segunda-feira, 6 de julho de 2015

Aécio Neves - Desafio

- Folha de S. Paulo

A retórica desconexa e o raciocínio enviesado da presidente Dilma brindaram os brasileiros recentemente com o uso inapropriado de duas palavras duras --delação e traição. Sobre a primeira nem há o que falar --o instrumento da delação premiada é legal e está inserido nas normas democráticas.

Quanto à traição, ainda que não se discuta a legitimidade da presidente para tocar no assunto, afinal não se tem memória de um governante que tenha traído tão profundamente os que nele acreditaram, é preciso anotar a infelicidade da fala. Basta dizer que ao comparar o senhor Ricardo Pessoa a Joaquim Silvério dos Reis, a presidente terminou por comparar o ex-tesoureiro do PT João Vaccari a Tiradentes, o que demonstra no mínimo o absurdo do pensamento.

Estamos vivendo um dos piores períodos de nossa história republicana. As contas públicas, a inflação, a produção industrial, o mercado de trabalho, as obras do PAC, nada resistiu ao monumental conjunto de erros protagonizados pelo governo petista. À incompetência gerencial se soma o oportunismo político, a miopia ideológica e o desapreço pela transparência, para temos pronta a receita do caos. Eis o Brasil do PT.

É preciso, no entanto, reconhecer que o país tem hoje, a favor da preservação da governabilidade, um sólido aparato institucional. Instituições como o Congresso, o Ministério Público, o STF e as demais instâncias do Judiciário atuam com independência e responsabilidade para assegurar a plenitude do Estado de Direito e dos preceitos constitucionais.

Esse é o avanço da democracia que devemos saudar e respeitar. Quando o PT tenta interferir nas ações da Polícia Federal, o partido dá um péssimo exemplo de como devem ser pautadas as relações institucionais no país. Não há mais como calar a sociedade, muito menos suas instituições representativas.

A verdade é que vivemos tempos ruins, agravados a cada dia pelo atual governo, que mentiu e ainda mente, aumentando o índice de desconfiança de empresários, investidores e trabalhadores.

É nesse contexto que o PSDB realizou no domingo (5) a sua convenção nacional, reafirmando compromissos com os brasileiros. Em um encontro repleto de emoção, líderes e militantes de todos os cantos do país trouxeram a sua mobilização intransigente em favor da democracia, da luta por um país mais justo e igualitário, do compromisso com a ética e o interesse público.

A sociedade brasileira está ávida pela boa política. Os partidos da oposição têm o apaixonante desafio de aprofundar a interlocução com a população e responder ao enorme desejo de participação de milhões de cidadãos mobilizados e indignados. É esse o caminho a trilhar, com coerência, transparência e respeito, sem desvios ou concessões.

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Aécio Neves é senador e presidente nacional do PSDB

Ricardo Noblat - À espera do fim do governo

- O Globo

"Estamos prontos para assumir. O PSDB sabe governar." Fernando Henrique Cardoso

Falta combinar com as ruas, é claro. Mas os que apostam no impeachment de Dilma já se ocupam em avaliar humores, fazerem cálculos e trocarem ideias a respeito daquele que seria o maior evento a marcar o início do século XXI no Brasil. Não é todo dia que se derruba um presidente da República com base na lei. Aqui, apenas um foi derrubado assim — Fernando Collor. A força bruta derrubou os outros.

OS MAIS açodados dão por provável que setembro não chegue ao fim sem que antes Dilma se despeça do poder pelo bem ou pelo mal. Pelo bem, por meio da renúncia. Com um único dígito de aprovação, largada pelo PT que a detesta e por Lula que passou a rejeitá-la, Dilma pediria as contas. Não vale supor que uma ex-guerrilheira, tendo provado as dores da tortura, seria incapaz de bater em retirada. Por que não?

AO CONCORDAR em suceder Lula, Dilma se dispôs a servir a um projeto compartilhado por um conjunto de forças de esquerda que jamais haviam chegado ao poder. Provado dele, sim, quando o presidente João Goulart substituiu Jânio Quadros. Desde então estavam na maior fissura para desfrutar do poder novamente. Por isso cavalgaram Lula. E por ele foram cavalgados.

SAÍDA DE DILMA por mal se daria mediante iniciativa jurídica em algum dos fronts onde ela encara sérios problemas. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, ameaça rejeitar a prestação de contas dela relativa ao ano passado. O Tribunal Superior Eleitoral dirá se ela abusou do poder econômico para se reeleger. Caberá ao Supremo Tribunal Federal julgar qualquer coisa que possa envolvê-la na Operação Lava-Jato.

QUEM DISSER que sabe o que irá acontecer está mal informado, mas ninguém quer ser pego de surpresa. No Congresso, ruiu a base de apoio ao governo. Cresce no entorno de Dilma o clima hostil ao ministro Joaquim Levy, da Fazenda, o cérebro do ajuste fiscal. Por sabotado, Michel Temer, o vice-presidente da República, flerta com o eventual abandono da função de coordenador político do governo.

OS PARTIDOS que contam analisam suas chances de se dar bem no dia seguinte à queda de Dilma. No PSDB, o melhor para Aécio seria o impeachment da chapa Dilma-Michel Temer, com a convocação de novas eleições dentro de 90 dias. Nesse período, Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, presidiria o país. Aécio e Eduardo têm conversado muito sobre o assunto.

O SENADOR JOSÉ SERRA (PSDB-SP) e o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) preferem o impeachment de Dilma e a ascensão de Temer. Que governaria até 2018, quando um deles poderia sucedêlo. Com a discrição que o caso requer, ministros de tribunais superiores medem a temperatura entre seus colegas e avaliam as pressões que sofrem.

UMA PEDRA importante no tabuleiro do poder parece confusa. Lula é o nome dela. Há cerca de 20 dias, ele atirou forte em Dilma, no governo e no PT, acusando-os de estarem abaixo do volume morto. Recuou quando soube que Dilma poderia deixá-lo aos cuidados do juiz Sérgio Moro. Lula admite que Dilma não tem mais salvação. A ser assim, melhor para ele e o PT que ela vá embora logo.

SE FOSSE, Lula e o PT se pintariam para a guerra e voltariam a ser oposição. Até 2018 teriam tempo para montar uma frente de partidos de esquerda que bancaria a candidatura de Lula a presidente. Ou outra candidatura. Pois Lula carece de coragem para entrar em bola dividida.

José Roberto de Toledo - Tempo é o senhor da eleição

- O Estado de S. Paulo

Quinze a um. Essa é a vantagem atual de Aécio Neves sobre Geraldo Alckmin em uma eventual disputa de 2.º turno contra Lula, segundo pesquisa inédita do Ibope. Se o mineiro fosse hoje o candidato tucano contra o petista, ganharia por 48% a 33%. Ou seja, 15 pontos de diferença. Se o PSDB fosse de Alckmin, daria empate técnico: 40% a 39%. O ponto a mais do tucano é marginal.

A pesquisa foi a campo há duas semanas, bancada pelo próprio Ibope. As duas perguntas entraram em um sortido e mutante questionário que o instituto aplica mensalmente por encomenda de clientes diversos. Cada um paga por algumas perguntas e só tem acesso ao resultado delas. Por isso a pesquisa é chamada de "Bus". Às vezes, o Ibope pega carona nesse ônibus e inclui cenários eleitorais, avalia governantes e políticas públicas.

Quem olha só para o 15 a 1 é tentado a concluir que a parada está decidida: Aécio é franco favorito e deve ser o candidato do PSDB a presidente. Não se fala mais nisso? Muito ao contrário.

É excepcionalmente alta a taxa de votos inválidos nos dois cenários. Em Aécio 48% x 33% Lula, 19% ou anulariam ou não votariam em ninguém ou não sabem responder. A taxa de não válidos sobe para 21% no cenário Alckmin 40% x 39% Lula. Isso significa que ao menos um em cada cinco eleitores não gosta nem do petista nem do tucano, seja quem for o candidato do PSDB.

É campo fértil e arado para a terceira via – brotada com Ciro Gomes em 2002, e cultivada por Marina Silva em 2010 e 2014. A insatisfação é tanto maior quanto mais alta a escolaridade (chega a 26% entre os eleitores que fizeram faculdade). Esses desencantados são encontrados com maior frequência nas periferias das metrópoles e na região Sul do Brasil.

De que adianta falar da terceira via, se a segunda aparece com entre 40% e 48% das intenções de voto? Pesquisas feitas muito antes da eleição correm mais risco de passarem longe do resultado final – porque o eleitorado muda de opinião ao longo da campanha e boa parte só escolhe o candidato no dia de votar. Tudo favorece PT x PSDB hoje, mas e amanhã ou depois de amanhã?

De qualquer modo, é muito melhor sair na frente do que atrás. E Aécio tem 48% contra 40% de Alckmin. Por que essa vantagem? "Recall" é o jargão. Efeito memória pode ser a tradução. O mineiro disputou faz poucos meses uma acirrada eleição presidencial. Desde então, é a voz da oposição e aparece mais no noticiário do que o paulista. Por enquanto, é o mais conhecido.

Até 2018, essa vantagem pode diminuir se o mineiro não se mantiver em tanta evidência quanto está hoje e/ou se Alckmin for capaz de aumentar sua projeção. Logo, quanto antes for a eleição, melhor para Aécio. Daí ele flertar mais frequentemente com a ideia do impeachment de Dilma Rousseff do que Alckmin. Se ela e o vice, Michel Temer, fossem impedidos por ilegalidade no financiamento eleitoral da chapa em 2014 haveria nova eleição.

Se a eleição ocorrer só em 2018, como está previsto, Alckmin teria mais tempo de fazer frente a Aécio. E se houver impeachment da presidente e de seu vice, mas só depois da metade do mandato de Dilma? Aí não tem nova eleição. O próximo na linha sucessória, Eduardo Cunha, assume e completa o mandato. É o pior cenário para Aécio e Alckmin. Dá chance ao PMDB de Cunha lançar candidato próprio e virar terceira via.

