O Globo
O presidente Donald Trump transformou a Casa
Branca num circo romano. A democracia americana virou um deprimente reality
show
O silêncio com que generais e almirantes
receberam Donald Trump, num encontro inédito, na Base do Corpo de Fuzileiros
Navais de Quantico, Virgínia, parece ter surpreendido o próprio orador.
— Nunca tinha entrado numa sala tão
silenciosa — confessou Trump, antes de cometer mais um delírio verbal, no qual
afirmou pretender usar cidades americanas como “campos de treinamento” para as
forças armadas.
O estranho encontro ficou também marcado pelas palavras do secretário da Guerra, Pete Hegseth, que, entre outras bizarrias, se insurgiu contra os generais gordos. A partir de agora, caso Hegseth consiga impor a sua vontade, não haverá mais generais gordos, nem barbudos, nas forças armadas americanas. Também não haverá mulheres.
A História mostra-nos como, tantas vezes,
líderes poderosos acabam derrotados, não por inimigos externos, mas pela
insidiosa erosão daquilo a que se costuma chamar a seriedade do cargo. A
autoridade não reside apenas na força das leis e das armas. Depende também da
representação simbólica — gestos, contenção, gravidade. Ao expor-se ao
ridículo, degradando esse capital invisível, um chefe de Estado cava seu
próprio túmulo político.
“Passa-se sete vezes uma gargalhada em volta
de uma instituição e a instituição alui-se”, alertava Eça de Queirós.
O caso do imperador romano Cômodo é um bom
exemplo. Filho do imperador Marco Aurélio, que se distinguiu não só nos campos
de batalha e na diplomacia, mas também na filosofia — as suas “Meditações” são
consideradas essenciais para a compreensão da filosofia estoica —, Cômodo
parecia predestinado a uma vida sóbria e sábia. Aconteceu o contrário.
Contrariando o exemplo e a filosofia do pai, o jovem imperador entregou-se a
todo tipo de excentricidades, vícios e palhaçadas. Fantasiava-se de Hércules;
renomeou os meses do calendário romano com os seus próprios títulos e epítetos,
e chegou a rebatizar Roma com o nome de Colônia Comodiana. Também gostava de se
apresentar nas arenas como gladiador, e, sem surpresa, vencia todos os
combates.
Aqueles tristes espetáculos corroíam a
dignidade imperial. Não era apenas um homem de quem todos troçavam. Ao rir-se
dele, a população escarnecia também do trono de Roma. Para muitos, na
aristocracia, e no exército romano, a situação tornou-se intolerável. Os
guardas que deviam defendê-lo acabaram asfixiando-o no banho.
A política moderna exige idênticos rituais de
responsabilidade. Presidentes podem ser populistas, irônicos, até mesmo brutais
— mas convém que não ridicularizem de forma sistemática a função que ocupam.
Donald Trump tem vindo a repetir, em versão
contemporânea, a trágica farsa de Cômodo. Transformou a Casa Branca, agora
forrada de ouro falso, num circo romano, e os encontros com altos dignatários
estrangeiros em combates de gladiadores, nos quais achincalha os adversários,
enquanto os seus cortesãos aplaudem. A democracia americana virou um deprimente
reality show.
Há quem não consiga rir. O silêncio que Trump
enfrentou, na sua reunião com os generais, estava carregado de cólera e de
rancor. No lugar dele teria cuidado na hora do banho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário