segunda-feira, 29 de junho de 2020

Política ambiental multiplica os riscos para o agronegócio – Editorial | O Globo

Grupo que representa US$ 4 trilhões em ativos advertiu governo sobre incertezas para investir no país

Governo e Congresso dão sinais de que pretendem se concentrar, a partir de agosto, no necessário equilíbrio fiscal, com reforma tributária, renda mínima e privatizações. É inquestionável a relevância dessa agenda. Porém, será incompleta e à margem do redesenho do capitalismo no mundo pós-pandemia, se no topo não estiver a mudança de rumo na política ambiental.

Deixou de ser opção de governança, porque se acumulam ameaças ao país, cujas fragilidades econômicas já estão expostas. Tem razão o presidente do grupo Itaú Unibanco, Candido Bracher, que alertou: “As consequências do perigo ambiental até podem vir de uma maneira mais lenta do que o da Covid-19, mas são mais duradouras e difíceis de reverter. Precisamos nos mover contra isso.”

Um grupo de 29 instituições (US$ 4 trilhões em ativos) de Estados Unidos, Japão, França, Reino Unido, Noruega, Suécia, Dinamarca e Holanda advertiu o governo, por escrito, a respeito da “incerteza generalizada sobre as condições de se investir ou fornecer serviços” no país. Repetiu o aviso já dado por 230 fundos globais.

MEC sem partido – Editorial | Folha de S. Paulo

Novo ministro, com currículo em xeque, acertará se de fato adotar gestão técnica

Dado o ambiente de conflagração instituído pelo governo Jair Bolsonaro na gestão do ensino no país, as palavras iniciais do novo ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, representaram um alento.

Ainda que o escolhido já esteja às voltas com questionamentos a suas credenciais acadêmicas, importa mais, a esta altura, a sinalização de um MEC mais propenso ao diálogo com o setor —e menos a escaramuças ideológicas pueris ao gosto da militância bolsonarista.

Em outro contexto, soariam como meras platitudes as declarações de Decotelli em favor de trabalho, projetos e respeito ao marco regulatório da educação. Depois da trágica passagem de Abraham Weintraub pela pasta, porém, mostras de temperança e disposição produtiva são boas-novas.

É prematuro, decerto, apostar numa guinada rumo à racionalidade. Parece mais prudente interpretar a nomeação à luz de uma espécie de recuo tático ainda incipiente de Bolsonaro, que tem feito movimentos no sentido de distensionar a cena política e institucional.

Decotelli, informa-se em Brasília, contou com o aval da ala militar do governo, tem perfil conciliador e não desagradaria aos políticos do centrão nem aos discípulos do ideólogo Olavo de Carvalho que atravancam o ministério.

BC recria o direcionamento de crédito para empresas – Editorial | Valor Econômico

O direcionamento de crédito é uma solução tolerável, mas deve ser transitória

O Banco Central se afastou dos dogmas liberais no mais recente pacote de crédito, anunciado na semana passada, ao estabelecer uma punição para as instituições financeiras que não sacarem recursos dos depósitos compulsórios para emprestarem para as micro, pequenas e médias empresas. É o tipo de ação pragmática compreensível numa crise sem precedentes como a atual. Mas será importante não perder a direção de longo prazo de reduzir gradualmente o sistema de crédito direcionado no país.

Depois de forte aumento em março, o crédito começou a perder fôlego a partir de abril. Segundo dados dessazonalizados do Banco Central, as concessões de empréstimos e financiamentos a pessoas jurídicas tiveram uma expansão de 29% em março, seguida de quedas de 22% em abril e de 6% em maio.

O crédito foi distribuído de forma desigual. As grandes empresas, que antes vinham se financiando no mercado de capitais e tinham linhas de crédito abertas com os bancos, saíram na frente e absorveram boa parte dos recursos disponíveis. As operações com empresas de menor porte também aumentaram, mas muito abaixo da demanda, gerando a sensação generalizada de falta de crédito para o segmento.

Ruy Castro* - O último músico de Carmen

- Folha de S. Paulo

Com a morte de Russinho, ex-Bando da Lua, uma grande história chega ao fim

Agora, sim, é o fim da linda história que começou em Lisboa, em 1909, quando a pequena Maria do Carmo, dez meses, embarcou para o Rio com sua família, tornou-se Carmen Miranda aos 20 anos, em 1929, e zarpou para a glória na América aos 30, em 1939. Morreu Russinho, seu último músico ainda vivo —o último a nos poder contar como Carmen entrava em cena, suava a baiana e hipnotizava a plateia com aqueles olhos verdes.

Russinho era José Soares, carioca, 92 anos e morador havia quase 70 da Baja Califórnia, no México. Integrou o grupo que tocou com Carmen nos EUA a partir de 1949, o segundo Bando da Lua —o Bando original, que partira com Carmen para Nova York, dissolvera-se em 1943. Russinho era o arranjador vocal do conjunto, com a tarimba que ganhara no Rio ao fazer parte, muito jovem, dos Namorados da Lua, de Lucio Alves, e dos Anjos do Inferno, de Leo Villar.

Era também o pandeiro do grupo, como se vê em “Romance Carioca”, musical de Carmen na Metro em 1950 , em que ela dança com o turbante de sombrinhas e Russinho, vestido de palhaço, abre o número no alto do cenário. Era o músico favorito de Carmen, mais do que Aloysio de Oliveira, seu ex-namorado e que ela relegara a funções profissionais. Só o doce Russinho poderia ter reagido com um soco à arrogância de David Sebastian, marido americano de Carmen, e, em vez de ser demitido, ouvir dela: “Você tem uma direita, hein, Russinho?”.

Música | Marisa Monte - Feitio de Oração

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

domingo, 28 de junho de 2020

Cristovam Buarque* - Renda inclusiva

- O Globo

Renda mínima merece apoio mas não tem consequência emancipadora da pobreza real

A crise social e econômica pela Covid-19 criou unanimidade na defesa da Renda Básica da Cidadania Universal. Este apoio à generosidade de uma renda para os pobres é natural, mas é incorreto passar a ideia de que ela promove inclusão social. Deve-se apoiar a ideia da renda mínima, alertando para o fato de que se trata de um gesto sem consequência emancipadora da pobreza real. Uma ferramenta positiva para reduzir a penúria, sem superar a realidade da pobreza.

Quando a ideia da Bolsa Escola foi divulgada, em 1987, no livro “A revolução nas prioridades”, seu nome era Renda Mínima Vinculada à Educação. Reconhecia o papel inspirador de Eduardo Suplicy, mas explicitava a diferença estratégica com a Renda Mínima. A adoção posterior do nome Bolsa Escola teve como propósito deixar claro que no lugar da renda era a educação que faria a inclusão, a bolsa era um salário à mãe para que seus filhos não faltassem às aulas.

A Renda Mínima parte do conceito de que a pobreza pode ser atendida pelo aporte de dinheiro à família para ela comprar o que precisa no mercado. Distribui uma pequena renda, sem distribuir patrimônio. A Renda Vinculada parte do conceito de que a pobreza decorre da falta de acesso a uma cesta essencial, composta por, no mínimo: comida; endereço com água potável, coleta de lixo e esgoto; educação de base com qualidade; atendimento ambulatorial e hospitalar; transporte público.

Vera Magalhães - Sapo na festa do céu

- O Estado de S.Paulo

Enquanto esquerda discute quem pode integrar frente, Bolsonaro lhe rouba a agenda

A discussão em torno da formação de uma frente, que se pretendia “ampla”, em defesa da democracia e dos direitos e em reação às investidas de Jair Bolsonaro contra esses dois pilares empacou em critérios tão adultos e democráticos como birra, picuinha, ciúme, ressentimento e cálculo eleitoral para 2022.

Enquanto entidades, políticos e partidos do espectro que vai da centro-direita à esquerda discutem quem pode integrar a frente, tirando dela qualquer amplitude, Jair Bolsonaro vai, na surdina, lhes roubando a principal agenda: a discussão da renda básica universal.