E Lula? Ele perdeu capital até nas áreas mais pró-PT. Tem só metade dos votos numa região onde Dilma teve dois terços dos votos válidos em 2014. E no terço volúvel do Brasil, que ora é petista ora é tucano, Aécio teria hoje uma vantagem três vezes maior do que na época da eleição. Mais do que o tucanistão, essas duas regiões, que agregam três de cada quatro eleitores, derrotariam o ex-presidente – especialmente com Aécio de adversário. Isso, se a eleição fosse hoje. Se for em 2018, depende de como a economia vai ou não se recuperar.

Valdo Cruz - Ebulição

- Folha de S. Paulo

A temperatura da crise atingiu estado de ebulição, aquele em que agentes e vítimas do processo começam a especular e ensaiar saídas, pois acreditam estar próximos do ponto iminente de mudança do cenário político.

De olho nesse estágio, Fernando Henrique Cardoso convoca o PSDB a ocupar cada vez mais seu espaço na oposição ao lulopetismo, mas cobra responsabilidade de seus seguidores. Algo que andou em falta no ninho tucano neste início de ano.

Tímidos no combate a Lula em seus dois mantados e no primeiro de Dilma, tucanos deram uma radicalizada total --a ponto de votarem propostas irresponsáveis no campo fiscal só para sangrar a petista.

Atento ao alerta de FHC, não por outro motivo o PSDB escolheu o slogan "oposição a favor do Brasil" para convenção do domingo (5) que reelegeu Aécio Neves seu presidente.

Uma tentativa de apagar as últimas votações em que contrariou suas convicções e de lembrar ao eleitorado que se considera a melhor alternativa ao PT para dirigir o país.

Enquanto isso, o PMDB sonha em deixar seu papel de coadjuvante num arranjo esquisito. Age ao mesmo tempo como sabotador e tábua de salvação da presidente --o vice Michel Temer virou fator de sustentação do governo; já Eduardo Cunha e Renan Calheiros atuam como agentes desestabilizadores.

Dentro do PT, a senha para esses momentos de crise sempre foi correr para as ruas. Só que o apoio da população sumiu. Menos de 10% do eleitorado aprova o governo Dilma.

No meio desse turbilhão, a presidente tem repetido, cada vez com mais insistência a seus assessores, que não tem nada a ver com essa confusão toda do petrolão, mas quem está pagando a conta é ela.

Enfim, há risco de o poder presidencial virar fumaça, mas o estado de ebulição pode ser revertido com uma boa ducha fria. Depende dos bombeiros de plantão e de o fogo do petrolão não se alastrar no Planalto.

Marcus Pestana - Um projeto que devolva a esperança aos brasileiros

- O Tempo (MG)

Ontem, 5 de julho, o PSDB realizou, em Brasília, a sua 12ª Convenção Nacional, que elegeu a nova direção nacional do partido, presidida pelo senador Aécio Neves, reconduzido à presidência pelas mãos dos delegados de todo o Brasil. A convenção se deu num momento importantíssimo da história brasileira, caracterizado pela maior crise das duas últimas décadas. A gravidade da situação coloca uma enorme responsabilidade nas mãos dos novos dirigentes tucanos. 

Na hora em que os brasileiros começam a ver o desemprego bater à porta, a inflação sair do controle, a Federação fragilizada, com municípios e Estados estrangulados, o consumo e os investimentos despencando, a corrupção atingindo escala endêmica e institucionalizada, o PSDB, maior partido de oposição e contraponto ao PT desde 1994, tem a tarefa de liderar as mudanças necessárias. 

Conscientes de nosso papel histórico, os tucanos dos quatro cantos do país consagraram os lemas “Oposição a favor do Brasil” e “Unidos para mudar”.

O PSDB não é um partido qualquer. Dentro do confuso e pulverizado quadro partidário brasileiro, o PSDB, entre acertos e erros, virtudes e defeitos, consolidou uma tradição e um legado ao país, que orgulha a todos nós. Temos história, princípios, ideias e uma prática transformadora que mudou o Brasil.

Lembro como se fosse hoje do nosso encontro de fundação, em 1988. Era vereador em Juiz de Fora e acompanhei com entusiasmo nossa primeira convenção, orgulhoso em seguir líderes do calibre de Franco Montoro, Mário Covas, José Richa, Fernando Henrique Cardoso, Euclides Scalco, Pimenta da Veiga, entre tantos outros. Na época, foi um gesto de coragem e ousadia, pois rompemos com o PMDB, que ocupava o Palácio do Planalto e a maioria absoluta dos governos estaduais, mas se esgotara como ferramenta política para produzir avanços inadiáveis. Nascemos “longe das benesses do poder, perto do pulsar das ruas”.

Ao longo dos anos, tivemos uma prática coerente e transformadora no governo FHC e em diversos governos estaduais e prefeituras. A estabilização e modernização da economia, a universalização do ensino fundamental, a consolidação do SUS, o lançamento dos programas de transferência de renda, a preparação do Brasil para um novo tempo, são marcas de nossa história.

Agora, mais uma vez, o PSDB é chamado a protagonizar as mudanças que a sociedade brasileira reclama. Diante de um país traumatizado pelo maior estelionato eleitoral da história, pela corrupção em escala antes nunca vista, e pela maior crise econômica desde Collor, o PSDB, tendo Aécio Neves à sua frente, tem que estreitar seus laços com a sociedade brasileira, fazer uma oposição firme e propositiva aos desmandos do PT, juntamente com nossos aliados, e assim erguer um projeto alternativo que recupere a credibilidade da economia brasileira, realinhe o Brasil com o mundo desenvolvido e democrático e devolva a esperança e a confiança aos brasileiros.

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Marcus Pestana é deputado federal (PSDB-MG)

Xico Graziano - Desenvolvimento e democracia no campo

- O Estado de S. Paulo

Há 30 anos o Brasil reacendia sua democracia. Iniciava-se também, naquele momento, um processo de profunda transformação no campo. A agropecuária nacional, definitivamente, abandonava o atraso oligárquico para assumir a dianteira da modernidade capitalista. Sob o mando da tecnologia.

Nesse processo, a produção rural se integrou com a indústria e os serviços, criando complexas teias produtivas que passaram a ser denominadas, em seu conjunto, de agronegócio. Expandiram-se as fronteiras agrícolas rumo ao cerrado do Centro-Oeste, utilizando a técnica do plantio direto, que não promove nem aração nem gradação do solo, facilitando obter duas safras sucessivas no mesmo terreno. Na pecuária, a melhoria da genética dos rebanhos impulsionou a boa sanidade animal.

Nas últimas décadas a agropecuária brasileira cresceu espetacularmente. Segundo a Conab, entre 1976 e 2013 a produção nacional de grãos expandiu-se 306% (47 milhões para 191 milhões de toneladas), enquanto a área cultivada aumentava apenas 51% (37 milhões para 56 milhões de hectares). Conclusão: houve extraordinária elevação da produtividade física da terra, o dobro da observada no mesmo período na agricultura norte-americana.

O País passou a participar decisivamente do mercado agropecuário global, trazendo importantes reflexos na economia interna: as divisas obtidas com o superávit da balança agrícola, ao redor de U$ 100 bilhões (2014), pagaram as contas das importações de bens e produtos industriais. O agronegócio ajuda a movimentar o Brasil. Desapareceu também o desemprego no campo. A abundância de mão de obra cedeu lugar à escassez e, consequentemente, os salários subiram, acima da média nacional.

Desse extraordinário processo de transformação, porém, não participaram todos os agricultores e trabalhadores rurais. Como sói acontecer na História, existem vitoriosos, derrotados e acomodados. Os primeiros conseguiram entrar no ciclo virtuoso do progresso, os segundos perderam o bonde da modernidade rural, os terceiros ainda esperam sua chance. Aqui está o xis da questão agrária contemporânea: como democratizar, pelo acesso à tecnologia e pela integração ao mercado, o sucesso no campo.

Visto tradicionalmente como passaporte para a felicidade nos programas de reforma agrária, o pedaço de terra começou a valer menos que o uso da tecnologia. Pequenas propriedades, intensivas no uso do solo, passaram a ser mais rentáveis do que grandes fazendas extensivas. As novas técnicas favoreceram os agricultores menos abastados, que se qualificaram pela produtividade e pela qualidade de sua produção. Novos conceitos precisam ser utilizados na interpretação da realidade agrária.

Revisitando os 30 anos recentes da nossa história agrária há o que comemorar. A agropecuária brasileira triplicou de tamanho e deu um extraordinário salto de qualidade. Se entre os direitos fundamentais da pessoa humana se coloca o direito à adequada alimentação, pode-se afirmar que, no Brasil, uma pujante agricultura garante a segurança alimentar da população. E ainda exporta para o mundo.

Por outro lado, esse incrível desempenho do agro nacional está sendo comandado por um seleto grupo de produtores rurais – pequenos, médios ou grandes – que foram capazes de incorporar, pela via do esforço tecnológico, ganhos de produtividade, aumentando a rentabilidade de seus negócios. Estima-se que, dos 4,4 milhões de estabelecimentos produtivos do campo (Censo Agropecuário IBGE/2006), somente 500 mil deles se responsabilizam por 87% do valor da produção. Quer dizer, o dinamismo da agropecuária nacional está sendo comandado por uma dianteira de 11,4% dos agricultores.

Em contrapartida, os demais 3,9 milhões de estabelecimentos produzem pequena fatia (apenas 13%) da produção agropecuária, indicando dificuldades na geração de sua renda. A base da pirâmide, formada por 2,9 milhões de estabelecimentos rurais, responde apenas por 4% da produção rural. Esse pífio desempenho produtivo sugere haver pobreza nessa enorme faixa de pequenos agricultores, a grande maioria localizada no território nordestino. Aqui mora o drama rural do País, uma situação de miséria familiar que continua machucando a democracia brasileira.

