Folha de S. Paulo
Guerra em Gaza, brutal e criminosa, divide
israelenses, mas confronto com Irã unifica correntes políticas
O Irã não é um país de fanáticos. Foi palco da Revolução Constitucional de 1906, fonte do primeiro parlamento no mundo muçulmano, extinto pelo monarca com apoio de tropas russas. Teve um governo nacionalista e democrático, de Mossadegh, um dos jovens líderes daquela revolução, entre 1951 e 1953, deposto no golpe articulado pela CIA e pelo MI6. O fanatismo islâmico emergiu com a revolução de 1979 — ou melhor, com o triunfo da facção dos aiatolás no turbulento período pós-revolucionário. Daí nasceu o objetivo de exterminar Israel.
A queda do xá Reza Pahlavi, em janeiro de
1979, resultou de um amplo movimento popular conduzido por islamistas,
nacionalistas, democratas e comunistas. O primeiro presidente da nova
república, Abolhassan Banisadr, representava aquela aliança anti-monárquica.
Seu impeachment, em junho de 1981, assinalou a dissolução da aliança e a
instauração do poder absoluto do clero xiita sob Khomeini. Na república
islâmica, o governo oficial habita a masmorra do regime teocrático: o aiatolá
manda, o presidente administra.
Dois golpes sucessivos propiciaram o triunfo
da facção clerical. O primeiro, interno: a invasão da embaixada americana em
Teerã e a tomada de seus funcionários como reféns por uma organização
estudantil controlada por Khomeini, em novembro de 1979. O segundo, externo: a
invasão do país pelo Iraque, em setembro de 1980, que deflagrou uma guerra
devastadora de oito anos. Sob as crises justapostas, cancelaram-se as
liberdades públicas.
O Irã não é um país árabe, mas persa. O
regime dos aiatolás engajou-se na missão de enterrar a tradição persa,
enraizando sua legitimidade no solo do Islã. O fundamentalismo islâmico
funcionou como ferramenta de projeção de influência no mundo árabe. Por isso, o
Estado clerical funda-se na hostilidade aos EUA (o "Grande Satã") e a
Israel (o "Pequeno Satã"). O antissemitismo e seu corolário, a
negação do Holocausto, esculpe o discurso dos aiatolás. De nação, o Irã
tornou-se uma cruzada.
Nessa moldura, a questão palestina,
tema caro aos árabes mas não aos persas, surge como pretexto estratégico do
regime. A invocação do direito nacional palestino nutriu a política externa do
Irã, abrindo-lhe caminho para uma rede de alianças no mundo árabe: o "eixo
da resistência" envolveu a Síria de Assad, o Hezbollah xiita
no Líbano e o Hamas sunita
nos territórios palestinos.
Exterminar Israel —eis a meta geopolítica
definida pelo Irã dos aiatolás. De fato, um Irã nuclear ameaçaria a
sobrevivência do Estado judeu. Por isso, o ataque ao Irã exprime um consenso
social em Israel e na diáspora judaica. A guerra em Gaza, brutal e criminosa,
divide os israelenses, mesmo depois dos bárbaros atentados do Hamas. Mas a
deflagração de um confronto decisivo com o regime iraniano unifica todas as
correntes políticas relevantes em Israel.
O objetivo oficial do ataque ao Irã, destruir
o programa nuclear do país, depende das megabombas anti-bunker dos EUA.
Contudo, pode-se atingi-lo por meio do objetivo oficioso: a queda do regime dos
aiatolás. A antiga bandeira nacional iraniana, substituída após a revolução de
1979 mas ainda utilizada pelas comunidades iranianas no exílio, exibe o leão
persa à frente do sol nascente. Israel batizou sua operação militar como Rising
Lion, Leão Nascente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário