Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
segunda-feira, 21 de novembro de 2022
Paulo Fábio Dantas Neto* - Sentido e limites da transição e da transigência
Miguel de Almeida - Sai, Carcará, sai
O Globo
Derrotados acabam vítimas de suas próprias
armadilhas
Vivandeiras das estradas do meu Brasil, eu
sei o que é a dor. Já senti muita dor. Rompi o tornozelo direito (jogando
tênis), outra vez o esquerdo (no futebol; fui razoável ponta) e meu nariz foi
quebrado, no recreio, por um grandalhão albino. Mas nunca imaginei que
erisipela na perna levasse alguém a calar a boca. Por si só, desde o histórico
30 de outubro, se trata de um fato científico a figurar no decálogo político do
baixo clero dos últimos dias, ao lado da isenção de imposto de importação de
jet skis (planadores também) e do que é visto (à boca pequena!) como o
Capitólio bolsonarista — o ataque cego do navio à ponte Rio-Niterói.
Como poderia dizer Mourão, a erisipela pós-derrota é um case de estudo a ser apresentado no próximo Congresso de Sinapses do Partido Liberal, sob os auspícios de empresários bolsonaristas. Outra comunicação de cunho alquímico talvez seja o pontapé inicial na série sobre a vida na terra (e na Lua) de Damares Alves. Protagonizada por Regina Duarte, com texto anônimo do sertanejo Sérgio Reis, o docudrama se passa em meio ao intenso brainstorm da criação de palavras de ordem dos golpistas estacionados à frente dos quartéis.
Fernando Gabeira - O estranho lugar da Copa
O Globo
Do ponto de vista da tradição do esporte, o
Catar é pouco importante. Sua seleção está fora da lista das cem melhores do
mundo
A Copa do Mundo começou ontem. Já estamos
pintando ruas, discutindo a convocação de Daniel Alves, palpitando sobre a
escalação, debatendo o potencial dos rivais.
De um modo geral, a resposta é não. O
jornal alemão Bild cunhou a a manchete “Catástrofe” para definir a escolha da
Fifa.
Do ponto de vista da tradição do esporte, o
Catar é pouco importante. Sua seleção está fora da lista das cem melhores do
mundo.
O clima do país é bastante duro para a
prática do esporte. No verão, seria impraticável, sobretudo para seleções que
vêm dos países frios: 50 graus. Foi preciso adiar para o inverno para conseguir
uma temperatura menos cruel para os atletas.
Não será uma Copa barata. Os investimentos devem ser superiores a US$ 220 bilhões, mais que R$ 1 trilhão, 20 vezes acima dos gastos da Copa de 2018 na Rússia.
Bruno Carazza* - Lula na mão de Lira
Valor Econômico
PEC da Transição reforça poder do líder do
Centrão
Lula é o personagem central da política
brasileira nas últimas quatro décadas. Desde 1989, esteve presente em seis
eleições presidenciais (tendo vencido três) e foi muito influente nas outras
três, como “padrinho” de Dilma Rousseff em 2010 e 2014 e sendo substituído por
Fernando Haddad em 2018.
O carisma de Lula junto a parcela
importante do eleitorado e sua capacidade de articulação, atraindo apoios que
vão além do PT e da esquerda, levaram o cientista político André Singer a
cunhar a expressão “lulismo”, fenômeno que seria mais forte até do que o
petismo.
Todavia, o poder de Lula, expresso mais uma vez na vitória (ainda que apertada) da última eleição e nos acenos que o ex e futuro presidente tem recebido de lideranças de todo o espectro político, mascara graves erros de estratégia cometidos pelo ícone petista nas últimas décadas.
Alex Ribeiro - Fiscal está no radar do Copom de dezembro
Valor Econômico
Promessa é agir se projeção de inflação
subir ou risco piorar
O presidente do Banco Central, Roberto
Campos Neto, disse em um evento na sexta-feira que a política fiscal do futuro
governo Lula já está no radar da reunião de dezembro do Comitê de Política
Monetária (Copom). O que poderia levar à retomada dos ciclo de alta de juros?
Conforme o próprio Campos Neto explicou, o
aperto adicional aconteceria se, diante dos passos adotados pelo novo
presidente da República, o Copom entender que a convergência da inflação para a
meta não vai acontecer da forma planejada. “Então, nós vamos reagir”, advertiu.
Ele também ressaltou que é cedo para uma
conclusão sobre o assunto porque não se sabe o que o Congresso vai aprovar ou
modificar da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que estoura o teto de
gastos em quase R$ 200 bilhões.
