terça-feira, 28 de abril de 2020

Opinião do dia – Hannah Arendt*

Mas permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única 'mensagem' que o fim pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, equivale à liberdade do homem. Initium ut esset homo creatus est - 'o homem foi criado para que houvesse um começo', disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse começo; ele é, na verdade, cada um de nós.

*Hannah Arendt, “As Origens do Totalitarismo”

Paulo Fábio Dantas Neto* - Despolarização política: possibilidades estratégicas de uma tática ameaçada

Duas crises, dois scripts
O conflito entre o presidente Bolsonaro e o ex-ministro Sergio Moro, em torno da substituição do comando da Polícia Federal e a consequente exoneração do segundo, a pedido, provocaram um terremoto no governo federal e detonaram nova crise política. A óbvia repercussão desses fatos palacianos sobre as bases de apoio social ao Presidente constitui um prato cheio para o jornalismo político e para a dinâmica das redes sociais, a ponto de colocarem em segundo plano, no noticiário, a crise sanitária e econômica, ambas com repercussão social muito mais amplas. Isso resulta de uma interpretação da crise política como crise institucional, que se torna possível em face dos ingredientes de caráter criminal - crimes comuns e de responsabilidade política - incluídos na mútua lavagem de roupa suja em público, promovida por essas duas destacadas personagens políticas.

Contraste evidente com a crise política que culminara, uma semana antes, na exoneração, pelo Presidente, do ex-ministro da Saúde Luiz Mandetta. A crise reforçou a despolarização política, em favor de maior unidade do país para enfrentar a crise sanitária e mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Deu lugar a uma convergência entre sociedade política e sociedade civil, com forte adesão popular à política do MS e de governadores, provocando crescente isolamento do presidente, que em situação de crescente solidão, atacava moinhos de vento no intuito de sabotar o novo ambiente político. Enquanto enfrentava crises do mundo real, o sistema político, tendo o Congresso como eixo articulador principal, articulado a governadores, acumulava legitimidade para, quando efeitos mais agudos da epidemia amainassem, convocar a sociedade a resolver, civicamente, o problema do presidente subversivo. A consciência de que é preciso afastá-lo já se consolidara e ganhava respaldo social, ao tempo em que a prudência política esperava momento próprio para fazê-lo sem agravar a insegurança pública.

Com o caso Moro, dá-se o oposto. Retorna o clima de polarização política, com aceleração de um processo que tende a detonar desde já uma luta pelo impedimento do presidente. Para não atropelar o estado democrático de direito, não poderá ser processo sumário. Precisará dar tempo a investigações minimamente idôneas e a reações da opinião pública a cada passo do processo. Além disso, como as evidências da conduta do presidente e seu grupo de seguidores demonstram, não será passeio imune à explosão de violência política de dimensões imprevisíveis. Ainda que o processo detonado pelo duelo de mitos se resolva pacifica e mais rapidamente, pela mão do STF, precisará continuar no Congresso, comprometendo sua concentração na inadiável missão de dar governabilidade ao país nas circunstâncias de uma pandemia que se encontra em momento de crescente agravamento.

Analistas têm dito que o caso Mandetta virou passado longínquo após o terremoto Moro. Tentarei argumentar em sentido oposto, tanto quanto às relevâncias dos dois processos para a política brasileira como quanto à atualidade de ambos, do ponto de vista das suas consequências sociais. Para isso, é preciso fazer um esforço retrospectivo preliminar, na direção desse suposto passado remoto. Para isso, sirvo-me, em parte, de afirmações já feitas numa entrevista ao jornal Tribuna da Bahia, de 20.04.2020.

Com a descontinuidade política e gerencial gerada pela substituição do ministro da Saúde, a sociedade perdeu a orientação segura, transparente e diária que vinha sendo dada pelo Ministério. O próprio Estado sofreu, porque suas instituições, flagrantemente em desacordo com a decisão presidencial, ficaram ainda mais tensionadas, fato que se torna mais visível com a sua possível contaminação pela crise política seguinte. E o governo, particularmente, porque precisou alterar conceitos políticos, procedimentos técnicos e rotinas administrativas em pleno desenrolar de uma situação crítica.

Merval Pereira - Presidencialismo inepto

- O Globo

O próprio presidente admitiu que lhe faltava ‘tinta na caneta’, o que significa que estava bloqueado

A dificuldade que o presidente Bolsonaro encontrou para nomear o substituto de Sérgio Moro no ministério da Justiça é mais uma demonstração do que o cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, chama de “degradação do presidencialismo”. O próprio presidente admitiu que lhe faltava “tinta na caneta”, o que significa que estava bloqueado por circunstâncias políticas que o impediam de nomear seus preferidos.

Temia que o Judiciário ou o Congresso barrassem a nomeação de Jorge Oliveira para o ministério e do delegado Ramagem para a Polícia Federal, por serem amigos de seus filhos, que são objeto de investigações.

Os presidentes eleitos a partir de Dilma Rousseff em 2014, passando por Michel Temer e chegando até Bolsonaro hoje encontraram dificuldades para governar diante de crises com o Legislativo e o Judiciário.

Cercados por processos de impeachment, os dois primeiros viram seus poderes serem desidratados por decisões como a de fevereiro de 2016, quando Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, suspendeu, em decisão monocrática, a nomeação do ex-presidente Lula para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil.

Em janeiro de 2018, o juiz Leonardo da Costa Couceiro, titular em exercício da 4ª Vara Federal de Niterói, decidiu suspender a nomeação de Deputada Federal Cristiane Brasil para chefiar o Ministério do Trabalho de Temer, decisão avalizada pelo STF.

Carlos Andreazza - Trocando de pele

- O Globo

Bolsonarismo já se movia para a ruptura em tempos de paz

Sob regência da mentalidade autoritária e crispado pelo espírito do tempo lavajatista, também autoritário, a que Sergio Moro dá materialidade, o Brasil está em depressão política profunda desde, pelo menos, 2013; doença de que Jair Bolsonaro, a ascensão da revolução reacionária bolsonarista, é a mais grave infecção.

Infecção, um projeto de poder autocrático, que se vale da linguagem totalitária, que enfraquece as imunidades do organismo institucional, que progride disparando estímulos musculares contraditórios, desequilibrantes, atrofiantes, que se espalha induzindo choques entre órgãos, que se implanta produzindo inimigos artificiais, pequenas e frequentes convulsões, transformando o sangue — as gentes daquele sistema — em elemento hostil ao corpo que lhe dá circulação, até que a engrenagem, corrompida pela exaustão, sucumba, submetida pelo vírus, submissa à doença.

O bolsonarismo é isso. Já se movia para a ruptura em tempos de paz. A pandemia apenas faz acelerar o processo destrutivo em que se enraíza seu projeto de poder. A Covid-19 é oportunidade; assim como se Bolsonaro, o núcleo difusor das pestes dentro da peste, instrumentalizasse a responsabilidade alheia para dar vazão a seu intento autocrático. A aposta em que seus arreganhos autoritários estarão protegidos— enquanto durar a pandemia — pelo receio ponderado de que a deflagração de processos contra si resultasse no trauma da ingovernabilidade em meio aos já tantos traumas da crise atual e àqueles derivados das crises dentro da crise forjadas pelo presidente.