Determinante desse triste quadro é a baixa escolaridade no campo. Portanto, somente uma vigorosa política de educação e difusão tecnológica poderá elevar a produtividade e promover a geração de renda dessa grande maioria de agricultores pobres, que pouco participa da safra nacional. Incluem-se neles os recém-assentados nos projetos de reforma agrária, contingente aproximado de 1 milhão de famílias. Com terra, sem renda.

Repetindo o argumento: o contraste entre os produtores rurais bem-sucedidos e os empacados na história somente será superado com a participação no ciclo tecnológico. A verdadeira conquista da democracia vai, assim, depender de decididos investimentos na educação e na capacitação profissional. Somente a instrução, direcionada à juventude rural, conseguirá enfrentar a pobreza que denigre a moderna agricultura. Chegou a vez da revolução pelo conhecimento, pelo saber fazer.

Nessa jornada que parece interminável a favor da justiça social, não podemos cometer o equívoco de Dom Quixote, que combatia moinhos de vento. Não haverá retorno ao passado. É no contexto do capitalismo agrário, em sua fase globalizada e tecnológica, que devemos encontrar as condições objetivas da luta política. Não se trata de capitulação ideológica, mas de, simplesmente, reconhecer a realidade no século 21. Nada de quimeras. Precisamos incluir os pequenos no progresso do agronegócio.

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Xico Graziano é agrônomo, foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

O dever da oposição – Editorial / O Estado de S. Paulo

Diante da crise econômica, política, social e moral que assola o País, são muito oportunas as observações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso a respeito do papel da oposição no atual cenário brasileiro. Em artigo publicado ontem no Estado (A responsabilidade das oposições), ele condensa, com clarividência, o sentimento da população: "Espera-se mais das oposições. Espera-se que apresentem sua visão de futuro, apontando um rumo para o País".

O papel da oposição vai muito além de simplesmente se opor a quem está no poder. Antes de mais nada, seu objetivo deve ser a definição e a defesa dos interesses do País. A conquista do poder, em eleições livres, é o meio para atender àqueles interesses.

Por essa razão, mais do que se opor ao que está aí – numa agenda negativa ou simplesmente reativa –, cumpre à oposição propor uma alternativa viável que contribua de fato para que o País saia da crise e possa realizar seu destino de grandeza.

A lógica do "tanto pior, melhor" é absolutamente inadequada, como lembra Fernando Henrique. "Nada justifica arruinar ainda mais o futuro", afirma o ex-presidente, recordando, por exemplo, o erro de extinguir o fator previdenciário.

É óbvio que a degradação do governo facilita o trabalho dos partidos de oposição nas eleições seguintes, mas tal degradação tem um alto custo para o País. Não se pode simplesmente deixar o governo sangrar, pois nessa hemorragia vão-se também muitos bens que dizem respeito a toda a sociedade, e não apenas aos inquilinos do poder.

É um equívoco pensar que a crise dificulta apenas o trabalho do governo. Ela também aumenta, em igual medida, as responsabilidades da oposição. O cenário de difíceis condições políticas e econômicas – como é o do Brasil de hoje – não comporta soluções fáceis e indolores nem muito menos slogans que apenas expressam uma posição ideológica, mas são incapazes, por si sós, de promoverem a saída da crise.

A oposição deve atuar no plano prático – político – e não apenas no ideológico – moral. Esse é o seu papel, que se configura como verdadeiro dever institucional. Não fazê-lo seria uma grave omissão, verdadeira cumplicidade com os desmandos que tanto prejudicam o País.

Assistir passivamente à crise gera um nefasto círculo vicioso, já que distancia a sociedade também da oposição. Todos – governo e oposição – passam a sofrer da mesma desconfiança da população, o que faz agravar ainda mais os problemas econômicos, políticos, sociais e morais. Nesse momento, não se pode permitir que, à crise de confiança que desmoraliza o governo, se junte a indiferença da Nação às coisas da política e às coisas públicas. A anomia não é saída para crises. Por isso, urge que a oposição se faça presente, oferecendo, mais do que esperanças, caminhos viáveis e confiáveis para o País.

Nessa empreitada, a oposição tem de ser forte, mas isso não significa nem pode significar nenhum viés antidemocrático. É equivocada a ideia de que uma forte oposição deve levar, em último termo, à derrubada de quem está no poder. A força da oposição não reside nesse tipo de radicalismo. Está, isso sim, na sua capacidade propositiva.

É compreensível a insatisfação da população com o que está aí. Diariamente, ela assiste ao cínico desmazelo com que o País é tratado por um governo incompetente e está à espera de uma alternativa. Compete à oposição oferecer uma resposta a esses legítimos anseios – uma arrojada resposta, que convença, motive e desperte o melhor de cada um.

Quando aqui se fala em destino de grandeza do País, não se faz referência apenas a seu tamanho continental e a suas riquezas naturais. É antes de tudo a convicção de que o seu povo é capaz de realizar um projeto de crescimento econômico e de justiça social que coloque o Brasil, definitivamente, entre as maiores potências do mundo.

Mais que nunca é necessário que a oposição tenha uma visão de futuro factível e audaciosa, que ofereça soluções reais aos problemas do presente. A crise é séria, mas pode ser vencida com o trabalho sério, honesto e competente dos brasileiros – e a oposição tem a missão de guiá-los.

Marcos Nobre - A ameaça grega

- Valor Econômico

• É a própria Europa que se encontra à beira do precipício

A crise grega não se enquadra na categoria "risco sistêmico". Não ameaça o sistema bancário internacional, muito menos a moeda única europeia - não diretamente, pelo menos. O que assusta é justamente isso: não sendo antessala de nenhuma crise global, a Grécia representa uma ameaça ainda mais grave. Representa o mais claro sintoma de que o arranjo político internacional que se instalou depois de 1989 está caduco. A crise econômica mundial iniciada em 2007 foi o primeiro sério abalo desse arranjo. As revoltas democráticas iniciadas em 2011 mundo afora mostraram que ele é insustentável.

Com o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, estabeleceu-se um sistema de coordenação que combinava relativa margem de autonomia para políticas nacionais de desenvolvimento e de proteção social com submissão forçada à lógica da Guerra Fria. A margem de autonomia de cada país era diretamente proporcional ao seu grau de desenvolvimento e inversamente proporcional à posição estratégica que ocupava na disputa entre as chamadas superpotências, EUA e União Soviética. Basta lembrar as ditaduras em países como Portugal, Espanha, Grécia, ou na América Latina para ter claro o alcance dessa limitação.

Dentro desses limites, alguns poucos países europeus conseguiram produzir um sistema político democrático polarizado entre direita e esquerda. A base comum sobre a qual se dava essa polarização política foi um modelo de sociedade que ficou conhecido como Estado de Bem-Estar Social e que parece hoje uma espécie de oásis de justiça social diante das misérias que se seguiram. Porque o acordo de barganhar algum grau de autodeterminação nacional por alinhamento estrito à estratégia geopolítica dos EUA se encerrou definitivamente com o colapso do bloco liderado pela União Soviética, em 1991.

Com estados nacionais endividados e mercados em rápido processo de liberalização, a camisa de força não era mais a da Guerra Fria, mas a do crédito e do investimento. Para conseguir fechar as contas e manter o crescimento econômico, países tinham de se submeter a uma dieta rigorosa de política econômica e de desenho institucional. Tempo de globalização, governança, de protagonismo das agências de risco. A metáfora predileta é simples, direta e regressiva: quem quer crédito e investimento tem de "fazer o dever de casa".

O preço cobrado por esse novo consenso forçado foi a canibalização dos sistemas partidários erguidos no pós-1945, refuncionalizados para servir a novos fins. Os partidos líderes do sistema passaram a se espremer no exíguo espaço de um novo centro político. Daí nasceu, por exemplo, o "Novo Centro", slogan do governo do Partido Social-Democrata alemão liderado por Gerhard Schröder de 1998 a 2005. Mas a versão mais famosa dessa reconfiguração foi a "Terceira Via", representada exemplarmente pelo governo de Tony Blair na Inglaterra, entre 1997 e 2007. Foi uma aceitação do novo consenso com dez porcento de desconto social - às vezes, nem mesmo isso.

Todo esse arranjo foi minado em sua base pela crise econômica mundial. A miopia ideológica que deixou quebrar o banco Lehman Brothers em 2008 está agora amplificada no caso da quebra da Grécia. A questão de fundo colocada pela crise grega não é apenas a do colapso de um país inteiro. O que está em causa é saber se o declínio do arranjo que vigorou nos últimos 25 anos não irá arrastar com o tempo o próprio projeto do euro. Não por causa da Grécia, não por causa de um "erro técnico" qualquer na construção da moeda única.

Não faltam avisos de que o arranjo que surgiu da globalização dos anos 1990 não tem mais como se sustentar. O sinal mais evidente são as revoltas democráticas que sacudiram o mundo a partir de 2011. Ainda que muito diferentes entre si, movimentos como o 15-M na Espanha, o Occupy Wall Street, a Primavera Árabe, o Junho brasileiro apontam para o esgotamento de uma forma de entender e de fazer política que pertence ao século 20. Também indicam que os discursos do dever de casa e da austeridade perderam capacidade de se impor.

O mais dramático da situação está em que o carcomido sistema político europeu vê as novas formas de organização política que surgiram dos protestos como competidores a serem abatidos e não como o prenúncio de uma reorganização necessária. Sua tática de sobrevivência é tentar reduzir a alternativa a uma escolha entre o establishment e o risco real da volta do fascismo e do nazismo. Consegue, com isso, barrar o aprofundamento da democracia que, só ele, pode efetivamente bloquear a ascensão da extrema direita no continente.