O cenário de convergência da inflação para a meta, em tese, pode ser ameaçado de duas formas pela política fiscal de Lula. Primeiro se, de forma mais direta, levar a um aumento das projeções de inflação do Banco Central - que já vinham sendo colocadas em questão pelos especialistas, porque parecem muito otimistas, quando comparadas com a previsão do mercado. Segundo, se o fiscal voltar a pesar mais forte no chamando balanço de riscos, ou seja, se fizer o Copom achar que as chances de a inflação superar os valores projetados são maiores do que as de ficar abaixo deles.
Celso Rocha de Barros - Governo Lula vai ganhando cara
Folha de S. Paulo
Equipe de transição começa debate
propositivo com bons quadros e desafios após Bolsonaro
Aos poucos, os contornos do terceiro
governo Lula vão ficando mais claros. O clima de frente ampla
do segundo turno parece ter reunido gente bem boa em torno do novo presidente.
Tudo ainda pode dar errado, mas os sinais são bons.
Na COP27, Lula pode ter feito o melhor discurso de sua vida,
o que mais impacto pode ter na vida das gerações futuras. Tudo ali está certo.
Fazer aquilo não vai ser fácil, mas a equipe de transição de meio ambiente se
destacaria em qualquer país do mundo.
A equipe de transição para a educação
também é muito boa. Já passou da hora de alguém generalizar para o Brasil a experiência de sucesso da educação
básica cearense, e a escolha dos nomes até agora dá a impressão de que o
plano é esse.
Isso já poderia ter acontecido: em 2015, Dilma Rousseff nomeou Cid Gomes, ex-prefeito de Sobral, para o MEC. Eduardo Cunha derrubou os dois.
Marcus André Melo* - (In) felicidade Política
Folha de S. Paulo
A formação de coalizões governativas sem
densidade programática gera cinismo cívico
Votar no candidato perdedor diminui a
felicidade das pessoas. Essa é a conclusão do estudo Presidential Elections, Divided Politics and Happiness in the
US (eleições presidenciais, política dividida e felicidade nos EUA), de 2019,
de Sergio Pinto e colegas. O efeito é brutal. Nas eleições presidenciais de
2016, nos EUA, na qual Hillary Clinton foi derrotada, equivalia a ficar
desempregado(a).
A felicidade é medida por métricas que capturam o nível subjetivo de satisfação com a vida e por atitudes que lhes são correlatas. A fonte é a pesquisa diária do Gallup com 11 mil eleitores, de 2012 a 2016.
Felipe Moura Brasil - 2026 já começou
O Estado de S. Paulo
Se houver fibra para ocupar o lugar de Bolsonaro, campo derrotado pode formar novas lideranças
As declarações de Romeu
Zema de que Jair
Bolsonaro perdeu para si mesmo e de Ratinho Jr. de
que uma centro-direita pode ocupar esse espaço, além da resistência de Tarcísio de
Freitas a nomear bolsonaristas, condizem com o comentário que
fiz três semanas antes da eleição: “Até 2026, haverá tempo para formação de
novas lideranças no campo perdedor, se houver fibra para ocupar o lugar do
populista derrotado. A derrota vai abrir a melhor oportunidade de saneamento. A
vitória vai legitimar a pilantragem”.
A promiscuidade entre autoridades públicas
e empresários foi revivida por Lula já na transição, ao voar para o Egito no jatinho do
fundador da Qualicorp e dono da QSaúde, José Seripieri Jr., e almoçar em
Portugal com ele, Fernando
Haddad e Gilmar Mendes,
um dos responsáveis pela impunidade do presidente eleito.
Antes, o ministro do STF havia suspendido a tramitação de um inquérito que apura repasses da Odebrecht à campanha de 2010 de seu amigo Aécio Neves, bem como a operação da Polícia Federal que apurava esquema de corrupção, fraude e lavagem de dinheiro na Fundação Getúlio Vargas, defendida por seu amigo Rodrigo Mudrovitsch.
Denis Lerrer Rosenfield* - O velho PT
O Estado de S. Paulo
Discursos
demagógicos de nada adiantam. O período eleitoral foi encerrado e começa o de
governar, não admitindo teatros e tergiversações
O maior eleitor de Lula foi Jair Bolsonaro. O novo presidente não foi eleito por suas ideias – aliás, inexistentes –, mas por reação ao atual presidente e ao bolsonarismo em geral. Suas propostas se reduziram aos velhos chavões petistas e a uma curiosa seleção de suas administrações passadas, dosadas com cuidado de modo que o governo Dilma desaparecesse dessa sua apresentação. Ele seria, constrói-se a lenda, a “solução” por sua mera presença. Parafraseando Lenin, não se colocou uma questão central: O que fazer?
Luís Eduardo Assis* - O grande chilique e a falsa escolha
O Estado de S. Paulo
Como o próximo governo quer crescimento e preços sob controle, convém moderar a incontinência verbal
O Brasil é mesmo curioso. O maior faniquito
no mercado financeiro com a eleição presidencial de 2022 se deu vários dias
após a proclamação do vencedor. Foi quando o presidente eleito questionou “a
tal da estabilidade fiscal”, em discurso a parlamentares feito em 10 de
novembro.
O abalo sísmico foi grande. E continua
sendo com as notícias da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
da Transição, que diz muito pouco sobre para onde vamos transitar.
O mercado é assim mesmo. Tratá-lo como se
fosse uma instância que emite opiniões políticas é grande equívoco. Ele não tem
ideologia, mas cultiva um punhado de convicções, em geral corruptelas de
conceitos mais complexos de algum “economista defunto”, como dizia John Maynard
Keynes.
O mercado não julga nem pune, apenas faz preço. Tudo o que se discute no mercado deve ser filtrado, mastigado e resumido para uma decisão que é essencialmente binária: comprar ou vender. Não há espaço para nuances, qualificações ou raciocínios sofisticados. O ambiente é o de um jogo de espelhos.
Ana Cristina Rosa - Tornar-se negro é libertador
Folha de S. Paulo
Neste mês da consciência negra, convido
todos à reflexão sobre o que é ser negro no Brasil contemporâneo
Sempre me surpreendo quando uma pessoa
negra afirma que nunca sofreu preconceito ou discriminação racial no Brasil.
Não foi diferente quando soube do relato de uma mulher preta —a primeira a
ocupar um alto posto numa instituição hierarquizada e historicamente comandada
por homens brancos— que disse nunca ter enfrentado barreiras de raça ou de
gênero para chegar aonde está.
Gostaria de poder acreditar. Mas, por mais
que me esforce para respeitar a perspectiva do outro, esse me parece um feito
impossível.
Especialmente diante das fartas e escandalosas evidências de racismo estrutural, institucional e sistêmico cada vez mais corriqueiras no nosso cotidiano.
José Vicente* - O combate ao racismo no ambiente corporativo
O Estado de S. Paulo
Empresas e presidentes podem moldar e
garantir a equidade racial e ajudar a consolidar um ambiente antirracista
A desigualdade racial no mercado de trabalho e no ambiente corporativo brasileiro tem se constituído num daqueles extraordinários desafios que historicamente limitam o alcance da isonomia entre negros e brancos e impedem a realização da igualdade de oportunidades, sem distinção de cor ou de raça, como preconizado nos mais diversos documentos e tratados internacionais, na Constituição cidadã da nossa República e nos fundamentos que estruturam a modernidade. Sob todos os aspectos, a desigualdade racial e sua causa próxima, o racismo sistêmico que embala as relações sociais e laborais, continuam produzindo distinção e prejuízos incomensuráveis na construção e no alcance de um ambiente social em que tão somente as competências, habilidades e talentos devessem ser definitivamente os grandes medidores e condicionantes do alcance do sucesso e da realização pessoal e profissional dos indivíduos.
Irapuã Santana - Somos diversos
O Globo
Dizer que ‘tá no sangue’ ou que negros são
naturalmente atléticos e vocacionados para as artes é racismo
O Brasil conta com mais ou menos 118
milhões de pessoas negras. Isso quer dizer, na prática, que existe um número
infinito de estilos de vida e modos de enxergar o mundo, o que deveria gerar
algumas reflexões e conclusões.
A primeira delas é que recorrer a estereótipos é também reforçar uma faceta do racismo, que acaba coletivizando algumas características e elimina a ideia de indivíduo. Em outras palavras, dizer que “tá no sangue” ou que negros devem saber jogar bola e sambar é racismo. Afirmar que negros são naturalmente atléticos e vocacionados para as artes, idem. Na verdade, quando se toma esse tipo de entendimento como verdade, vemos a base do trabalho braçal (escravo) para negros e trabalho intelectual para brancos, dividindo a sociedade entre uma comunidade domesticada, útil ao entretenimento e à servidão, e uma outra que gera luz, desenvolvimento e progresso para todos.
Hebe de Bonafini, histórica líder das Mães da Praça de Maio, morre aos 93 anos na Argentina
Associação foi criada na última ditadura militar do país para descobrir o paradeiro de filhos e outras pessoas desaparecidas
Por O Globo, com agências internacionais
BUENOS AIRES - Hebe de Bonafini, a
histórica presidente da associação argentina Mães
da Praça de Maio, criada durante a última ditadura (1976-1983) no país para
descobrir o paradeiro de seus filhos e outras pessoas presas pelo regime
militar e depois desaparecidas, faleceu neste domingo aos 93 anos, confirmou a
vice-presidente Cristina Kirchner. O governo decretou três dias de luto
nacional.
"Queridíssima Hebe, Mãe da Praça de
Maio, símbolo mundial da luta pelos Direitos Humanos, orgulho da Argentina.
Deus te chamou no dia da Soberania Nacional... não deve ser coincidência.
Simplesmente obrigado e até sempre", escreveu Cristina no Twitter.
Bonafini morreu na manhã deste domingo em
um hospital da cidade de La Plata, na província de Buenos Aires, onde estava
internada desde o dia 12. No mês passado, ela ficou internada três dias para
exames, mas teve alta.
Através de um comunicado divulgado nas redes sociais, o governo argentino anunciou que “decreta três dias de luto nacional e presta homenagem a Hebe, à sua memória e à sua luta, que estará sempre presente como guia nos momentos difíceis”. A Secretaria de Direitos Humanos também homenageou a militante de direitos humanos em mensagem no Twitter: "Hebe compartilhou junto com as Mães um destino que as uniu na luta contra a impunidade dos crimes do terrorismo de Estado, resistindo frente ao silêncio e ao esquecimento."
O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões
Pressão de estados por recursos deverá agravar crise fiscal
O Globo
Prejudicados com o corte eleitoreiro do
ICMS sob Bolsonaro, governadores eleitos tentarão ir à forra com Lula
Quando assumir, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva receberá governadores em romaria de pires na mão. Além dos “investimentos sociais” que levam o novo governo a tentar excluir despesas de quase R$ 200 bilhões do teto de gastos, além das promessas de reajuste real do salário mínimo, correção na tabela do Imposto de Renda e tantas outras, haverá pressão por mais despesas estaduais. Os governadores foram vítimas da sanha eleitoreira do presidente Jair Bolsonaro, que cortou para 17% o ICMS cobrado sobre combustíveis, energia elétrica, comunicações e transportes. Com a receita combalida e as finanças em andrajos, eles tentarão ir à forra diante do novo governo.
Música | Va pensiero Nabucco G Verdi version Trio Amadeus
"Va, pensiero", também conhecido como o "Coro dos Escravos Hebreus", é um coro do terceiro ato da ópera Nabucco (1842) de Giuseppe Verdi, com libreto de Temistocle Solera, inspirado no Salmo 137.
domingo, 20 de novembro de 2022
Luiz Sérgio Henriques* - A democracia como desafio global
O Estado de S. Paulo
Diante de nós está a evidente tarefa de
desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do
autoritarismo
Menos desglobalizada do que parece, a
política de diferentes países continua atravessada por riscos, tensões e até
conjunturas críticas que podem ser comparadas, como as que, nas últimas
semanas, marcaram as duas maiores democracias das Américas. Por aqui nos
livramos da ameaça do segundo mandato do governante nacional-populista, quando
costuma tomar forma não propriamente uma tradicional ditadura militar, mas um
regime de controle estrito das alavancas do Estado e das instâncias da
sociedade civil. Mais ao norte, nos Estados Unidos, desmentindo previsões
sombrias, Joe Biden e seu partido ganharam tempo precioso até as eleições de
2024, livrando-se o presidente do destino que se reserva aos lame ducks,
os governantes enfraquecidos em final de mandato.
Trata-se de dois países cujas circunstâncias, segundo insight do cientista político Jairo Nicolau, estão no ponto máximo de proximidade, a começar pela radical divisão da sociedade – e dos eleitores – e pela presença de atores com vocação subversiva. Em ambos os casos, líderes de extrema direita, com séquito de massas e traços de um fascismo reformulado, ou de um pós-fascismo, tomaram o lugar da direita constitucional, ameaçando sem nenhum pudor o mecanismo da alternância. Voto eletrônico ou impresso, eleições centralizadas ou descentralizadas, nada disso importa. O script é monotonamente previsível, os resultados só valem se o autocrata vencer.
Merval Pereira - Volta ao velho normal
O Globo
Militares têm atuado de maneira ambígua,
permitindo que manifestantes acampem em áreas de “segurança nacional e
alimentando desvarios negacionistas
O Brasil precisa voltar à normalidade, e os
militares são parte importante desse retorno. Não é aceitável que as
aglomerações em frente aos quartéis sejam consideradas normais, ainda mais
quando pedem medidas inconstitucionais, como a intervenção militar para não
permitir que o presidente eleito tome posse. São as novas “vivandeiras
alvoroçadas” que incentivavam os militares a ações golpistas.
Não ver o que está sendo gestado nesses
movimentos ilegais, ou pela continuada ação de bloqueio em estradas pelo país,
é ser cúmplice, no mínimo por leniência e inação. Bolsonaro levou os militares
para o centro da política partidária, prometendo reintroduzi-los na vida
nacional pela porta da frente, como se precisassem do aval de um político
desqualificado, “mau militar”, para ter o respeito da população.
Acabou colocando os militares em situação delicada, sendo vistos pela população como privilegiados, como no caso da reforma da Previdência, ou como agentes políticos com lado, como acontece agora. Logo que assumiu, Bolsonaro fez questão de agradecer publicamente ao General Villas Boas, em palavras cifradas: “General Villas Boas, o que nós conversamos ficará entre nós, o senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”.
Dorrit Harazim - A desrazão
O Globo
Imaginar Bolsonaro zanzando há três semanas
no Palácio da Alvorada, infectado física e psicologicamente pelo medo, é
esquisito
De que é feito um grande líder? Quase 200
anos atrás, a americana Margaret Fuller, autora do clássico “A mulher no século
XIX”, primeira obra feminista registrada nos Estados Unidos, elencou quatro
atributos essenciais: 1) ser idealista sem ser raso, ser realista sem demolir o
outro; 2) abrigar empatias universais; 3) ser seguro de si; 4) entender que o
poder é mais que mero espetáculo — o jogo da vida é solene, tem consequências.
Primeira mulher correspondente de guerra de seu país, a pioneira Fuller foi uma
jornalista engajada. Tinha horror à desrazão.
Em tempos mais recentes, quem também se ocupou do tema foi outra pioneira das letras, a colossal Octavia Butler. Autora de livros de ficção científica, Butler havia arrombado essa fatia do universo literário dominada por homens — e quase sempre homens brancos. Fora marcada pelo racismo e pelo segregacionismo dos EUA. Tampouco tinha paciência com a desrazão. Deixou ensinamentos sábios sobre a escolha de líderes. “Ser liderado por um covarde significa ser controlado por tudo o que o covarde teme. E ser liderado por um tolo é ser liderado pelos oportunistas que controlam o tolo”, escreveu em “Parábola dos talentos”. A obra também contempla líderes corruptos, mentirosos e chegados a uma tirania.
Luiz Carlos Azedo - Nada será como antes no 3º mandato de Lula
Correio Braziliense
A ruptura entre os dois
primeiros mandatos e o terceiro é uma necessidade histórica, porque existe um
hiato de 12 anos entre ambos, no qual o mundo mudou e a realidade política e
social do país também
Talvez a grande dificuldade para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) operar a transição e a montagem do seu novo governo decorra do fato de que existe uma lógica subliminar nas suas atitudes que não tem viabilidade política: retomar o fio da história de onde sua passagem pela Presidência foi interrompida. Essa foi a linha básica de sua campanha eleitoral, na qual explorou as realizações de seus dois exitosos mandatos como principal ativo eleitoral, ao mesmo tempo em que manteve distância regulamentar da questão ética e do fracasso político, econômico e administrativo de Dilma Rousseff, mascarado pelo discurso de que fora vítima de golpismo.
Míriam Leitão - Na terra do meio da transição de poder
O Globo
É preciso ver tanto as demandas sociais do
país quanto os alertas dos economistas para reduzir o risco de errar em um
governo que nem começou
Para chegar aos gabinetes do escritório de
transição, no segundo andar, é preciso subir quatro lances de escada. Parece
detalhe. É sinal. O CCBB, tradicional local das transições de governo, não
estava preparado. Dois elevadores estão em reforma. Há um único elevador na
área de segurança, reservado para o presidente e o vice-presidente eleitos e
suas equipes. Teriam pensado que não haveria alternância? Nos corredores da
área reservada, para a qual só se passa de crachás amarelos, cartazes
improvisados na porta indicam os novos donos do poder. Mas antes da área de
segurança é possível encontrar alegres grupos da sociedade civil.
Do lado de fora, jornalistas cercam fontes que passam, cruzando com famílias indo visitar exposições. Há em tudo um ambiente de mudança e recomeço. O tempo em Brasília nessa época do ano tem mais volatilidade que o mercado financeiro. O sol forte pode dar lugar a tempestades com raios e trovoadas em minutos.