Bernardo Mello Franco - Negócio de família

- O Globo

Bolsonaro confunde a administração pública com um negócio familiar. Trata a Presidência da República como extensão da sua casa na Barra da Tijuca

Jair Bolsonaro confunde a administração pública com um negócio familiar. Trata a Presidência da República como extensão da sua casa na Barra.

No dia da posse, o capitão instalou o filho do meio no Rolls Royce presidencial. Foi o primeiro ato de um mandato marcado pela influência indevida do clã em assuntos de governo.

Os filhos de Bolsonaro já nomearam e demitiram ministros. Ernesto Araújo era um diplomata inexpressivo, que nunca havia chefiado missão no exterior. Virou chanceler por indicação de um filósofo de Facebook e do deputado Eduardo Bolsonaro.

O general Santos Cruz é um militar respeitado, que trazia alguma racionalidade às reuniões no Planalto. Foi derrubado da Secretaria de Governo porque resistiu aos avanços do vereador Carlos Bolsonaro sobre as verbas de publicidade.

Ao pedir demissão, na sexta passada, o ex-ministro Sergio Moro acusou o presidente de tentar interferir na Polícia Federal. Desta vez, o objetivo seria travar as investigações sobre quem financia e controla as milícias virtuais.

José Casado - Na pandemia e sem plano

- O Globo

Guedes anunciou que tudo segue como antes

Há quatro semanas, Jair Bolsonaro recebeu um esboço de plano para criação de 1.008.635 empregos nos próximos dois anos. Encomendara o projeto a assessores, militares na reserva, e aos ex-deputados Rogério Marinho (PSDB-RN), ministro do Desenvolvimento, e Onyx Lorenzoni (DEM-RS), da Cidadania.

Bolsonaro entregou o programa ao chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto. Atravessaria os próximos dois anos em campanha pela reeleição, inaugurando obras com 42 mil novos empregos a cada mês. A pandemia já delineava um cenário tétrico, com 200 mortes, mas ele se mantinha no modo ignorância desdenhosa: “Outros vírus já mataram muito mais”. Já decidira demitir Luiz Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça).

Marinho e Onyx estavam ajudando-o a abrir as portas do governo a lideranças políticas notórias pelo clientelismo. Se reuniram com Paulo Guedes, da Economia. Sobraram divergências e ressentimentos, com excesso de acidez entre Guedes e Marinho. A “agenda única” escanteava Guedes, e invertia sua proposta liberal, impondo protagonismo ao Estado na saída da crise. Era uma rasteira no “Posto Ipiranga”, dada pelo presidente, sob o bastão de comando ao chefe da Casa Civil.

Pablo Ortellado* Política de rastreamento

- Folha de S. Paulo

Tecnologias que monitoram a cadeia de contaminação do coronavírus precisam respeitar a privacidade

Para planejarmos a saída do isolamento, provavelmente precisaremos adotar políticas de rastreamento digital, seja para acompanhar a dinâmica de movimentação das pessoas, de maneira agregada e anonimizada, seja para acompanhar a movimentação individual.

Esse monitoramento agregado e supostamente anonimizado já está sendo feito. Ele é a base dos relatórios com índices de isolamento social produzidos por empresas como a Google ou pelos governos a partir de dados das empresas telefônicas. Se realizado de maneira agregada, anonimizada e incluindo ruídos para impedir que se identifiquem indivíduos, pode conciliar proteção à privacidade e capacidade de retratar com precisão a adesão ao isolamento social.

Mas começam a emergir tecnologias para monitorar individualmente a infecção e controlar a cadeia de transmissão. Essas tecnologias apresentam riscos muito maiores à privacidade e são particularmente preocupantes quando adotadas por governos com vocação autoritária, como é o caso do governo brasileiro.

Governos europeus começaram a discutir a adoção de políticas de rastreamento individual que sejam compatíveis com um alto nível de proteção à privacidade.

Luiz Carlos Azedo - A calmaria

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A preocupação de Bolsonaro era acabar com os boatos de que Paulo Guedes estaria desembarcando da equipe, em razão das divergências com os militares”

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), jogou um balde de água fria nas articulações para dar início a um processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, o que depende dele. Uma de suas atribuições é aceitar ou arquivar, monocraticamente, os pedidos de impeachment. “Processos de impeachment e possibilidade de CPIs precisam ser pensadas e refletidas com muito cuidado. Acredito que o papel da Câmara dos Deputados neste momento, nos próximos dias, é que a gente volte a debater, de forma específica, a questão do enfrentamento ao coronavírus”, afirmou, em entrevista coletiva na Câmara. Nesta semana, acaba o seu prazo de 10 dias para informar ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello sobre os pedidos que já chegaram à Câmara, que acusam Bolsonaro de crime de responsabilidade, tanto na demissão de Moro como na postura diante da epidemia de coronavírus.

A comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI) para investigar as denúncias do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre tentativas de interferências indevidas de Bolsonaro na Polícia Federal (PF) está no telhado. Segundo o ex-ministro, Bolsonaro queria informações sobre inquéritos policiais e relatórios de inteligência, o que não foi aceito pelo ex-juiz da Lava-Jato, que se demitiu da pasta fazendo muito barulho. Nos bastidores da Câmara, a coleta de assinaturas para a instalação da CPMI já foi iniciada, mas há resistências de parte do Centrão e dos deputados bolsonaristas. Maia mantém distância regulamentar da mobilização, não quer tomar partido.

Ricardo Noblat - Novo ministro da Justiça foi escolha dos generais do Planalto

- Blog do Noblat | Veja

Bolsonaro recua, mas dá razão a Moro
A reunião foi tensa e os ministros militares com gabinetes no Palácio do Planalto levaram muitas horas para convencer o presidente Jair Bolsonaro a desistir da nomeação de Jorge Oliveira, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, para a vaga de ministro da Justiça aberta com a demissão de Sérgio Moro.

Argumentaram que Oliveira na Justiça e o delegado Alexandre Ramagem na direção da Polícia Federal seriam vistos como uma solução caseira que exporia Bolsonaro a críticas e que poderia ser anulada pelo Supremo Tribunal Federal. De resto, reforçaria a acusação de Moro de que ele quer aparelhar o ministério.

Bolsonaro ouviu outra vez o argumento de que seu governo poderia chegar ao fim antes da hora por causa de uma série de erros que ele tem cometido – os mais recentes, a demissão de Henrique Mandetta do Ministério da Saúde em meio a uma pandemia e a saída de Moro, o ministro mais popular de todos.

No início da tarde, ao aparecer na rampa do Palácio do Planalto a pretexto de procurar “inspiração”, como disse, mas na verdade só para ser fotografado, Bolsonaro já havia se rendido às pressões dos generais e se fixado no nome do advogado-geral da União André Luiz de Almeida Mendonça para ministro da Justiça.

Isso não o impediria de, no final da tarde, ao retornar ao Palácio da Alvorada e esbarrar em jornalistas, mentir ao sugerir que Oliveira iria para o Ministério da Justiça. Quanto a Ramagem, deu munição de graça aos seus adversários para que afirmem que sua nomeação atende às conveniências da família presidencial.