A democracia de massas europeia da segunda metade do século 20 foi animada pela ideia de que partidos deveriam ser braços da sociedade dentro do Estado. Hoje, partidos se tornaram entidades paraestatais, braços do Estado para controlar a sociedade. Não se trata de edulcorar as novas formas de organização política surgidas nos últimos anos, como o Syriza, na Grécia, ou o Podemos, na Espanha. Trata-se apenas de reconhecer que são animadas pelo impulso original que a forma partido um dia pretendeu ter.

Dentro do velho sistema europeu em vigor, não há quem não saiba que a dívida grega é impagável. Não há quem não saiba que a tolerância social para políticas recessivas e de cortes de direitos chegou ao seu limite. Não há quem não saiba que a Grécia foi parar na beira do precipício porque seu atual governo estava, desde o início, com um problema insolúvel nas mãos.

A atitude do sistema europeu em relação à Grécia é tentativa desesperada de colocar a nova energia social de volta dentro da garrafa, dentro dos estreitos limites do arranjo forçado herdado da globalização. Trata-se de tentar eliminar alternativas ao establishment, aos velhos partidos e às velhas práticas. Nessa lógica, "fazer o dever de casa" não é suficiente; é preciso fazê-lo nas dependências da velha escola europeia. Uma escola que ainda usa a palmatória, que está com seus dias contados. Na Grécia, é a Europa que se encontra à beira do precipício.

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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap

Vinicius Torres Freire - Raivas, Europa, Grécia, Brasil

- Folha de S. Paulo, 5 / 7/ 2015

• Mexidas políticas europeias podem inspirar alternativas para o apodrecimento de partidos por aqui

Levou mais de seis anos para que o desastre da finança de 2008 arranhasse o sistema político europeu. Mesmo assim, a Grande Recessão teve de ser coadjuvada por corrupções e incompetências grossas para abalar o centro político, para que partidos à margem ocupassem frestas. Nos EUA, a política tradicional mal teve alergia; mesmo o berne do Tea Party minguou um tico.

Sim, trata-se aqui de Grécia e Syriza, de Podemos e Espanha, fascistas da França e em tantos países, mas não só. O colapso grego começa a inquietar a política italiana.

É pouco, mas algo acontece desde 2014. Convém prestar atenção. Também temos problemas, bidu.

Além de cansaço com a indiferenciação dos partidos, de seu alheamento da realidade e de corrupções, nossa degringolada tem outros motivos, mas é grave. Os melhores partidos que tivemos apodrecem; "algo" aconteceu em 2013; será ruim e longa a nossa crise partidária, representativa, policial e econômica.

De resto, não costumamos ser imunes a remelexos políticos euro-americanos.
Importamos ideias, aparências ou modas. No passado remoto e morto, o PT um dia pareceu mais original, mas não faz muito o PSDB era a "Terceira Via" brasileirinha.

Quem sabe ideias ultramarinas possam inspirar tanta gente que está farta dessa chusma de putrefatos e dessa caterva de medíocres que fazem o grosso desses partidos que um dia tiveram alguma força, direção e sentido.

Mas algo aconteceu na Europa, como se dizia. Na eleição parlamentar europeia de maio de 2014, partidos "extremistas" e "populistas", no dizer do establishment europeu, venceram a votação em seus países ou se destacaram do nada ou da miudeza eleitoral criticando a "austeridade" ou a própria eurolândia.

Assustados com qualquer sinal de vida, os europeus chegaram a chamar a eleição de "terremoto", embora se sentisse de fato cheiro de queimado. A Frente Nacional fascista venceu a eleição europeia na França, o nacionalista Ukip no Reino Unido, "radicais" de esquerda e direita puseram a cabeça para fora em vários países.

Houve, porém, o Syriza, a esquerda grega que, salvo milagre, estará à beira da derrocada antes de completar meio ano de poder. Mas em particular houve o Podemos.

Na Espanha, partidos novos ou menos velhos lascaram um pedaço do quase bipartidarismo centrista de PP (à direita) e dos socialistas (PSOE, à esquerda).

O Podemos levou cidades importantes e é um partido emergente da crise espanhola, derivado dos "indignados" que acamparam no centro de Madri em 2011, das "ruas". Mais, ou menos, que um partido, são um aglomerado de improviso ou premeditadamente informe e mutante, dito de "esquerda", embora ainda não se saiba muito bem o que apite --e talvez isso seja bom.

O Podemos e associados, ressalte-se, saíram das "ruas". O Syriza nasceu dos caídos nas ruas, da crise econômica horrenda, mas é uma geleia variada de esquerdistas mais históricos, como ex-comunistas, com gotas de hortelã de esquerda nova. Todos ainda têm ideias econômicas destrambelhadas, mas são algo de novo.

Há muita gente farta aqui. Há alguma "rua". Haverá muitos caídos da crise. Falta partido para dar forma às revoltas.

Este colunista estará de férias da crise até agosto.

José de Souza Martins - Pedaladas políticas

- O Estado de S. Paulo / Aliás

• Festa pela ciclovia mostra o contramovimento da Prefeitura tentando reocupar o espaço do protesto social

A compreensivelmente carnavalesca inauguração da ciclovia da Avenida Paulista cobre mais do que o canteiro central da histórica e emblemática rua de São Paulo. Cobre largo período de mudanças na concepção paulistana do urbano e das funções das ruas e avenidas na vida cotidiana de uma cidade que tem passado por transformações mais ou menos abruptas. A Paulista surgiu há mais de um século, concebida e planejada pelo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima, aberta em seguida à abolição da escravatura, quando os primeiros bondes puxados a burro substituíam cadeirinhas e redes carregadas no ombro de escravos. A Paulista foi o lugar que anunciou um novo modo de morar, de viver e de pensar, uma nova vida doméstica e familiar, de gente muito rica servida não mais por mucamas, mas por serviçais que até falavam francês. Em muitas dessas casas, francês era a língua da conversação cotidiana. O sotaque da Paulista era o da nova Pauliceia e do novo Brasil.

O espigão do Caaguaçu fora escolhido para a nova rua e o novo bairro porque se acreditava que os lugares altos eram sadios, arejados pela brisa permanente, o oposto dos baixios do Tamanduateí e do Anhangabaú insalubres pelos miasmas doentios. A cidade era agora republicana e parecia ter um plano, o da ordem e do progresso, na saúde pública e na saúde política. Não por acaso, numa ponta da Paulista se concentrariam os grandes hospitais e na outra os cemitérios - o do Araçá, o do Redentor e o do Santíssimo Sacramento, mais tarde o São Paulo. Era para tirar os enterros do centro. Tudo muito higiênico e funcional, até socialmente no dito popular alegórico de duplo sentido: “A Avenida Paulista é que nem casamento: começa no Paraíso e termina na Consolação”.

Mas não é de hoje que a Paulista atrai a multidão, como nessa inauguração da ciclovia. Tornou-se uma espécie de palco do imaginário do povo. Ficaram famosos os corsos carnavalescos já nos anos 1910, até com suas tragédias de bastidor, como a que culminaria na navalhada no rosto da mais bela cortesã de São Paulo, Nenê Romano, em 1918, ordenada por uma noiva enciumada. Nenê seria assassinada em 1923 pelo advogado e amante, Moacyr Piza, poeta e boêmio.

Já em 1917, o povão tentara invadir a Paulista para uma demonstração política na frente da casa do secretário da Justiça, quando conduzia ao Araçá o caixão do operário José Martinez, ferido e morto a tiros pela Força Pública, na frente da Tecelagem Mariângela, do Brás, durante a greve geral. Policiais de armas embaladas impediram a demonstração.

Tornou-se comum que operários, nos domingos, levassem a família de bonde até a Paulista para ver os palacetes dos ricaços para os quais trabalhavam. Mas também porque a avenida era lindíssima, com os jardins das residências, como ainda se vê na Casa das Rosas, e o Parque Siqueira Campos, resto de Mata Atlântica sobrevivendo dentro da cidade. O palacete do conde Matarazzo era o preferido. Seus operários vinham do Brás, da Mooca, do Belenzinho, da Água Branca, de São Caetano, com a roupa de missa. Postavam-se do lado de lá da rua para mostrar à esposa e aos filhos o monumento da riqueza que seu trabalho ajudara a construir. Não raro para dizer-lhes que Matarazzo era imigrante, viera com uma mão atrás e outra na frente, trabalhara muito, comera pão com banana até se tornar o homem mais rico do Brasil. Era lenda, que o próprio Matarazzo difundia. Mas o proletariado gostava e se via nela.

Não menos carnavalescos os efeitos de rua do casamento de uma das netas do Conde, em 1945. A multidão acorreu à calçada fronteira, do outro lado, para ver os convidados chegarem para a festa de mais de um dia, gente de poder e de dinheiro. A guerra mal havia acabado. Ainda se padecia o racionamento do pão, as filas para comprá-lo, mas ali não havia racionamento algum. Melhor ver a abundância do outro do que a escassez própria. Era o desfile das grandes contradições sociais no espetáculo do conformismo de um fim de era.

O enredo dos espetáculos da Paulista mudou após o regime militar. Ganhou conotação política, a avenida passou a abrigar, também, o protesto social. Ainda que misturando temas não necessariamente convergentes, os protestos da Paulista vão hoje da afirmação de identidades, como no caso da Parada Gay, à reivindicação de direitos, como nos casos dos protestos sindicais. O advento da multidão como novo sujeito da realidade urbana do País, encontrou na Paulista o cenário sobrante da escassez de espaços para demonstrações públicas na cidade. Algo inerente ao que é próprio das metrópoles modernas não tem aqui o lugar adequado para a teatralidade política. A ocupação da Paulista por diferentes multidões inventa o novo cenário da política. Assim como diversos sujeitos do povo a ocupam para reivindicar, protestar e afirmar o que é basicamente a sociedade contra o Estado, a inauguração festiva da necessária ciclovia mostra o contramovimento do governo municipal tentando reocupar e dominar o espaço do protesto social.

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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de Uma sociologia da vida cotidiana (Contexto)

Jacob do Bandolim & Zimbo Trio - Chega de Saudade (1968)


João Cabral de Melo Neto - Poema(s) da Cabra

Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.

Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.
1
A cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.
2
Se o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
3
O negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.
4
Quem já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
5
A cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
6
Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
7
A vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
8
O núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.

Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.
9
O núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.
*
O Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.

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Texto extraído do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1994, pág. 254.

domingo, 5 de julho de 2015

Opinião do dia – Aécio Neves

Talvez uma das maiores tarefas, nestes dois anos, seja preservar a unidade do partido. E esse discurso é discurso de quem teme muito o PSDB e fica desde já estimulando a nossa divisão. E para isso eu tenho que, infelizmente, dar uma má notícia: nós estaremos unidos e prontos para vencer as eleições para o bem do Brasil.

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Aécio Neves é senador(MG) e presidente nacional do PSDB, O Globo, 5 de julho de 2015.

Os arquivos do delator

• As anotações e as planilhas que revelam como funcionava o esquema de corrupção que unia governo, políticos e empreiteiros no saque ao caixa da Petrobras

Robson Bonin – Veja

O engenheiro Ricardo Pessoa, dono da construtora UTC, é famoso por sua grande capacidade de organização – característica imprescindível para alguém que exercia uma função vital no chamado "clube do bilhão".

Ele foi apontado pelos investigadores como o chefe do grupo que durante a última década operou o maior esquema de desvio de dinheiro público da história do país. O empreiteiro entregou à Justiça dezenas de planilhas com movimentações financeiras, manuscritos de reuniões e agendas que fazem do seu acordo de delação um dos mais contundentes e importantes da Operação Lava-Jato. O material constitui um verdadeiro inventário da corrupção. Em uma série de depoimentos aos investigadores do Ministério Público, Pessoa detalhou o que fez, viu e ouviu como personagem central do escândalo da Petrobras. Na seqüência, apresentou os documentos que, segundo ele, provam tudo o que disse.

VEJA teve acesso ao arquivo do empreiteiro. Um dos alvos é a campanha de Dilma de 2014 e seu tesoureiro, Edinho Silva, o atual ministro da Comunicação Social. Segundo o delator, ele doou 7,5 milhões de reais à campanha depois de ser convencido por Edinho Silva. "O senhor tem obras no governo e na Petrobras, então o senhor tem que contribuir. O senhor quer continuar tendo?", disse o tesoureiro em uma reunião. O empreiteiro contou que não interpretou como ameaça, mas como uma "persuasão bastante elegante". Na dúvida, "para evitar entraves" nos seus negócios com a Petrobras, decidiu colaborar para que o "sistema vigente" continuasse funcionando — um achaque educado. Mas há outro complicador para Edinho: quem apareceu em nome dele para fechar os detalhes da "doação", segundo Pessoa, foi Manoel de Araújo Sobrinho, o atual chefe de gabinete do ministro. Em plena atividade eleitoral, Manoel se apresentava aos empresários como funcionário da Presidência da República. Era outro recado elegante para que o alvo da "persuasão" soubesse com quem realmente estava falando.

Lula e a conta secreta no exterior
O documento reproduz a movimentação de uma conta secreta na Suíça aberta pelos empreiteiros para pagar propina. Segundo Ricardo Pessoa, foi dela que saíram 2,4 milhões de reais que reforçaram o caixa da campanha do ex-presidente Lula em 2006 — dinheiro desviado dos cofres da Petrobras que chegou ao Brasil em uma operação financeira totalmente clandestina e ilegal. O delator contou que a UTC, a lesa, a Queiroz Galvão e a Camargo Corrêa formavam o consórcio que venceu a licitação para construir três plataformas de petróleo. Como era regra na estatal, um porcentual do contrato era obrigatoriamente reservado para subornos. A conta foi criada para o "pagamento de comissionamentos devidos a agentes públicos em razão das obras da Petrobras, ou seja, o pagamento de propinas", disse Pessoa. Ela também ajuda a dificultar o rastreamento de corruptos e corruptores. Foi dessa fonte clandestina que saiu o dinheiro que ajudou Lula a se reeleger.

Para comprovar a existência da conta secreta, o empreiteiro apresentou ao Ministério Público extratos com as movimentações. Batizada de "Controle RJ 53 — US$", a planilha registra operações envolvendo 5 milhões de dólares em pagamentos de propina. Além de financiar o caixa dois de Lula, a conta suíça foi utilizada para pagar os operadores do PT na Petrobras. Entre as movimentações listadas pelo empreiteiro estão pagamentos ao ex-gerente de Serviços da Petrobras Pedro Barusco, um dos responsáveis pela coleta das propinas destinadas ao PT. Os repasses à campanha de Lula foram acertados entre Ricardo Pessoa e o então tesoureiro petista, José de Filippi. Era o próprio empreiteiro que levava os pacotes de dinheiro ao comitê da campanha em São Paulo. A entrega, como VEJA revelou em sua edição passada, era cercada de medidas de segurança típicas de organizações criminosas. Ao chegar à porta do comitê, o empreiteiro dizia a senha "tulipa". Se ele ouvia como resposta a palavra "caneco", seguia direto para a tesouraria. Se confirmados pela Justiça, os pagamentos via caixa dois são a primeira prova de que o ex-presidente Lula também foi beneficiado diretamente pelo petrolão.

A planilha do caixa dois
Em sua delação, Ricardo Pessoa disse que distribuir dinheiro para campanhas políticas fazia parte da estratégia de suas empresas para permitir "que a engrenagem andasse perfeitamente, tirando as pedras do caminho e abrindo portas no Congresso, na Câmara e em todos os órgãos públicos". Em 2010, segundo a planilha de doações apresentada ao Ministério Público pelo empreiteiro, algumas dessas pedras foram removidas com dinheiro do chamado caixa dois. Na lista aparece o nome de quinze candidatos que receberam recursos "por fora", sem registro oficial. O documento é dividido em três colunas: as doações "realizadas pela UTC", as doações "realizadas pela Constran" e "pedido". É justamente nessa última coluna que o delator anotou os repasses ilegais. Nela, constam como beneficiados o ministro-chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, e o senador do PSDB, Aloysio Nunes. O ministro, segundo o empreiteiro, recebeu 500 000 reais em doações oficiais (250000 da UTC e 250 000 da Constran) mais 250 000 reais em dinheiro vivo para a sua campanha ao governo de São Paulo. Já o senador recebeu 300 000 reais da UTC e 200000 reais em dinheiro vivo.

Tanto o senador quanto o ministro refutaram as acusações. Mercadante admite apenas ter recebido as doações legais. Aloysio Nunes também. Além do senador e do ministro da Casa Civil, destacam-se na relação do caixa dois da UTC o ex-ministro do PMDB Hélio Costa (250000 reais), que concorria ao governo de Minas Gerais, o ex-tesoureiro petista e atual secretário de Saúde da prefeitura de São Paulo, José de Filippi Júnior (150 000 reais), o ex-deputado do PR e mensaleiro Valdemar Costa Neto (200 000 reais), o líder do PP na Câmara Eduardo da Fonte (100 000 reais) e o deputado do DEM Jorge Tadeu Mudalen (200000 reais).

A "compra" da CPI e os partidos-laranja
Quando viajou a Brasília, no ano passado, para se reunir com o então líder do PTB no Senado, Gim Argello, Ricardo Pessoa estava assustado com a possibilidade de ser convocado para depor na CPI da Petrobras. Encarar os parlamentares no meio das investigações da Lava-Jato não era uma opção. Antes de aceitar pagar a Gim Argello alguns milhões de reais para impedir a sua convocação, Ricardo Pessoa quis ter a certeza de que o senador, como vice-presidente da comissão, teria mesmo condições de entregar o prometido. Deu-se o seguinte diálogo:

— Você garante que não vou ser convocado? — perguntou Pessoa.

— Garanto! — respondeu Gim.

— 100%? — insistiu Pessoa.

— 100% ninguém pode ser. É 90%! — prometeu Gim.

O acordo foi fechado em 5 milhões de reais. Para camuflar o suborno, o dinheiro foi repassado na forma de doações eleitorais aos diretórios de quatro partidos controlados pelo senador governista no Distrito Federal — PR, DEM, PRTB e PMN. O empreiteiro entregou aos investigadores uma planilha listando as operações. A CPI terminou sem apurar nada e sem importunar Ricardo Pessoa. O delator contou que também doou 150 000 reais à campanha do deputado Júlio Delgado com o mesmo objetivo. O pagamento, segundo ele, foi realizado por intermédio do presidente do PSB de Belo Horizonte. Júlio Delgado nega o acordo e garante que não recebeu nada.

A "conta-corrente" JVN
O dono da UTC entregou muito dinheiro em espécie nas mãos de João Vaccari Neto. Precisamente 3,9 milhões de "pixulecos" — como o ex-tesoureiro do PT chamava as propinas que recebia. Os detalhes estão na planilha identificada como "JVN-PT", na qual o empreiteiro registrou as datas e os valores de onze repasses feitos ao tesoureiro entre 2008 e 2013. Ricardo Pessoa contou aos investigadores que começou a pagar propina a Vaccari depois que a Petrobras iniciou uma série de grandes investimentos no setor de óleo e gás. "A partir daí (2007), todas as obras licitadas na Petrobras passaram a representar "motivo" para novas e grandes contribuições políticas ao PT e ao PP, partidos diretamente ligados às nomeações das diretorias", informou Pessoa. O delator fez ainda uma anotação de próprio punho que não deixa dúvida sobre a natureza do documento: "caixa 2". Ou seja, Vaccari mantinha um caixa dois dentro do caixa dois do PT.

A JVN-PT era a conta que o tesoureiro tinha na UTC para bancar suas despesas de varejo. Preso há quase três meses em Curitiba, João Vaccari, o Moch, referência à sua inseparável mochila preta, mantinha negócios escusos com vários empresários, mas com Ricardo Pessoa as relações beiravam a camaradagem. O empreiteiro contou que repassou 15 milhões de reais ao tesoureiro. O pagamento foi condição para que a UTC ingressasse no consórcio escolhido pela Petrobras para construir o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). Pessoa narrou aos investigadores que pagava propina ao PT "de modo contínuo", por meio de doações oficiais e também de repasses clandestinos. Era tanto dinheiro que o delator mantinha em seu computador uma planilha exclusiva para registrar o fluxo dos recursos. Dessa conta-propina também saíam os "pixulecos" para manter o luxo de alguns dirigentes do partido, como se verá a seguir.

Propina disfarçada de consultoria
O petista José Dirceu ganhou muito dinheiro. Desde que deixou a Casa Civil abatido pelo escândalo do mensalão, em 2005, o ex-ministro recebeu cerca de 39 milhões de reais oficialmente fazendo consultorias para o setor privado. As investigações da Operação Lava-Jato, no entanto, desvendaram a verdadeira natureza dos serviços do mensaleiro. Em sua delação premiada, o empreiteiro Ricardo Pessoa apresenta documentos que mostram que as consultorias nada mais eram do que fachada para o recebimento de dinheiro desviado da Petrobras. O dono da UTC contou aos investigadores que foi procurado pelo ex-ministro em meados de 2012. Dirceu, que exercia forte influência sobre os diretores da Petrobras, ofereceu ao empreiteiro os seus serviços de consultor. Assim como no caso do pedido de Edinho Silva, negar dinheiro a Dirceu poderia ser sinônimo de problemas. Melhor não arriscar. Afinal de contas, os negócios iam muito bem. O empreiteiro fechou um acordo para pagar 1,4 milhão de reais ao mensaleiro. O objeto do contrato: prospectar negócios no exterior.

A única coisa que José Dirceu prospectou foram aditivos ao contrato. Sem nenhum tipo de serviço prestado, o consultor conseguiu mais 906000 reais da UTC no ano seguinte. Quando a última parcela desse segundo contrato venceu, Dirceu já fazia parte da população carcerária do presídio da Papuda, em Brasília. Mas nem a prisão foi capaz de atrapalhar os negócios do ex-ministro. Ricardo Pessoa contou aos investigadores que, a pedido do próprio Dirceu, assinou um segundo aditivo, de 840000 reais. O contrato foi firmado quando o mensaleiro já estava no terceiro mês de prisão. "Apenas e tão somente em razão de se tratar de José Dirceu e da sua grande influência no PT é que, mesmo sabendo da impossibilidade de ele trabalhar no contrato firmado, porque estava preso, o aditamento foi feito e as parcelas continuaram a ser pagas", disse o dono da UTC aos procuradores. O mais impressionante: como a tabela acima comprova, metade do dinheiro pago pela UTC a Dirceu foi debitada com autorização de Vaccari da conta-corrente que a empreiteira administrava para o PT. Ou seja, o ex-ministro foi pago com propina da Petrobras.

O homem que fabricava dinheiro
Para não deixarem rastros, os criminosos evitam usar o sistema financeiro e recorrem a doleiros e operadores para produzir o combustível da corrupção: dinheiro vivo. Ricardo Pessoa tinha o seu fornecedor de dinheiro, o empresário Adir Assad, que está preso há quatro meses. A Polícia Federal já sabe que Assad utilizava suas empresas para "esfriar" dinheiro. Funcionava assim: a UTC simulava a contratação de Assad para justificar a saída de recursos do seu caixa. O empresário, por sua vez, emitia uma nota fiscal e recebia uma comissão pelo serviço que não existia. Pronto, o dinheiro podia ser entregue aos corruptos sem deixar pistas de sua origem. Ricardo Pessoa entregou uma planilha de quatro páginas que demonstra o volume de recursos envolvidos no petrolão. Entre 2007 e 2013, o "fabricante de dinheiro" entregou ao dono da UTC nada menos que 76,6 milhões de reais em dinheiro vivo. A bolada serviu para fazer doações clandestinas, pagar propinas e outras finalidades nada nobres. Apenas em 2008, ano de eleições municipais, Adir Assad "fabricou" 9,1 milhões de reais para a UTC. As notas fiscais fajutas foram emitidas em nome das empresas SM Terraplenagem e Rock Star. Em 2010, durante as eleições presidenciais, Assad entregou 15 milhões de reais ao empreiteiro. Nessa época, ainda não havia pagamento de propina disfarçado de doações oficiais.

Os achacadores (Fernando Collor, Edison Lobão e...)
Empreiteiro que depende do governo, Ricardo Pessoa era um alvo preferencial de políticos e partidos que criam dificuldades para vender facilidades. Como é uma pessoa metódica, os achaques estão detalhadamente descritos em suas agendas e os pagamentos, anotados em planilhas. É desse arquivo que sai a tabela "Controle de compromissos RJ/Norte", o documento que registra os 20 milhões de reais pagos ao senador Fernando Collor (PTB-AL) e a seu operador, o empresário Pedro Paulo Leoni Ramos. Acertada depois que Collor e seu grupo ajudaram o dono da UTC a fraudar uma licitação de 650 milhões de reais na BR Distribuidora, a propina começa a cair na "conta-corrente" de Collor e "PP", como Pedro Paulo é identificado no documento, em dezembro de 2010. A tabela mostra que os pagamentos mensais se estenderam até julho de 2012. "É bom esclarecer que o valor solicitado para que a UTC garantisse a vitória no contrato só foi aceito neste patamar levando-se em consideração quem estava por trás de Pedro Paulo", diz o documento em poder do Ministério Público.

Ricardo Pessoa descreve em detalhes outras situações de achaques oriundos de dois importantes quadros do governo da presidente Dilma Rousseff. Ele contou que, no ano passado, o então ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, recebeu 1 milhão de reais apenas para não criar obstáculos à UTC na obra de Angra 3. O mesmo procedimento foi adotado com Sergio Machado, então presidente da Transpetro, que recebeu 1 milhão de reais para manter-se sensível aos pleitos da empresa na Petrobras. A lista de aproveitadores é extensa.

As valiosas informações do TCU
Pagar por informações privilegiadas e influência em órgãos estratégicos era um dos estratagemas do empreiteiro para evitar "pedras no caminho" da UTC. Filho do atual presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Aroldo Cedraz, o advogado Tiago Cedraz foi pago para atuar nessa área. "Tiago foi contratado para buscar, de forma antecipada, informações no TCU sobre questões e temas em debate que interessassem à empresa", explicou Ricardo Pessoa. Ele contou que, graças ao prestígio do pai no TCU, Tiago transitava pelos gabinetes do tribunal com rara desenvoltura. Tinha condições, portanto, de antecipar resultados de processos e até sensibilizar colegas do pai sobre os interesses da UTC. Por um serviço tão especial, Tiago Cedraz foi muito bem remunerado, como mostra a relação de pagamentos entregue por Pessoa aos investigadores. Na tabela "Tiago — BSB" estão listadas nada menos do que 25 operações que, somadas, totalizam 2,2 milhões de reais. Só pelo lobby no TCU em defesa da UTC nos contratos de Angra 3, por exemplo, Tiago recebeu um prêmio de 1 milhão de reais em espécie. A bolada foi paga em 23 de janeiro de 2014 — uma parte entregue em Brasília e a outra retirada diretamente na sede da empresa, segundo Ricardo Pessoa. Sem nenhum contrato formal, Tiago Cedraz recebia mensalmente 50000 reais em dinheiro para obter "informações de inteligência" no TCU. O advogado confirma que trabalhou para a UTC, mas nega que tenha atuado na corte presidida pelo pai.

A conta "particular" do tesoureiro de Lula
O tesoureiro José de Filippi Júnior não usava seus talentos apenas para conseguir dinheiro para a campanha do ex-presidente Lula. Ele também se valia dos empreiteiros para faturar algum para si. Ricardo Pessoa entregou aos investigadores uma planilha de pagamentos realizados a Filippi Júnior. Os valores e as datas dos repasses estão registrados no arquivo "Filipi Diadema". Segundo o empreiteiro, além de 150 000 reais "por fora" dados a sua campanha para deputado federal em 2010, o tesoureiro recebeu 750 000 reais entre 2010 e 2014. Para não chamar atenção, ele mandava um taxista buscar os pacotes de dinheiro na sede da UTC. Os pagamentos eram previamente acertados por e-mail. Pessoa explicou por que a UTC deu dinheiro a Filippi: "José de Filippi Júnior era a conexão direta com João Vaccari, pessoa com alta influência na Petrobras e também junto aos candidatos à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff".

Eles fizeram a casa cair

• O que disseram em comum os dezoito delatores da Lava-Jato e por que é falso o argumento de que eles só decidiram revelar o que sabem para sair da prisão

Mariana Barros e Pieter Zalis - Veja

De cada seis réus da Lava-Jato, um já decidiu abrir a boca. Desde o início das investigações, há dezesseis meses, a operação que investiga os desvios de verba da Petrobras conseguiu fazer com que a Justiça aceitasse denúncias contra 114 acusados, entre empreiteiros, lobistas, doleiros, ex-dirigentes da Petrobras e políticos. Destes, dezoito se transformaram em delatores premiados — ou seja, em acordos assinados com o Ministério Público e homologados pela Justiça, prometeram contar tudo o que sabem em troca de redução da pena pelos crimes que cometeram. O mais recente convertido é o lobista Milton Pascowitch, que atuava em favor da Engevix, uma das empreiteiras favorecidas por obras da Petrobras em troca de propina, conforme apontam as investigações. Pascowitch admitiu ter pago 1,5 milhão de reais ao ex-ministro José Dirceu, entre consultorias e "pixulecos" destinados a garantir a presença da empreiteira no esquema do petrolão.