Bernardo Mello Franco – Os donos da faixa
O Globo
Ritual simboliza duas coisas que o capitão
abomina: democracia e alternância de poder
Jair Bolsonaro perdeu a eleição, se trancou
no palácio e não quer passar a faixa. O futuro ex-presidente tem dado sinais de
que faltará à posse do sucessor. Deve repetir o exemplo de João Figueiredo, o
último general da ditadura, que boicotou a solenidade em 1985.
A birra do capitão criou um problema para
os organizadores da cerimônia. O vice-presidente Hamilton Mourão poderia ser
escalado, mas já avisou que não vai substituir o titular. “Eu não sou o
presidente. Não posso botar aquela faixa, tirar e entregar”, justificou, em
entrevista ao jornal Valor Econômico.
A transmissão da faixa simboliza duas coisas que Bolsonaro abomina: a democracia e a alternância de poder. O capitão não reconheceu a derrota, não ligou para o presidente eleito e não apareceu mais para trabalhar. Sumir no dia 1º de janeiro seria seu último ato de incivilidade.
Elio Gaspari - A macumba da faixa
O Globo
Presidente tem até 1º de janeiro para
decidir como pretende sair do governo e retomar sua vida política
Jair Bolsonaro tem até a manhã de 1º de janeiro para
decidir como pretende sair do governo e como pretende retomar sua vida
política. Poderá passar a faixa presidencial a Lula,
indicando que ganhou, perdeu e seguirá seu caminho dentro das quatro linhas da
Constituição.
Poderá ir para casa, recusando-se a participar da cerimônia de
transferência do poder. Na República, que há dias fez 133 anos, só dois
presidentes fizeram essa pirraça: João Figueiredo, em 1985, e Floriano Peixoto,
em 1894.
Figueiredo passaria a faixa a Tancredo Neves com alguma satisfação. Como
Tancredo estava no hospital, e naqueles dias detestava o vice-presidente José
Sarney, foi-se embora, saindo por uma porta lateral do palácio.
O general que completou a abertura, deu a
anistia e conduziu a redemocratização estragou sua biografia com a pirraça
infantil. A fotografia dele passando a faixa a Sarney simbolizaria seu governo.
Se Bolsonaro passar a faixa a Lula, ninguém achará que passou a gostar dele. O gesto mostrará apenas que, como disse ao reconhecer o resultado da eleição, ficou dentro das quatro linhas da Constituição. É um ganha-ganha contra um perde-perde.
Bruno Boghossian - Bolsonaro terá concorrência?
Folha de S. Paulo
Com movimentos sutis, Zema e Ratinho tentam
demarcar diferenças e não descartam candidatura
Jair
Bolsonaro saiu das urnas derrotado, mas se consolidou como o
líder mais popular da direita brasileira atualmente. Apesar dos movimentos
precoces para mantê-lo como nome forte na próxima eleição, nem todos tratam o
presidente como candidato único e natural desse campo político em 2026.
Dois atores da órbita bolsonarista fizeram
movimentos sutis nesse sentido. Em entrevistas nos últimos dias, os
governadores Romeu Zema
(MG) e Ratinho
Júnior (PR) tentaram demarcar divergências leves em relação ao
presidente e sugeriram que a porta deve estar aberta para outros nomes de
direita em quatro anos.
Embora tenham entrado de cabeça na campanha de Bolsonaro neste ano, os dois fizeram questão de dizer agora que têm críticas ao presidente, principalmente na condução do país diante da Covid. "Durante a pandemia, a comunicação do governo federal deixou muito a desejar", declarou Zema à rádio Super.
Hélio Schwartsman - Mudança
Folha de S. Paulo
Inovações só ocorrem depois de terem sido
validadas por relacionamentos significativos do indivíduo
Você quer colocar uma nova ideia em
circulação. Qual a melhor estratégia? Contratar um punhado de influenciadores
que somem milhões de seguidores? Até pode ser, desde que sua ideia seja algo
bem simples e que não envolva nenhuma espécie de mudança comportamental, tipo
propagar uma notícia. Aí, as redes compostas por indivíduos densamente
relacionados, capazes de alcançar multidões, provavelmente funcionarão. Mas, se
sua ideia exige que as pessoas adotem outras atitudes, aí os influenciadores
não serão tão úteis. Na verdade, podem até revelar-se um tiro pela culatra.
"Mudança", de Damon Centola, analisa essa e várias outras questões relativas a redes sociais. E o faz recorrendo à ciência, não a intuições arraigadas, e buscando exemplos em casos reais. O retumbante fracasso do Google Glass, por exemplo, se deve ao fato de que a empresa foi muito eficaz em espalhar notícias sobre o produto usando influenciadores e geeks, mas muito menos em criar um ambiente de validação social para seu uso. O apetrecho foi visto como algo esnobe, indesejável para pessoas comuns.
Muniz Sodré* - Nervos à flor do pano
Folha de S. Paulo
Mercado de puros valores tem olhos fechados
ao território, à gente viva
"Mulheres à Beira de um Ataque de
Nervos" (1988), conhecido filme de Pedro Almodóvar, não tem nada a ver com
economia, mas esse título assenta bem à entidade entre nós denominada
"mercado". É que, emocionado, Lula disse ser o combate à fome mais
importante do que estabilidade fiscal. Não disse que são incompatíveis, foi um
desabafo. "Em modo de campanha", ponderou uma voz experiente. Mas num
tremelique, o mercado jogou para baixo o Ibovespa e, para cima, o dólar. Um ataque de nervos de quem certamente esperava outra
coisa.
A economia de mercado, mecanismo autorregulável que ordena a produção e a distribuição dos bens, vive de expectativas. A primeira é de que os seres humanos se comportem de modo a atingir o máximo de ganhos monetários. Dinheiro é uma voragem atrativa. Depois, o domínio da sociedade pelo mercado, esquecido da evidência histórica de que a economia do homem está submersa em suas relações sociais. Disso bem sabe Lula: o mercado pode querer uma coisa, e a sociedade, outra.
Janio de Freitas - O reencontro com o Brasil
Folha de S. Paulo
O mundo mudou e a visão dos militares ficou
fora, completamente fora da realidade
A recepção do mundo ao retorno de Lula tem a
anormalidade dos fenômenos. As publicações importantes, muitos chefes de
governo, e manifestações dos conscientes das urgências naturais, sociais e
políticas do planeta celebram a volta do Brasil pelas mãos de Lula. Nas
palavras do escritor Jon Lee Anderson: "As pessoas ao redor mundo estão
esperando de você, Lula, não que salve a Amazônia, mas que salve o mundo".
Há pouco a se comparar com essa expressão universalizada de inquietude e vontade, feita com espontaneidade que subjuga a era do invasivo marketing. O nome Lula ecoa no mundo como o de Mandela soou em nossos dias, por admiração ao homem e à obra de sua vida comovente. Lula —ideia, histórico, palavra, pessoa— é a causa e a confiança.
Vinicius Torres Freire - O começo de Lula 1, uma crônica
Folha de S. Paulo
Era preciso conter 'ansiedade social';
crescimento e superávit foram os maiores da democracia
"Teremos de manter sob controle as
nossas muitas e legítimas ansiedades sociais para que elas possam ser atendidas
no ritmo adequado e no momento justo", disse Luiz Inácio Lula da
Silva, em seu discurso de posse. Da primeira
posse: 2 de janeiro de 2003.
Como neste 2022, nos discursos da vitória
de 2002 e no da posse de 2003, Lula disse: "Se, ao final do meu mandato,
todos os brasileiros tiverem a possibilidade de tomar café da manhã, almoçar e
jantar, terei cumprido a missão da minha vida".
Cerca de 150 mil pessoas foram à Esplanada dos Ministérios para ver o primeiro presidente de esquerda. Lula assinou o termo de posse com uma caneta Montblanc dourada, presente de Ramez Tebet (1936-2006), senador pelo MDB do Mato Grosso, então presidente do Congresso, pai da senadora Simone Tebet (MDB-MS).
Eliane Cantanhêde - ‘Momento eufórico’
O Estado de S. Paulo.
Em bom português, Lula modula discurso, corrige erro e recupera a paz. Por enquanto
Numa montanha-russa, o presidente eleito
Lula brilhou ao levar o Brasil de volta à liderança ambiental e à cena
internacional, derrapou ao desdenhar da responsabilidade fiscal, da Bolsa e do
câmbio e se reequilibrou em Portugal, ao calibrar a fala sobre contas públicas,
referir-se adequadamente às Forças Armadas e, enfim, enfrentar de frente a
carona em jatinho de empresário.
Na COP 27, a plateia entoou o novo hino lulista, “o Brasil voltoooou, o Brasil voltoooou”, diante de um discurso contundente e abrangente em que Lula falou para os brasileiros e o mundo e se declarou “cobrador” dos países ricos.
Albert Fishlow* - Planos para o futuro de forma produtiva
O Estado de S. Paulo.