“[Ramagem] ficou novembro e dezembro, praticamente, na minha casa. Dormia na casa da vizinha, tomava café comigo. Aí tirou fotografia com todo mundo”, disse Bolsonaro. “Foi no casamento de um filho meu. Não tem nada a ver a amizade dele com o meu filho, meu filho conheceu ele depois. E eu confio nele”.

Moro exultou com a declaração de Bolsonaro. No que de fato importa (a nomeação de Ramagem), ela significa que o presidente quer no comando da Polícia Federal alguém que possa protegê-lo e aos seus filhos. Não será tão fácil como ele imagina. A Polícia Federal é uma corporação que se dá ao respeito.

Ranier Bragon - O bolsonarismo está nu

- Folha de S. Paulo

Sob a máscara de Jair Bolsonaro sempre esteve Jair Bolsonaro

O bolsonarismo raiz, fanatizado, sempre tentou esconder seu verdadeiro rosto. Essa gente que tem aversão a pobres, exala ódio, ignorância, racismo, misoginia, homofobia, xenofobia, autoritarismo e um sem-fim de ignomínias sabia que não podia sair ao sol com sua pavorosa face sem algum manto de cobertura.

Com isso, pilantras os mais variados, que não pensariam duas vezes em embolsar o troco a mais no caixa de supermercado, passaram a propagar a sua arenga anticorrupção.

Todos de braços dados no conhecido último refúgio dos canalhas, em uma orgia verde e amarela de uma devoção tão incontida à pátria que só lhes faltava deitar ao chão e enfiar torrões de terra goela adentro. E, nesse teatro, os canastrões da própria vida buscavam convencer o mundo e a si mesmos da sua nobreza de sentimentos.

Mas agora a pornografia está explícita. Bolsonaro está nu. E o bolsonarismo terá que defender seu asqueroso modo de pensar a vida sem a desculpa esfarrapada de que quer um Brasil livre de corrupção.

Hélio Schwartsman - Cuidado com as comparações

- Folha de S. Paulo

É preciso atenção para não cair em armadilhas que podem causar confusão

Jornalistas adoramos rankings e comparações entre países —e por bons motivos. A contextualização costuma ser uma rota eficaz para a compreensão. É preciso, porém, cuidado para não cair na armadilha das comparações que confundem mais do que esclarecem.

É o caso, infelizmente, das tabelas e gráficos que põem lado a lado o número de casos e de mortes por Covid-19 em vários países. Esses dados, frise-se, são importantes para uma série de mensurações, mas a comparação direta deles revela pouco.

O ponto central é a testagem. Como cada país tem uma política diferente de testagem, o número de casos confirmados e outros indicadores que dependem dele, como a morbidade por 100 mil habitantes e a taxa de letalidade, se tornam incomensuráveis. Um país que só teste doentes graves terá, por definição, uma letalidade alta, enquanto um que vá atrás até de pacientes assintomáticos apresentará um índice mais baixo (e mais próximo do real). Há que considerar ainda que diferentes países estão em diferentes fases da epidemia.

Joel Pinheiro da Fonseca* - Agonia prolongada

- Folha de S. Paulo

Ao trair suas bandeiras, governo Bolsonaro assina sua sentença

A saída de Sergio Moro e a possível adoção do plano Pró-Brasil são duas medidas que agradam ao centrão político que Bolsonaro quer ter como aliado para garantir sua sobrevivência.

Constituem, além disso, o abandono das bandeiras que justificaram sua eleição: o combate à corrupção, a agenda econômica liberal e o ardor antissistema.

O depoimento e os prints de Sergio Moro mostram o quão comprometido está Bolsonaro com a agenda anticorrupção. Agora a pauta econômica liberal está em vias de ser abandonada também. Guedes já não devia estar muito feliz por ver seu ministério reduzido basicamente à gestão de crise.

A criação de um “Ministério da Economia” paralelo e rival (ministros Rogério Marinho, Tarcísio e Braga Netto) tocando o plano Pró-Brasil, pacotaço de gastos públicos que promete completar quase 21 mil obras pelo Brasil, é a cereja do bolo.

Bolsonaro dá declarações de apoio a Guedes, mas sabemos quanto valem suas palavras. São as ações que irão determinar o vencedor. A linha é a manutenção do teto de gastos: se for mantido, o espaço para investimentos públicos é muito pequeno, e a agenda Pró-Brasil será deixada de lado.

Por outro lado, mantida a agenda, ou o teto é derrubado ou alargam-se a tal ponto as exceções (os “créditos extraordinários”) que ele se torna letra morta. A permanência de Guedes ficaria inviável.

Vera Magalhães - Mudança de planos na Justiça mostra temor ao STF

- O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro decidiu recuar de duas apostas que pretendia fazer, de uma só vez, no truco às instituições, nomeando de uma só tacada dois “brothers” dos filhos para funções-chave na área de Justiça e segurança pública no momento em que o Supremo Tribunal Federal fecha o cerco sobre ele. Seria ousadia demais até para um presidente que se quer anti-establishment.

Decidiu deixar onde está Jorge Oliveira, o “Jorginho”, filho de um amigo da vida toda, ex-assessor dos gabinetes de dois dos Bolsonaros, Jair e Eduardo, ex-major da Polícia Militar que resolveu fazer Direito quando era assessor parlamentar, cursou uma faculdade particular de Brasília sem nenhuma reputação e se formou há um par de anos.

Em vez de Jorginho, quem vai para o lugar de Sérgio Moro é o advogado-geral da União, André Mendonça, que já tem interlocução mais avançada com ministros do STF, por ser um funcionário de carreira da própria AGU e por fazer a defesa da União junto à corte. É considerado pelos ministros mais preparado do ponto de vista jurídico, e menos carimbado como alguém da cozinha do bolsonarismo.

Aliviando a aura familiar da nomeação na Justiça Bolsonaro parece raciocinar que ganha o “direito” de colocar Alexandre Ramagem na Polícia Federal, como pretendia. O ex-chefe de sua segurança durante a campanha, amigão de Carlos Bolsonaro e inexperiente em cargos de chefia na hierarquia da PF vai assumir já tendo a pecha de alguém que chega para aliviar a barra para o clã Bolsonaro e o gabinete do ódio no inquérito das fake news, tentar reabrir a investigação da facada contra Bolsonaro em 2018 e designar superintendentes afáveis ao gosto do presidente.

Afinal, foi esse o roteiro traçado pelo próprio Bolsonaro, em pronunciamento ao lado de todos os ministros, na última sexta-feira, do que considera suas prerrogativas junto ao chefe da PF.

Eliane Cantanhêde - Por quê? Por quê? Por quê?

- O Estado de S.Paulo

A quem interessa derrubar portarias do Exército sobre armas e dobrar a munição de civis?

Não são mais apenas os próprios militares e a Polícia Federal que estranham a canetada do presidente Jair Bolsonaro derrubando três portarias do Exército sobre controle de armas de civis, como destacado na coluna “Fazendo água”, de sexta-feira. Agora, o MP quer explicações e a oposição inclui mais essa decisão do presidente nos pedidos de impeachment que se multiplicam. Bolsonaro vai empilhando, assim, a mesma pergunta: Por quê?

Por que a demissão do diretor-geral da PF agora, em meio ao caos na saúde, na economia, na política? Por que empurrar porta afora o ministro mais popular do governo? Por que bater de frente com o ministro da Saúde até demiti-lo na hora decisiva da pandemia? Por que confrontar a OMS, epidemiologistas e o mundo inteiro com as cenas patéticas e infantis contra o isolamento social? E por que, afinal, o presidente da República foi prestigiar manifestações pedindo golpe militar? Justamente diante do Quartel-General do Exército?

Assim como no pronunciamento de sexta-feira ele não respondeu objetivamente a nenhuma das acusações que o ex-juiz e agora também ex-ministro Sérgio Moro acabara de lhe fazer, Bolsonaro não responde, não explica e não dá o sentido de suas ações mais absurdas. Por isso, ele, seu governo e o País estão envoltos numa nuvem de incertezas.

Andrea Jubé - O governo claudicante

- Valor Econômico

Disputa na PF pode desencadear guerra de vazamentos

Quando o governo Bolsonaro começou, gerando altas expectativas sobre o combate à corrupção e às reformas estruturantes, predominava a percepção de que se sustentava sobre três pilares: os dois superministros Sergio Moro (Justiça) e Paulo Guedes (Economia), e o núcleo militar.

Passados 16 meses, o primeiro pilar ruiu com a saída de Moro, símbolo da Lava-Jato, enquanto os outros dois entraram em processo de erosão.

Com o governo agora claudicante, Bolsonaro tenta se equilibrar sobre uma base tão sólida como areia movediça, formada pelo Centrão e um bloco de deputados sem partido, exilados no PSL, que aguardam o Aliança pelo Brasil.

Se o governo coxeia, Sergio Moro caiu de pé, como revelou a recente pesquisa digital da Consultoria Atlas Político, mostrando que sua popularidade continua mais alta que a do presidente.

O ex-ministro saiu atirando, guardou munição para o futuro e levou com ele uma ala expressiva da Polícia Federal, que não abdicará do combate à corrupção e não aceitará o risco de esvaziamento da Lava-Jato.

Bernard Appy* - Estrutural e conjuntural

- O Estado de S. Paulo

O momento de discutir o financiamento do custo fiscal da crise não é agora, na fase aguda da crise

O necessário aumento da atuação do governo durante a crise do coronavírus tem dado margem a diversas propostas de aumento da receita pública, voltadas a financiar o déficit resultante da elevação das despesas e da queda da arrecadação.

Algumas dessas propostas – como a criação de um empréstimo compulsório sobre as grandes empresas – são completamente inconsistentes. De um lado, porque não é hora de reduzir a liquidez das empresas, já muito afetadas pela crise. De outro, porque o governo consegue se financiar voluntariamente no mercado, não havendo razão para um financiamento compulsório.

Outras propostas – em especial projetos que buscam tornar o Imposto de Renda mais progressivo – podem até ser bem-intencionadas, mas estão muito mal desenhadas. Se aprovadas, quase certamente resultariam em distorções econômicas, maior litígio entre os contribuintes e o Fisco, além de deixar abertas várias brechas para sonegação.

O Brasil tem problemas sérios em seu sistema tributário, inclusive no Imposto de Renda, que resultam em iniquidades distributivas e em ineficiências econômicas que prejudicam o crescimento. Mas a solução para esses problemas precisa ser muito bem construída. Tentar resolver um problema fiscal conjuntural com medidas elaboradas às pressas visando a resolver um problema específico – a baixa progressividade do Imposto de Renda – quase que certamente resultará num sistema tributário ainda pior que o atual.

Francisco Góes - Um Plano ‘Marshall’ que divide opiniões

- Valor Econômico

Programa Pró-Brasil aprofunda debate sobre uso de recursos públicos para investimento em infraestrutura

O debate sobre o uso de recursos públicos para obras de infraestrutura no pós-pandemia ganhou força com o lançamento do programa Pró-Brasil, coordenado pela Casa Civil da Presidência, na semana passada. Sob o apelido de Plano Marshall, em referência ao apoio à reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra, o programa é tido, pelas alas política e militar do governo, como instrumento importante na recuperação da economia. Mas a iniciativa vem sendo alvo do bombardeio de economistas e da própria área econômica, liderada pelo ministro Paulo Guedes, pelo potencial destrutivo das contas públicas em momento em que os gastos estão concentrados no combate ao coronavírus e seus efeitos.

Embora seja desejável planejar investimentos setoriais para permitir aos investidores, por exemplo, calcular a taxa interna de retorno, há ceticismo entre economistas que seja possível tirar do papel número considerável de projetos em curto espaço de tempo. “Achar que o investimento em infraestrutura vai ser a base para a recuperação pós-pandemia, no contexto institucional do Brasil, esquece”, diz um economista.

A crítica faz referência à dificuldade do Brasil de executar obras no prazo e no custo originais ou, o que é pior, deixá-las incompletas por anos ou décadas a fio. Essa tradição, da qual ninguém pode se orgulhar, se explica por falta de planejamento, pelo desenho mal feito de concessões de obras públicas, por lacunas regulatórias e pela falta de bons projetos de engenharia. O Pró-Brasil prevê aportes de recursos públicos de R$ 30 bilhões até 2022 e a criação de 1 milhão de empregos no período.

Míriam Leitão - Sinal pró-Guedes fortalece governo

- O Globo

Se o governo perdesse Guedes seria mais um desmoronamento, mas o ministro prometeu uma retomada ainda incerta

O sinal do presidente Bolsonaro de fortalecimento do ministro Paulo Guedes veio na hora certa, porque havia ruídos demais se acumulando na equipe econômica e na própria economia. Mas a frase do presidente de que “o homem que decide a economia é um só, chama-se Paulo Guedes” não pode ser comprada pelo seu valor de face. Bolsonaro várias vezes atropelou o seu ministro da Economia. A entrevista acabou com a dúvida gerada pelo plano Braga Netto. Ontem, na equipe se respirava aliviado pelo recado de que Guedes continua sendo o condutor da política econômica e também pela confirmação da emenda aprovada no governo Temer. “Para que falar de derrubar o teto, se é o teto que nos protege durante a tempestade”, disse Paulo Guedes.

O passo que estava sendo imaginado em áreas do governo era o de retirar as despesas com investimento público do cálculo do teto de gastos. Isso tem muitos defensores. O problema é que se fosse de fato proposto, seria o início de uma mudança completa de rumo. Um membro da equipe, com quem conversei, foi taxativo no domingo. “Se acontecer isso todo mundo sai”. Paulo Guedes, antes da conversa com o presidente, já havia dito para a equipe que ele não aceitaria essa mudança de rumo. Se Guedes saísse agora, com toda a sua equipe, seria mais um desmoronamento em um governo já fragilizado pelo comportamento errático e conflituoso do presidente. Por isso, o movimento de ontem, logo de manhã, ajudou o próprio governo.

Antes da pandemia, Bolsonaro havia dado sinais de dúvida em relação à agenda de reformas. Isso ficou claro no adiamento do envio da reforma administrativa. Primeiro ele disse que ela seria discutida com os outros ministros, depois marcou e desmarcou diversas vezes a data de envio. Por fim, deixou a proposta em banho-maria. O presidente disse a Guedes que não queria abrir uma briga com o funcionalismo. E sugeriu mudanças que enfraqueceram a reforma. Ontem, sintomaticamente, Paulo Guedes fez apenas um apelo para que o funcionalismo não peça aumento salarial. Aos estados impôs como condição para o socorro a proibição de reajuste por dois anos. Isso não foi feito para o servidor federal.

Voto de confiança dado a Guedes traz alívio pontual

Mercado vê com certo alívio voto de confiança do presidente Jair Bolsonaro ao ministro da Economia, mas ativos ainda sofrem com crise política

Marcelle Gutierrez, Marcelo Osakabe, Victor Rezende e Ana Carolina Neira e Lucas Hirata | Valor Econômico

SÃO PAULO - Depois de muita apreensão nos últimos dias, o mercado viu com certo alívio o voto de confiança dado pelo presidente Jair Bolsonaro ao ministro da Economia, Paulo Guedes. Embora a crise política esteja longe do fim, a reaproximação ajudou a reverter parte das preocupações dos investidores sobre a derrocada das políticas do economista e até de uma substituição no cargo. O dia foi de recuperação para o Ibovespa, após o tombo de 5,45% na sexta-feira, mas não suficiente para retomar os 80 mil pontos. No câmbio, ainda prevalece a busca por proteção e o dólar voltou a subir com força durante parte da sessão, alcançando R$ 5,72 na máxima do dia.

Ontem, o principal índice de ações do país fechou em alta de 3,86%, aos 78.239 pontos, respaldado também pelo avanço das bolsas globais com as sinalizações de reabertura da economia em alguns países na Europa e Estados americanos. O volume financeiro do Ibovespa somou R$ 18,4 bilhões, um pouco acima da média diária de abril, de R$ 17,9 bilhões.

No câmbio, as preocupações sobre a capacidade do governo de entregar resultados da agenda de reformas após a retomada da crise do novo coronavírus ainda pesam. Ao mesmo tempo, os riscos fiscais ajudam a manter as taxas de juros de longo prazo em nível elevado, em uma evidência clara do prêmio de risco que os investidores exigem para apostar no país. A taxa do contrato de Depósito Interfinanceiro (DI) para janeiro de 2027, por exemplo, subiu de 8,12% para 8,42%.

Bolsonaro afaga Guedes, mas mercado reage com cautela

Presidente atuou pessoalmente para prestigiar o ministro da Economia, Paulo Guedes, e afastar os rumores de que o auxiliar estaria fragilizado

Por Lucinda Pinto, Cristiano Zaia e Rafael Walendorff | Valor Econômico

BRASÍLIA E SÃO PAULO - Chegou ao fim, no mercado financeiro, o apoio incondicional ao governo Bolsonaro que prevaleceu desde a sua posse. Ontem, mesmo em meio à tentativa do presidente de prestigiar publicamente o ministro da Economia, Paulo Guedes, participantes do mercado reagiram com cautela. A demissão dos dois ministros mais populares - Sérgio Moro (Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (Saúde) -, paralelamente à fritura de Guedes, que foi excluído de decisões sobre o lançamento do Plano Pró-Brasil para reanimar a economia, abalou a confiança.

Para agentes de mercado, o principal cenário deve ser parecido ao do governo Temer, após o vazamento de conversa do presidente com um empresário, em maio de 2017. Depois disso, o então presidente não conseguiu a provar mais nada de relevante no Congresso. Este é o temor em relação à gestão atual.

Bolsonaro fez publicamente um afago em Guedes. “O homem que decide economia no Brasil é um só, chama-se Paulo Guedes. Ele nos dá o norte, nos dá recomendações e o que realmente devemos seguir”, disse após reunir-se com o ministro e outros auxiliares.

O Ibovespa, principal índice da bolsa, reagiu bem, fechando o dia com alta de 3,86%, mas, na sexta-feira, quando Sergio Moro foi demitido e saiu fazendo acusações contra Bolsonaro, recuara 5,45%. A taxa de câmbio, outro indicador que mede o humor de investidores na política econômica, voltou a subir - o dólar foi a R$ 5,72, mas, no fim do dia, recuou para R$ 5,65, após intervenções do Banco Central.

Bolsonaro permitiu a Guedes unificar a área econômica numa só pasta, mas dois ministros de outras áreas - Rogério Marinho e Braga Netto - foram os protagonistas do plano de obras Pró-Brasil, comparado de forma pejorativa por Guedes ao PAC da ex-presidente Dilma.

Guedes vence batalha, mas haverá outras – Editorial | O Globo

Apoio de Bolsonaro revigora ministro, porém, proximidade do Planalto com o centrão é ameaça

Na instabilidade que caracteriza o governo, reflexo do próprio chefe, a manhã de ontem foi de recuperação do ministro da Economia, Paulo Guedes, colocado à margem nos últimos dias, enquanto ganhava espaço no Planalto a alternativa “desenvolvimentista” do programa Pró-Brasil, um arremedo de plano de obras de infraestrutura, a serem financiadas basicamente por dinheiro público. Por ser uma iniciativa que vai na contramão do que pensam corretamente Guedes e equipe, fizeram-se apostas em que, depois da queda de Sergio Moro, um dos dois “superministros” que tomaram posse em janeiro de 2019, estaria sendo finalizado o cadafalso para o outro.

Depois da oportuna conversa de realinhamento mantida no início do expediente no Palácio da Alvorada com Bolsonaro, Paulo Guedes ouviu do próprio presidente, ao seu lado, diante de microfones e câmeras, que ele “é o homem que decide a economia no Brasil”. Do ministério estavam presentes a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, muito interessada na melhoria da malha de transportes e de portos, Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, que com o Pró-Brasil ou sem ele tem projetos importantes a viabilizar, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, da equipe de Guedes.

Não se sabe se o “Posto Ipiranga” da campanha, dono de todas as respostas econômicas do candidato Bolsonaro, foi reinaugurado. Mas no momento em que anda com o espírito especialmente conturbado, foi a mais sensata decisão que Bolsonaro tomou. Ao falar depois do presidente, Paulo Guedes voltou a garantir que o Brasil não estará no caminho da Argentina e da Venezuela — casos de fracasso na política e na economia — e prometeu que passada a “primeira onda”, da crise na saúde, o país enfrentará a “segunda”, da economia, e sairá dela “mais forte”.

Em perigo, Bolsonaro prestigia Guedes – Editorial | O Estado de S. Paulo

Presidente decidiu conter o desmoronamento de seu governo e prestigiar o ministro, seu fiador diante do mercado e trava contra um surto de pânico financeiro

Acuado por investigações e ameaçado por graves denúncias, o presidente Jair Bolsonaro decidiu conter o desmoronamento de seu governo e prestigiar o ministro da Economia, Paulo Guedes, seu fiador diante do mercado e trava de segurança contra um surto de pânico financeiro. “O homem que decide economia no Brasil é um só, chama-se Paulo Guedes”, disse o presidente, ontem de manhã, na saída do Palácio da Alvorada. Ninguém pode dizer quanto tempo essa disposição vai durar. No fim de semana o ministro ainda era apontado por analistas políticos e por fontes do mercado como a provável bola da vez, depois da saída do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro.

Cinco dias antes, sem a presença de um único membro da equipe econômica, o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, havia lançado o plano de investimentos Pró-Brasil. “Nada está descartado”, respondeu o presidente, na ocasião, quando jornalistas quiseram saber se haveria afrouxamento do ajuste fiscal. O ministro Guedes e seus companheiros estavam sendo claramente desqualificados como condutores da política econômica. Em contrapartida, pareciam ganhar peso nas decisões econômicas o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.

Uma nova crise política em poucos dias mudou o cenário. Ao tentar interferir na Polícia Federal, o presidente Jair Bolsonaro perdeu o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro. Foi mais um lance custoso para a imagem presidencial, já prejudicada pela demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Nesses dois episódios o presidente deu prioridade a seus interesses privados – eleitorais e familiares. No primeiro, tentou subordinar a política da saúde ao objetivo de rápida abertura das atividades econômicas. O ministro Mandetta, mais alinhado aos critérios da Organização Mundial da Saúde, propunha política mais prudente. Seria necessário, segundo ele, programar cautelosamente, e de acordo com as condições de cada região, o abandono do isolamento social. A reativação mais veloz poderia obviamente servir aos interesses eleitorais do presidente, se nenhum desastre sanitário ocorresse. Mas Bolsonaro parece nunca ter levado a sério esse risco.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Em perigo, Bolsonaro prestigia Guedes – Editorial | O Estado de S. Paulo

O Presidente decidiu conter o desmoronamento de seu governo e prestigiar o ministro, seu fiador diante do mercado e trava contra um surto de pânico financeiro

Acuado por investigações e ameaçado por graves denúncias, o presidente Jair Bolsonaro decidiu conter o desmoronamento de seu governo e prestigiar o ministro da Economia, Paulo Guedes, seu fiador diante do mercado e trava de segurança contra um surto de pânico financeiro. “O homem que decide economia no Brasil é um só, chama-se Paulo Guedes”, disse o presidente, ontem de manhã, na saída do Palácio da Alvorada. Ninguém pode dizer quanto tempo essa disposição vai durar. No fim de semana o ministro ainda era apontado por analistas políticos e por fontes do mercado como a provável bola da vez, depois da saída do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro.

Cinco dias antes, sem a presença de um único membro da equipe econômica, o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, havia lançado o plano de investimentos Pró-Brasil. “Nada está descartado”, respondeu o presidente, na ocasião, quando jornalistas quiseram saber se haveria afrouxamento do ajuste fiscal. O ministro Guedes e seus companheiros estavam sendo claramente desqualificados como condutores da política econômica. Em contrapartida, pareciam ganhar peso nas decisões econômicas o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e o da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.

Música | Antonio Nobrega - Minha Nau

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - O Amor Bate na Porta

Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Opinião do dia – Antonio Gramsci*

A crítica do conceito de história em Croce é essencial: não terá ela uma origem puramente livresca e erudita? Somente a identificação entre história e política evita que a história tenha esta característica. Se o político é um historiador (não apenas no sentido de que faz a história, mas também no de que, atuando no presente, interpreta o passado), o historiador é um político; e, neste sentido (que, de resto, aparece também em Croce), a história é sempre história contemporânea, isto é, política. Croce, contudo, não pode chegar a esta conclusão necessária precisamente porque ela conduz à identificação entre história e política e, consequentemente, entre ideologia e filosofia.

*Antonio Gramsci. Cadernos do Cárcere, v.1, pág. 212. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006.

Marcus André Melo* - Impeachment

- Folha de S. Paulo

O impeachment competirá na agenda pública com a crise sanitária

A probabilidade de deflagração de impeachment é alta na presença de quatro fatores: escândalos, manifestações de rua, crises econômicas e presidentes com base parlamentar minoritária. Esses elementos estão presentes, mas a pandemia e a demissão de Moro afetam o resultado final de maneira não-trivial. Senão vejamos.

Foram escândalos que deflagraram a demissão de Moro, um dos esteios da coalizão que levou Bolsonaro à vitória. Aqui não há surpresas: havia incompatibilidade dinâmica entre sua permanência e as ligações perigosas da família presidencial.

Há, de fato, protestos, mas as condições para a ação coletiva massiva são mínimas dadas as medidas de distanciamento social, malgrado a repercussão robusta dos panelaços.

Além disso, o presidente conta com apoio forte de cerca de 1/5 da população e detém alguma capacidade de mobilização. O apoio difuso atingia pouco mais de metade da população, mas deverá se reduzir de forma vertiginosa dado a fratura da coalizão. Ainda assim, o núcleo duro poderá prover algum escudo protetor.

A crise econômica poderá atingir proporções bíblicas. Mas a sequência importa: a crise sanitária será concentrada nos próximos meses, a econômica incidirá com violência depois, se estendendo por alguns anos. A estratégia de transferir a culpa para governadores e a bazuca fiscal do governo terão efeitos mitigadores sobretudo nos setores de baixa renda beneficiários de transferências. As fortes perdas de apoio nos estratos médios e empresariado devido à fratura da coalizão correspondem a algum ganho naqueles setores.

Celso Rocha de Barros* - Bolsonaro perdeu a Lava Jato

- Folha de S. Paulo

Sem imagem de cruzada moral, governo passará a ser julgado como os outros

A saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça alterou o equilíbrio político estabelecido pela eleição de 2018. Bolsonarismo e lavajatismo aproximaram-se na campanha de 2018, com consequências trágicas para o Brasil. Romperam na última sexta-feira (24). Não foi pacífico.

Em seu discurso de demissão, Sergio Moro começou lembrando que sob os governos petistas a Polícia Federal tinha mais autonomia que sob Bolsonaro. Doeu porque é verdade, Jair. Moro fez denúncias muito graves. Horas depois, o Jornal Nacional mostrou a conversa de WhatsApp em que Bolsonaro pediu a Moro a demissão do diretor da PF porque deputados bolsonaristas estavam sendo investigados. Na mesma semana em que Bolsonaro rompeu com Sergio Moro, aproximou-se de notórios acusados de corrupção como Valdemar Costa Neto, Roberto Jefferson e Arthur Lira.

Agora vamos descobrir se o autoritarismo de Bolsonaro consegue se promover sem parasitar a indignação criada pelas revelações da Lava Jato.

O discurso de guerra às instituições só foi viável em 2018 porque havia uma percepção generalizada de que o sistema era corrupto. Blindado pela facada e por toda uma vida dedicada à irrelevância, Bolsonaro conseguiu se tornar a tela em branco onde todas as fantasias moralizadoras foram projetadas.

