenda política aos seis meses de mandato. Este é, sem dúvida, um terreno no qual Bolsonaro se move com desenvoltura, especialmente ao conjugar o passado de militar com o futuro que projeta para 2022 e que, em certa medida, pode estar nas mãos do eleitor evangélico.

Bolsonaro costurou com precisão a proximidade com os neopentecostais ao longo dos últimos anos. Deixar escapar esse flerte tão precoce com a reeleição justamente no dia em que foi o primeiro presidente a colocar os pés na Marcha para Jesus em junho, na capital paulista, está longe de ser um descuido retórico do capitão. Na edição da Marcha em 2018, em plena campanha eleitoral, Bolsonaro apareceu ao vivo na Rede Gospel de Comunicação e insinuou o vaticínio: "Caso seja a vontade de Deus que eu venha a ocupar a cadeira presidencial, vocês evangélicos, cristãos, de todas as religiões, até mesmo quem não tem religião, participará (sic) de nosso governo para o bem de todos". Na edição de 2019, veio o agradecimento, em meio à multidão evangélica, com ele agora já na cadeira presidencial: "Vocês foram decisivos para mudar o destino desta pátria maravilhosa chamada Brasil".

Bem antes de a profecia de Bolsonaro se confirmar, o sociólogo Luiz Vicente Justino Jácomo pesquisou, em sua tese de mestrado, defendida em 2016 na USP, as convergências entre religião e militares, coincidentemente dois setores que, transpostos ao Congresso atual, sustentam o governo Bolsonaro (as bancadas da bíblia e da bala). Jácomo se debruçou sobre os efeitos das religiões e da religiosidade na Polícia Militar de São Paulo. Naquela época o sociólogo já apontava que os PMs em Cristo (Associação dos Policiais Militares do Estado de São Paulo) eram o maior grupo religioso da polícia "em abrangência, em influência e em ambição". Segundo o próprio grupo, há em São Paulo pelo menos 25 mil militares reformados e da ativa espalhados em 50 núcleos na capital e no interior.

Cristiano Romero: Crise longa desafia política e pacto social

- Valor Econômico

Desemprego por muito tempo inabilita trabalhadores

A Grande Recessão brasileira (de 2014 a 2016), seguida de três anos de crescimento medíocre, já incluído na conta o ano corrente, criou um enorme desafio para o sistema político e a sociedade. Não há democracia que resista ilesa à convivência, por tanto tempo, com um quadro desolador como o atual. São 13 milhões de desempregados, miséria crescente, queda do PIB capita em termos reais (já descontada a inflação), aumento da violência etc.

A situação só não é pior porque, felizmente, a nação dispõe hoje de uma rede de proteção social que assegura a transferência de alguma renda a quem não tem nada e àqueles que, aos 65 anos, já não possuem capacidade de trabalhar. Ademais, a recuperação do piso das aposentadorias pagas pelo INSS, ocorrida nos últimos 20 anos, também tem ajudado a amortecer os efeitos de uma tragédia anunciada desde 2011.

Naquele ano, o governo Dilma Rousseff, com a conivência inclusive de setores do empresariado e do mercado financeiro, destruiu a política econômica bem-sucedida e herdada de seus dois antecessores e que, em última instância, levou-a à Presidência da República. Um dos efeitos na política foi a eleição de Jair Bolsonaro, o primeiro político de extrema direita a subir a rampa do Palácio do Planalto - até então, os eleitores sempre evitaram votar nos extremos do espectro político.

Apesar da sucessão de crises econômicas vividas desde 1982, quando o país quebrou e o modelo de substituição de importações foi à breca, o Brasil sempre se recuperou rapidamente, do ponto de vista da atividade econômica. Além dos problemas estruturais que impedem que a economia aumente a sua capacidade de crescer, como carga tributária complexa e elevada e excesso de burocracia, uma variedade de choques vem adiando a retomada.

A União vive situação falimentar. Desde 2014, falta dinheiro todo ano para bancar as despesas primárias, isto é, tudo, menos os juros da dívida. As obrigações do Estado só vêm sendo cumpridas graças à elevação da dívida pública, cujo patamar atualmente é o dobro da média das economias emergentes. Estados e municípios, com poucas exceções, estão quebrados.