VEJA cruzou as informações dadas até agora pelos dezoito delatores da Lava-Jato para identificar os pontos coincidentes. Aqui, os principais:

• O esquema do petrolão começou no governo Lula: é o que disseram os delatores Augusto Mendonça, Eduardo Leite, Pedro Barusco, Paulo Roberto Costa, Alberto Youssef e Ricardo Pessoa.

• O esquema continuou no governo Dilma: a afirmação aparece nos depoimentos de Pedro Barusco, Paulo Roberto Costa, Ricardo Pessoa, Alberto Youssef e Eduardo Leite.

• As doações legais ao PT, PMDB e PP eram pagamento de propina: a revelação foi feita por Augusto Mendonça, Ricardo Pessoa, Eduardo Leite, Alberto Youssef e Pedro Barusco.

• João Vaccari era o interlocutor do PT para tratar do pagamento dos subornos: confirmaram a informação os delatores Ricardo Pessoa, Augusto Mendonça, Alberto Youssef, Eduardo Leite e Pedro Barusco.

• José Dirceu manteve consultorias de fachada para tomar dinheiro de empreiteiros: é o que disseram Milton Pascowitch e Ricardo Pessoa.

O levantamento mostrou ainda que, dos dezoito réus que decidiram colaborar com as investigações, apenas seis estavam presos e foram soltos depois de assinar o acordo de delação. Esse resultado contraria o argumento de advogados que acusam os investigadores da Lava-Jato de estar usando as prisões preventivas para pressionar os réus a aderir à delação. E reforça a ideia de que o que move os delatores é "muito mais o medo do processo e da prisão no futuro do que o encarceramento preventivo", como disse o procurador Carlos Fernando Lima, integrante da Lava-Jato.

Nos Estados Unidos, o uso da delação premiada foi fundamental para chegar aos culpados em casos como as fraudes financeiras do gigante de tecnologia Enron e, mais recentemente, para prender acusados no esquema de corrupção da Fifa. No Brasil, a delação só ganhou impulso em 2013, quando alterações legais aumentaram as garantias de concessão de benefícios aos colaboradores, estimulando as adesões. A lei que alterou a regra original foi assinada por Dilma Rousseff. Na semana passada, a presidente, que chegou a elogiar publicamente a legitimidade e a eficiência do instrumento, declarou que não respeita delatores. Infelizmente, para a presidente, a recíproca também é verdadeira — como deixou claro o delator Ricardo Pessoa ao revelar que a contribuição "voluntária" e "legal" que deu à campanha de Dilma em 2014 foi, na verdade, fruto de achaque.

Nada vai... Pará-los

• O avanço irrefreável da Lava Jato desloca o centro de poder de Brasília para Curitiba, de onde o juiz Sergio Moro lidera uma revolução no combate à corrupção no Brasil.

Thiago Brozatto, Leandro Loyola e Diego Escostoguy - Época

Nas noites dos últimos dias, o juiz federal Sérgio Fernando Moro, da 13a Vara Federal de Curitiba, após botar os filhos para dormir e checar os últimos e-mails do dia, dedicava-se, quando ainda tinha forças, à leitura de uma coletânea de artigos sobre os 20 anos da Operação Mãos Limpas. A megainvestigação logrou o que parecia impossível: expurgar do Estado italiano organizações mafiosas centenárias. Os acertos - e os erros - dos juízes italianos ajudavam Moro a refletir sobre as melhores estratégias para conduzir a Operação Lava Jato. Como fechar os casos ainda em aberto e, ademais, como avançar naqueles que se avizinham rapidamente? Nas mesmas noites, não muito longe da casa do juiz, mas no frio da carceragem da Polícia Federal em Curitiba, para onde fora transferido, dividindo cela com o doleiro Alberto Youssef, Nestor Cerveró, o ex-diretor internacional da Petrobras condenado a cinco anos de prisão por Moro, tinha ataques de pânico. Pressionado pela família, especialmente pelo filho, Cerveró cedeu. Resolveu coijtar o que sabe, como apostavam Moro e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato. E Cerveró sabe muito.

Cerveró chamou os procuradores e, à revelia de seu advogado, começou a negociar os termos para se tornar o 20" delator da Lava Jato. Segundo políticos, empresários, investigadores e lobistas da Petrobras, somente duas pessoas podem esclarecer, entre outros contratos inexplicáveis na Área Internacional, a infame operação de compra da Refinaria de Pasadena, há quase dez anos. Nela, a Petrobras perdeu cerca de US$ 800 milhões. Uma é o operador Fernando Baiano, ligado ao PMDB e que atuava em parceria com Cerveró. Baiano está preso, Ele, porém, não exibe nenhum sinal de que pode vir a talar. A outra pessoa é o próprio Cerveró,

De acordo com essas fontes, ouvidas por ÉPOCA nos últimos anos e, também, nos últimos dias, Cerveró, se falar o que sabe, sem esconder nenhum fato, pode causar um estrago político devastador, ainda mais considerando-se o acúmulo incessante de provas da Lava Jato nas semanas recentes. Tanto Baiano quanto Cerveró confidenciaram - e não agora a essas fontes que a operação de Pasadena além de outras na Diretoria Internacional beneficiaram o presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, parlamentares do PT e até o empresário José Carlos Bumlai, um dos melhores amigos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em miúdos: beneficiaram todos aqueles que o indicaram ao cargo, como já se comprovou que era a prática nas demais diretorias. Bumlai, que freqüentava a intimidade do petista, falava em nome de Lula durante o segundo mandato do petista. E tinha relações estreitas com o grupo Schain, que obteve contratos na Petrobras com a ajuda de Cerveró. Todos os citados sempre negaram qualquer relação imprópria com Cerveró.

Edson Ribeiro, o advogado de Cerveró, chegou a Curitiba na quinta-feira da semana passada, disposto a fazer de tudo para demovê-lo da delação, O advogado disse a Cerveró ter certeza de que os executivos da Odebrecht, também presos na Lava Jato, conseguirão decisões judiciai^ VJ favoráveis no recesso do Judiciário, daqui a alguns dias, seja no Superior Tribunal de Justiça, seja 110 Supremo Tribunal Federal. Se gente como Marcelo Odebrecht sair da cadeia, raciocina o advogado, outros sairão em seguida, como Cerveró. Até a noite da sexta-feira, os argumentos do advogado não foram suficientes para convencer Cerveró. Ele continua negociando os termos da delação com os procuradores. E demonstra uma mágoa especial pela presidente Dilma Rousseff. Sente-se abandonado por ela - que, como presidente do Conselho de Administração da Petrobras, aprovou a compra da refinaria de Pasadena. Em suas defesas entregues às autoridades, Cerveró alega que a responsabilidade pelo investimento em Pasadena é do Conselho de Administração da estatal. Ou seja, de Dilma.

A iminência da delação de Cerveró, decidida nos gabinetes e nas celas de Curitiba, revela como, no Brasil de 2015, o poder sobre os rumos da nação deslocou-se, momentaneamente, para a capital do Paraná. Se levada a cabo, a delação de Cerveró terá impacto em gente do calibre de Lula e Dilma. Por isso, um rastilho silencioso de pólvora - e pânico - acendeu-se até Brasília. Políticos e empresários poderosos ficam à mercê, mais uma vez, como acontece desde outubro, com as delações de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, de fatos sobre os quais eles não têm o menor controle - e, muitas vezes, nem sequer compreendem.

Essa mudança, ainda que temporária, nas regras do jogo, no controle da situação, explica parte das falas e ações destemperadas de políticos experientes, como Lula, ou até aqui cautelosos com o verbo, como Dilma. A combinação de crises pela qual passa o Brasil hoje converge, cotidianamente, para Curitiba. Os rumos das principais decisões políticas neste momento definem-se, mesmo com uma economia malparada e um governo anêmico, pelo que acontece na Operação Lava Jato. A sucessão de provas, de delações, as imagens quase semanais de tesoureiros e executivos sendo presos pela polícia sobrepõem-se a qualquer processo político e econômico em Brasília. Por uma razão simples: as decisões de Curitiba põem em risco a sobrevivência dos principais partidos e políticos do Brasil. O mesmo vale para as principais empreiteiras do país.

Nenhum gabinete, portanto, concentra tanto poder neste momento no Brasil quanto aquele no 2° andar na Avenida Anita Garibaldi, 888. É de lá que despacha Sergio Moro, o cérebro e centro moral da Lava Jato. A Operação, na verdade, envolve dezenas de procuradores da República, delegados e agentes da PF, equipes na Procuradoria-Geral da República, em Brasília, além do ministro do Supremo Teori Zavascki. Todos têm poder para definir, em alguma medida, os rumos das centenas - isso, centenas - de casos de corrupção investigados na Lava Jato. Alguns casos tramitam em Brasília - aqueles que envolvem políticos com foro no Supremo. Mas a maioria fica em Curitiba e de lá não sai. Moro alia virtudes raríssimas para a missão: preparo jurídico, pensamento estratégico, inflexibilidade de princípios, coragem moral e disciplina de trabalho. Entra cedo, sai tarde e prossegue na lida mesmo de casa. Alguns dos procuradores da força-tarefa compartilham, em maior ou menor grau, as mesmas características. Estudaram muito, trabalham sem parar e entendem que estão fazendo história.

Após mais de um ano de Lava Jato, já está claro que esses homens e mulheres - pelo tamanho dos presos, pela força das provas, pelos nomes envolvidos e pelo dinheiro recuperado - estão promovendo uma revolução na luta contra a grande corrupção no Brasil. O método, a estratégia e a disciplina para manter o foco nos alvos certos, como Cerveró ou Marcelo Odebrecht, demonstram que essa revolução, cujo acúmulo intenso de fatos desnorteia até o observador mais atento, irá longe. A partir das delações capitais de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, em outubro do ano passado, surgiu a obtenção de mais provas, como extratos bancários de contas em paraísos fiscais e a confissão dos demais envolvidos. O efeito cascata, irrefreável, parece destinado a parar apenas quando todos os envolvidos no petrolão, esse esquema que envolvia empresas inescrupulosas e políticos corruptos, estejam identificados e devidamente processados. É uma réstia de esperança para um povo que precisa, desesperadamente, acreditar novamente em seu sistema político.