Vinicius Mota - No tabuleiro dos decapitados

- Folha de S. Paulo

Governo fraco faz contas diárias para evitar 342 votos contrários na Câmara

Agora são 171 mais 1. A gestão Bolsonaro entrou em modo impeachment, no qual um governo enfraquecido dorme e acorda fazendo e pagando contas para tentar evitar que 342 dos 513 deputados federais acionem a guilhotina presidencial.

Nessa fase, os que afiançam apoio comportam-se como mercenários a oferecer serviços ao chefe da cidade cercada. Cobram horrores, mas, na hora de entregar o prometido, vão fazer o que lhes der na telha, pois também flertam com os sitiadores.

Como aconteceu com Collor e Dilma, Bolsonaro terá de se defender em meio a uma recessão duríssima. Como ocorreu com Dilma e Temer, as flechas virão do Legislativo, do Judiciário e de outros setores da burocracia, o que vai estrangular a margem de manobra do presidente.

Diferentemente dos três antecessores empurrados ao jogo do impeachment, a impopularidade de Bolsonaro não é, na saída, tão pronunciada. O capitão também é o mais displicente de todos nas práticas da articulação partidária e parlamentar.

Leandro Colon – ‘Pontuais divergências’

- Folha de S. Paulo

Sanção de pacote anticrime no dia de Natal também desagradou o ex-ministro

A demissão surpresa de Maurício Valeixo da direção da Polícia Federal não foi a única rasteira via Diário Oficial de Jair Bolsonaro em Sergio Moro.

O ex-ministro nunca engoliu o gesto do presidente de publicar na virada de 24 para 25 de dezembro, em pleno dia de Natal, a sanção do pacote anticrime, uma bandeira de Moro.

Bolsonaro ignorou a maioria dos pedidos do então ministro e fez mais: manteve a criação do juiz das garantias, algo a que Moro se opunha.

Assim como no caso da exoneração de Valeixo, Moro, que estava no exterior naquele dia, foi surpreendido pela publicação no Diário Oficial.

O Ministério da Justiça havia entregado um parecer ao Planalto recomendando a derrubada de 38 pontos. Bolsonaro levou em conta só quatro.

Esse episódio está nas “pontuais divergências” citadas por Moro no discurso de sexta-feira (24) em que anunciou sua demissão do cargo.

“Mas não vou aqui falar dessas outras divergências. Isso fica para uma outra ocasião”, disse ele.

Ricardo Noblat - Uma solução caseira para blindar a família Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

A sucessão de Moro
Na confusão de vozes inflamadas que quebraram, ontem, o silêncio dominical da Esplanada dos Ministérios para renovar seu apoio ao presidente Jair Bolsonaro, destacaram-se três, duas delas masculinas, que de cima de um carro de som, decorado com a faixa “Fora Maia”, em alusão ao presidente da Câmara dos Deputados, dispararam as frases mais emblemáticas da manifestação.

Um homem disse:

“Querem botar a culpa no povo por que pediu ajuda ao Exército? Para quem vamos recorrer? Será que temos que recorrer aos Estados Unidos? Se for preciso vamos recorrer ao Exército dos Estados Unidos”.

Outro falou, certamente sem saber que Bolsonaro deposita sua esperança de completar o mandato justamente na ala mais fisiológica do Congresso, o conjunto de partidos conhecido como Centrão:

“Moro nunca passou de uma ferramenta do PSDB e do Centrão para tomar de volta o Palácio do Planalto. Mas Bolsonaro atrapalhou o esquema deles”
.
A mulher foi mais explícita no seu repúdio ao que fez o ex-ministro da Justiça ao sair do governo atirando no presidente da República:

“O ex-ministro Moro, que é sujo e comunista, nunca fez nada pelo Brasil. Ficou lá sentado e acovardado”.

Rodrigo Maia (DEM-RJ) dividiu com Moro a fúria expressa em faixas e cartazes exibidos pelos apoiadores de Bolsonaro. Mas Moro, mais do que Maia, foi o principal alvo dos insultos e xingamentos. A manifestação atraiu pouca gente.

Desta vez, Bolsonaro não compareceu. Passou o dia em reuniões no Palácio do Alvorada para decidir quem substituirá Moro no Ministério da Justiça e da Segurança Pública, e o delegado Maurício Valeixo na direção da Polícia Federal.

Se não arredar pé do que quer, Jorge Oliveira, advogado que nunca se destacou por seus conhecimentos jurídicos, irá para o lugar de Moro. E o delegado Alexandre Ramagem, diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), sucederá a Valeixo.

É a solução mais caseira possível e a que dará ao clã Bolsonaro a proteção que ele se queixa de não ter recebido da dupla Moro-Valeixo. O pai de Oliveira foi empregado de Bolsonaro. Oliveira também foi na Câmara dos Deputados.

Atual ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Oliveira cresceu ao lado dos filhos de Bolsonaro. Serviu a um deles, Eduardo, o Zero Três, como chefe do seu gabinete na Câmara. É como se fosse um membro da família presidencial.

Míriam Leitão - Equipe econômica: se mudar o teto de gastos 'todo mundo sai'

- O Globo

Há uma crise latente na área econômica, derivada da crise política. Um integrante da equipe econômica me disse que se o governo quiser propor uma emenda constitucional para retirar os investimentos no teto de gastos haverá uma reação. “Se isso acontecer, todo mundo sai”.

Esse é o caminho que está sendo arquitetado para que o governo siga adiante com o plano Pró-Brasil. Para sair do papel, o plano exigiria ampliar investimentos com recursos públicos. Isso só seria possível, no período pós-pandemia, se houvesse uma PEC criando essa alteração na emenda do teto de gastos.

Esse é o ponto que pode detonar mais uma bomba no governo Bolsonaro, mas hoje já há um clima muito ruim. A semana passada foi considerada muito ruim também na economia. Da perspectiva da equipe, a crise da saída do ex-ministro Sergio Moro levantou dúvidas sobre a força do ministro da Economia, Paulo Guedes. A dúvida é se o ministro continua tendo o “apoio incondicional” do presidente da República:

– Do nosso ponto de vista, o que nos interessa é evitar que o cenário político contamine - mais do que já contaminou - a economia.

Rubem Medina* - AI-5. É isso mesmo?

- O Globo

Discordar e não ser preso ou morto era só questão de sorte ou de ser amigo do ‘rei’

Você quer mesmo a volta do AI-5? Você, de fato, deseja o fechamento do Congresso Nacional? Você tem certeza de que o melhor para você e para o país será acabar com o Supremo Tribunal Federal? Você tem certeza? É isso mesmo o que você quer? Pois se é, bom, saiba que o que você deseja e quer muito já aconteceu um dia.

Por causa desse tal AI-5, que você diz amar, eu e meu pai fomos presos. Sabe por quê? Você não acreditaria! Garanto. Meu pai e eu fomos presos naquela época porque a gente se sentia como você se sente agora. Não com relação ao AI-5, mas com relação aos governos da época. A gente não gostava muito deles e resolveu dizer isso, como você faz agora com relação ao Congresso e ao Supremo. Fomos em cana. Sabe por quê? Porque instrumentos como o AI-5 foram criados para prender, torturar e até matar as pessoas que não pensam igualzinho ao ditador de plantão.

Ah!, mas você viveu naquele tempo e não foi preso? Sorte sua. Porque discordar e não ser preso ou morto era só questão de sorte ou de ser amigo do “rei”.

Eu estava no Congresso Nacional quando o ditador mandou fechá-lo. Eu já estava na política, desde muito novo e pela oposição, quando cassaram ministros do Supremo Tribunal Federal e garanto a você, não foi nada bom o que eu vivi naquele tempo: gente que eu gostava, admirava e até líderes que me inspiravam, como foi o caso de Juscelino Kubitschek, que sofreu horrores, vítima de processos imorais que não davam a mínima para essas coisas de amplo direito de defesa. Carlos Lacerda também. 

Você deve se lembrar deles, a história é recente. E olha que o Carlos Lacerda pensava como você pensa agora, sabia? Acreditava que a intervenção militar seria coisa passageira, uma ajudinha só para alinhar as eleições. Morreu frustrado. E tinha aqueles que conseguiam enxergar o que de fato acontecia e tentavam contar a história correta mas foram calados pelos porões. Eram os brilhantes jornalistas com suas veias investigativas, questionadoras e inquietas, que, ao invés de serem criticados como podem ser hoje em dia, eram simplesmente apagados.

Fernando Gabeira - Alto risco de tragédia

- O Globo

Para viabilizar sua trajetória política, Moro precisará se distinguir de Bolsonaro

Num momento em que todos reprisam, o governo é pródigo em lançar novelas inéditas. Mal acabou a novela Mandetta, entrou no ar a Sergio Moro, e começaram as filmagens da Paulo Guedes. O que está acontecendo na cabeça do presidente Bolsonaro? Ela foi sacudida pelo impacto do coronavírus.

Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro afundou.

Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia: despolitizaram o vírus.

Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.

Rosiska Darcy de Oliveira - Viver na incerteza

- O Globo

Psicopatas ocupam a cena com sua covarde onipotência

Um vírus pôs a humanidade inteira em carne viva. O medo mora conosco, tomou o lugar do abraço. Um mundo imprevisível emergirá dessa tragédia, e nossa única certeza é a incerteza.

Hoje — e que dia é hoje, alguém sabe? — os referenciais que balizavam o cotidiano, a maneira como habitávamos o tempo e o espaço, se apagaram. A pandemia reverteu a flecha do tempo. A máquina do mundo parou. Petroleiros fantasmas estão parados no mar, cheios de um líquido que já não vale nada.

A casa é a fronteira da sobrevivência e uma exigência moral. Tenta-se manter uma rotina, memória esfumada de algo vivido em outra vida. O trauma deixará marcas. Esperemos que o confinamento físico tenha o dom de abrir os espíritos a mais humanidade.

Cacá Diegues - Sempre demais

- O Globo

Foi como se Moro estivesse reescrevendo um final de filme

Uma das cenas mais comoventes na história moderna do audiovisual brasileiro está na despedida de um jovem casal, na novela “Totalmente demais”, de Rosane Svartman e Paulo Halm, atualmente em reprise, às 19h, na TV Globo. Aquela é a última noite juntos de Eliza (Marina Ruy Barbosa) e Jônatas (Felipe Simas), no amplo salão de poltronas abalroadas, iluminado por luzes frouxas e com cartazes esquecidos pelas paredes, de um cinemão abandonado onde eles vivem. O rapaz dá à moça, como presente de despedida, a primeira sessão de cinema da vida dela, exibindo pedaços de película que achou por ali e juntou, trechos dilacerados de “Luzes da cidade”, filme de Charles Chaplin, o Carlitos.

Como o final do filme não estava entre os restos que Jônatas havia encontrado, ele conta a Eliza um que ele mesmo inventara. Ela o recusa e cria sua própria versão, o desenlace adorável que julga mais coerente com o que vira e imaginara. Naquela noite, eles finalmente transam, a primeira vez de Eliza. Há tempos não me emocionava tanto com uma construção dramática que, materializando um filme possível, poetizasse de tal maneira o cinema como arrebatamento.

Vivemos num país em que 100 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado no lugar em que moram, a mais de 35 milhões lhes falta água, 12 milhões estão desempregados, e todos morrem de doenças que, em muitos outros países, já foram até extintas.

Denis Lerrer Rosenfield* - Acepções da direita

- O Estado de S.Paulo

Os liberais uniram-se ao atual presidente na luta comum contra o PT, mas dele se afastaram

Dentre as inúmeras confusões do atual cenário político, destaque-se a tendência a atribuir tudo o que o presidente Bolsonaro faça à direita, genericamente concebida. Para alguns, seu eventual fracasso significaria o fracasso “da direita”. A realidade, porém, é muito mais complexa, o País apresenta um leque diversificado de “direitas”: extrema direita, direita conservadora e direita liberal. Se há alguns anos o Brasil estava preso à oposição “direita x esquerda”, hoje a luta política se deslocou para confrontos dentro do campo da direita. O inimigo de Bolsonaro, na pandemia, é João Doria ou Luiz Henrique Mandetta, não Lula e o PT – estes estão desaparecidos de cena. O presidente, aliás, necessita urgentemente da sua volta!

Bolsonaro e seu clã constituem um perfil ideológico que poderíamos denominar de extrema direita; é formado pelo presidente, por sua família, seus assessores mais diretos, um ideólogo identificado com a extrema direita americana e um grupo digital que a eles adere sem nenhum critério crítico. 

Eis alguns pontos centrais: 

1) Sua concepção política está baseada na distinção amigo/inimigo, sempre precisando de alguém para atacar. O diálogo não faz parte dessa concepção por necessitar apontar alguém como inimigo a ser destruído (Lula, a esquerda, Doria, Mandetta, as instituições, Rodrigo Maia, a imprensa, os meios de comunicação, o “sistema”, os políticos, e assim por diante). 

2) Em decorrência, necessita do confronto permanente, até mesmo levando instabilidade às instituições. 

3) Apoia-se numa teoria conspiratória, própria desse tipo de concepção. Apresenta-se como “vítima” do “sistema”, dos “políticos”, tidos por definição como corruptos, dos que querem abatê-lo das formas mais secretas. 

4) Em sua luta contra o “sistema” e a “conspiração”, as instituições democráticas são consideradas obstáculos que devem ser removidos, não têm nenhum valor em si mesmas. 

5) Diz falar em nome do “povo”, mas isso significa tão somente os que o seguem fanaticamente nas redes sociais. Ao se pautar por redes sociais controladas e incentivadas por seus filhos e seguidores, robôs incluídos, além dos seus apoiadores que se aglomeram no Palácio do Alvorada, diz estar falando em nome do “povo”. 

6) O desprezo pela ciência é outro dos seus pontos centrais, algo claro no combate à pandemia, não seguindo nenhum critério científico ou técnico. A ignorância sobre o que seja a ciência é total, não seguindo regras e critérios vigentes na comunidade científica, de validade internacional. 

7) Uso intensivo de fake news nas redes sociais, tornando a mentira e as acusações arbitrárias instrumentos políticos.