O mundo de hoje é bem diferente daquele que existia no primeiro mandato de Lula
Estes ainda são dias de alegria. Lula foi
eleito presidente do Brasil mais uma vez, ainda que por pouco. Nos EUA, os
democratas mantiveram o controle do Senado, mas não conseguiram a maioria na
Câmara.
Desta vez, Bolsonaro e Trump fracassaram em
reestruturar as sociedades de seus países enfatizando os valores pessoais deles
– e aqueles de suas famílias –, em detrimento dos mais pobres, das mulheres, da
diversidade racial e sexual, dos indígenas e de outros críticos declarados.
Tanto Bolsonaro quanto Trump queriam olhar para trás, e não para frente.
Mas a vantagem apertada de cada vitória limita a liberdade de, simplesmente, seguir em frente. Um futuro melhor exige uma capacidade contínua de tentar estabelecer relações amigáveis e se comprometer, em vez de se impor. Isso vale até mesmo no Oriente Médio e no conflito entre a Ucrânia e a Rússia de Putin.
Celso Lafer* - 2023: rumos e desafios da política externa de Lula
O Estado de S. Paulo
Na interação entre o ‘interno’ e o
‘externo’, é relevante que o novo governo tenha sensibilidade para ampliar sua
validação.
O legado da política externa do governo
Bolsonaro é muito negativo. Isolou o Brasil no mundo; dilapidou o capital
diplomático do País; diminuiu o potencial de articulação com nossos grandes
parceiros; comprometeu nossa ação nas instâncias multilaterais que sempre foram
histórico ativo do País.
O governo Bolsonaro não soube traduzir
objetiva e apropriadamente necessidades internas em possibilidades externas – a
tarefa da política externa como política pública.
É consensual esta avaliação entre analistas da diplomacia brasileira. Foi significativo que personalidades que exerceram responsabilidades nas relações internacionais em diferentes governos e com distintas trajetórias e opiniões políticas tenham se manifestado sobre a matéria. Publicamos juntos neste jornal, em 8 de maio de 2020, artigo sobre a necessidade da reconstrução da política externa, assinado por Fernando Henrique Cardoso, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero, Hussein Kalout e por mim (A reconstrução da política externa brasileira, pág. A7).
Cristovam Buarque* - Desempobrecer e enriquecer
Blog do Noblat / Metrópoles
Perdeu-se a perspectiva de que sair da
pobreza é menos aumentar um pouco a renda do que dispor de acesso aos bens e
serviços essenciais
Desde que o pensamento econômico passou a
dominar a lógica do processo social, desempobrecer e enriquecer significam o
mesmo: aumentar a renda. Mudam os valores, mas o mesmo conceito serve para quem
sai da pobreza, um pouco mais de renda, e quem sobe na riqueza, muito mais
renda.
Perdeu-se a perspectiva de que sair da pobreza é menos aumentar um pouco a renda do que dispor de acesso aos bens e serviços essenciais: segurança alimentar, escola com qualidade, moradia com água potável, esgoto e coleta de lixo, atendimento médico, transporte coletivo de qualidade e um nível básico de renda. Há quase 100 anos, os economistas prometem que tudo isto chegará com o crescimento econômico, emprego e renda, e nunca chega, porque o acesso no mercado aos itens essenciais só é possível por pessoas de renda alta, para a maior parte das pessoas com renda baixa, este acesso só é possível se disponíveis publicamente.
O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões
Copa do Catar vai além das quatro linhas do gramado
O Globo
Nunca um país gastou tanto para realizar o
evento — e nunca ele foi marcado por tantas denúncias
Nunca se gastou tanto para sediar uma Copa
do Mundo. O orçamento recorde da Copa do Catar — US$ 220 bilhões — é quase 15
vezes o que foi investido no Brasil em 2014. Mas a dinheirama despejada na
primeira Copa do Oriente Médio não foi suficiente para redimir a imagem do
país. Denúncias de violações de direitos dos trabalhadores migrantes, das
mulheres e da população LGBTQIA+ já fazem dela campeã de questionamentos. Dois
dias antes da abertura, os catarenses ainda proibiram a venda de cerveja nos
estádios.
A escolha do Catar como sede em 2010, em detrimento dos Estados Unidos, foi cercada de suspeitas de corrupção. O próprio presidente da Fifa na ocasião, Joseph Blatter, admitiu depois que a escolha fora “um erro”. Não só pelo transtorno logístico — em razão das altas temperaturas, pela primeira vez o torneio teve de ser transferido para novembro, prejudicando o calendário das poderosas ligas europeias. Mas também por desprezar a questão dos direitos humanos, a exemplo do que acontecera na Argentina em 1978 ou na Rússia em 2018.