Engana-se, porém, quem pensa que Moro ou os procuradores da Lava Jato tenham ganas de pegar Lula ou Dilma. Na visão deles, e que as provas de fato oferecem (até o momento), Lula e Dilma não eram chefes de uma organização criminosa. Não que ambos não tenham responsabilidade pela sustentação política do petrolão - pelo aval, no mínimo, tácito aos resultados de suas decisões fisiológicas, de distribuição irresponsável de cargos na Petrobras. Mas a decisão de distribuir diretorias da estatal não é crime. O petrolão é, pelo que as evidências apontam até o momento, um esquema horizontal, organizado entre empresários corruptores e funcionários públicos corruptos. Entre as duas partes, havia operadores de partidos políticos e doleiros. Todos ganhavam, especialmente os políticos dos partidos (PT, PMDB e PP, sobretudo) que controlavam os cargos. Não havia chefes. Havia apenas cúmplices na roubalheira.

Há muitas novidades, no entanto, a caminho. Nestor Cerveró, o quase certo 20* delator, trará apenas parte delas. A 164 fase da Lava Jato não tarda. E ela será decidida em Curitiba, para desespero do poder em Brasília.

A perplexidade na república
Na segunda-feira, numa rara noite bastante fria em Brasília, em um centro de convenções afastado de tudo, Lula se reuniu com cerca de 50 parlamentares petistas por mais de três horas. Vinte deles se inscreveram para falar. Depois, Lula também talou. Estava surpreendentemente calmo. Falou um pouco sobre a situação difícil do governo e do PT para, em seguida, assumir a função de animador de auditório, a tentar vender a seus comandados a ideia de que é possível sair do atoleiro no qual o governo e o partido estão graças à crise econômica, à Operação Lava Jato e a diversos erros e ffagilidades. "Não tem o que fazer. O procurador (geral da República, Rodrigo Janot) já disse que vai durar mais uns dois anos", disse Lula aos parlamentares.

O Lula que chegou no dia seguinte â casa do presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, também era só paz e amor. Lá, tomou café da manhã com a cúpula do PMDB, formada por Renan, Eunício Oliveira, Romero Jucá e o ex-presidente José Sarney, além do líder do governo, Delcídio Amaral. De bom humor, Lula disse que "um padre" foi o responsável por vazar seu desabafo sobre o PT e o governo. Ninguém entendeu nada."Parecia o Lula do mensalão: estava humilde", diz um dos participantes - em 2005, acossado pelos estragos do mensalão, Lula se escorou em Sarney e no PMDB, que então adentrou seu governo para não mais sair. Ao contrário dos vários encontros ante-riores com os mesmos personagens, no mesmo lugar, pelo menos dois deles ocorridos neste ano, Lula não falou mal de Dilma, nem mesmo de Mercadante. Retomou a veia conciliadora que ficara para trás, para tentar unir os cacos tia relação do PMDB com Dilma. "Renan, eu sei que você tem mágoa de coisas que podem ter sido feitas. Mas as instituições precisam se unir. O Brasil não pode ficar assim", disse. Renan, todos sabem, atribui ao governo o fato de ter sido incluído no rol dos investigados pela Operação Lava Jato - na verdade, sua mágoa é pelo feto de Dilma não ter segurado seu afilhado Sérgio Machado na presidência da Transpetro.

Todos na casa de Renan estavam incomodados com a Operação Lava Jato. "Não é possível que as instituições estejam tão fracas, a ponto de o Supremo ter uma decisão alterada por um juiz de primeira instância", disse um dos presentes, em referência ao Juiz Sergio Moro. O ex--presidente José Sarney lembrou o exemplo da Suprema Corte americana na eleição de 2000: o então vice-presidente Al Gore venceu a eleição contra George W. Bush na recontagem dos votos, mas, a partir do momento em que a Suprema Corte decidiu em favor de Bush, Gore e seus aliados nada fizeram. O pessoal da reunião acha que Moro e a Lava Jato precisam de um breque desse tipo do Supremo. Lula foi cobrado por isso, dada sua influência de ter nomeado ministros do Supremo. Mas até ele se mostrou surpreso — deu a entender que não espera mais deter a Lava Jato. "O José Rainha (líder de uma parte do Movimento Sem-Terra) foi condenado a 31 anos e não vai para a cadeia", disse Lula. "Como pode os caras que nem foram condenados estarem presos?" Os "caras" que preocupam Lula são os empreiteiros. Em especial, Leo Pinheiro, da OAS, já solto, e Marcelo Odebrecht, ainda na cadeia, seus mais próximos parceiros. Há anos, quem importa no poder e na economia no Brasil sabe que Lula trabalhava para as empreiteiras, em especial para a Odebrecht. Como ÉPOCA demonstrou há um mês, Lula fez lobby pelas empreiteiras em países da América Central e da África, para que obtivessem obras em boa parte financiadas com recursos do BNDES. As mesmas empreiteiras que, hoje, estão no chão devido ao escândalo que sangrou bilhões da Petrobras e distribuiu para o PT, o PP e o PMDB. No momento, Lula está fragilizado. A Lava Jato prendeu seus amigos empreiteiros por causa desse esquema, aqueles amigos que podem fazer revelações incômodas. O executivo Leo Pinheiro não é uma preocupação, mas Marcelo Odebrecht é considerado mais instável. Para piorar, nos últimos meses Lula percebeu que Dilma não se esforça para evitar que os efeitos da Lava Jato atinjam a ele e a seus oito anos de governo. Lula precisa se salvar. A saída é tentar reagrupar o PT a seu redor-exatamente o oposto do que havia feito no desabafo no encontro com os religiosos.

Com água nos calcanhares, Lula enxerga em Dirceu, este com água no nariz, um desfecho possível. Ao longo da semana, o nome do ex-ministro José Dirceu liderava a bolsa de apostas dos novos presos da Lava Jato. O falatório foi decorrente de duas delações que deixaram o petista numa sinuca: a de Ricardo Pessoa, da UTC, e a de Milton Pascowitch, operador da Engevix. Ambos relataram que os pagamentos para Dirceu não tinham uma contraprestação de serviços - e que ele recebeu dinheiro inclusive quando estava preso. A iminente prisão do ex-ministro mensaleiro foi tão grande que seu advogado, Roberto Podval, entrou com um pedido de habeas corpus preventivo, com o objetivo de evitar que Dirceu pudesse voltar ao regime fechado. O pedido foi negado. Além disso, a defesa do ex-ministro começou a se mobilizar para levantar provas no Peru de que suas consultorias de fato existiram - e não foram de fachadas. Segundo pessoas próximas de Dirceu, boa parte do dinheiro recebido por meio de sua empresa JD Assessoria e Consultoria era usada para fretar jatinhos particulares para fazer viagens pelo Brasil, já que ele evitava pegar voos comerciais, pois tem receio de ser vaiado, e para pagar hospedagens em hotéis luxuosos onde costumava passar alguns dias ao lado de sua namorada.

Nesse cenário, Lula percebeu que o discurso de raiva contra seu PT e o governo de Dilma causou-lhe um efeito ruim. Boa parte dos petistas não abaixou a cabeça em obediência, como sempre fazia. No momento em que o governo vai mal, Lula sabe que pode carregar a culpa pelo fracasso do governo Dilma. Para Dilma, que não deve ser candidata a mais nada, o fracasso pode ser apenas uma derrota pessoal Mas, para Lula, pode matar seu projeto de um novo período na Presidência. Ele tem muito mais a perder do que ela. Com seus amigos empreiteiros na cadeia, paira sobre Lula o medo de ver uma mera menção a seu nome em algum depoimento. Lula precisa de apoio. Reatar com o PT para se salvar é uma parte da saída. A outra parte começa com a conversa com o PMDB. Os líderes do PMDB são saudosos de Lula. Sempre lembram que ele lhes prometeu, em dois encontros em 2014, um deles no hotel Blue Tree, em Brasília, e outro no hotel Meliá, em São Paulo, que seria candidato a presidente no lugar de Dilma. Depois voltou atrás.

A intenção de Lula é combater os efeitos negativos da Lava Jato em sua imagem, na do governo e do PT com o que ele sabe fazer melhor: discursos e propaganda. Não por acaso, Lula esteve com o marqueteiro-mor do PT, João Santana, antes da reunião com os parlamentares, em Brasília. À noite, Lula estabeleceu que os petistas devem aproveitar programas do governo para fazer "agendas positivas1". Entre os programas estão o Plano Nacional de Educação, o Plano Safra, o plano de concessões, o plano de assentar famílias da reforma agrária. Lula quer que os parlamentares organizem eventos em seus Estados para discutir principalmente o Plano Nacional de Educação e a renovação do PT, pretextos para ele viajar pelo país e fazer discurso, uma pré-campanha eleitoral Lula também quer que os parlamentares petistas partam para o "enfrentamento" com a oposição. "Com a mesma agressividade que a oposição ataca o governo, afirma o líder do PT na Câmara, José Guimarães. Lula está preocupado com a possibilidade de uma derrota fagorosa do PT na eleição municipal de 2016. É preciso começar a trabalhar para limpar um pouco a barra do PT para, pelo menos, reduzir o prejuízo que hoje os petistas acreditam que será grande. Está muito longe, mas é óbvio que Lula já pensa também em 2018. Apenas quem não entendeu o poder de Curitiba pode pensar em 2018. No gabinete do juiz Moro, só se pensa em 2015. ?