Mais esse erro crasso dos que se opõem a Bolsonaro me remeteu à fábula da festa no céu. Poderiam participar todos os animais voadores. Mas o sapo deu um jeito de burlar as restrições e entrar no céu escondido na viola do urubu.

O sapo é Bolsonaro. Assiste subitamente calado aos desdobramentos do caso Fabrício Queiroz, sabendo que pode se complicar feio por aí, enquanto vai, por meio do auxílio emergencial, entrando no baile da esquerda, que se perde na distração de discutir quem pode ou não fazer parte da tal frente.

Sergio Fausto* - Trump e Bolsonaro, não há mal que sempre dure

- O Estado de S.Paulo

A maré montante de líderes direitistas de índole antidemocrática parece retroceder

Após 155 anos da aprovação da emenda constitucional que pôs fim à escravidão e 56 anos depois da entrada em vigor do Civil Rights Act, que tornou inconstitucional a segregação racial e quaisquer outras formas de discriminação nos Estados Unidos, milhões de norte-americanos foram às ruas para protestar contra a sistemática prática policial de violência contra os cidadãos negros daquele país.

“The arch of History is long, but it bends towards justice”, dizia Martin Luther King. O longo arco da História americana curvou-se em direção à justiça sempre que negros e brancos se juntaram para fazer valer a mais importante passagem do documento que em 1776 fundou a nação. “Todos os homens são criados iguais e com direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, se lê na Declaração de Independência. Em dois séculos e meio, a História americana alternou períodos de conformismo com momentos em que uma maioria social e política se formou para encurtar a distância entre o ideal proclamado e a realidade vivida. Vivemos uma dessas conjunturas críticas.

O assassinato de George Floyd por um policial da cidade de Minneapolis pode vir a ser o gatilho de um realinhamento de forças sociais e políticas de longa duração nos Estados Unidos, com efeitos para além das fronteiras do país. As manifestações que se seguiram não apenas reduzem ainda mais as chances de reeleição de Donald Trump, já abaladas pela avaliação negativa do seu desempenho diante da pandemia, como também dão impulso a tendências que podem levar a uma derrota histórica do Partido Republicano em novembro deste ano.

O partido de Abraham Lincoln foi colonizado ao longo das últimas décadas pelo fundamentalismo religioso, pela xenofobia e pelo racismo (não dito, mas praticado, como transparece nas diversas medidas aprovadas em Estados dominados pelo partido para dificultar o exercício do voto por negros e latinos). O Grand Old Party, quem diria, terminou sequestrado por um político sem ideais ou escrúpulos, como Donald Trump.

Merval Pereira - Centenário de Castelinho

- O Globo

Frio, pragmático, Castelinho sabia lidar com as autoridades de Brasília sem perder de vista sua condição de repórter

Esta semana comemora-se o centenário de nascimento de Carlos Castello Branco, o maior jornalista político de sua geração, que marcou com suas colunas a história recente da política brasileira, especialmente nos momentos mais difíceis da ditadura militar, quando foi preso e censurado devido a seu trabalho em favor da redemocratização, no que escrevia e também na ação nos bastidores.

Eleito para a Academia Brasileira de Letras, foi recebido por outro acadêmico, o ex-presidente José Sarney, seu amigo da vida inteira, que classificou Castelinho, como era carinhosamente chamado, como um político que usou o jornalismo como sua tribuna.

Conheci Castelinho quando morei em Brasília, a partir de 1974, e tive com ele um convívio agradável e, sobretudo, proveitoso, pois gostava de contar histórias dos bastidores políticos, atuais e antigas, de quando a Capital era no Rio de Janeiro.

A Academia Brasileira de Letras está publicando em seu site depoimentos de vários acadêmicos sobre sua vida e obra. Eu leio texto que redigi sobre ele para o livro “Brasileiros”, da Nova Fronteira, recém lançado nesses tempos de pandemia para celebrar brasileiros que se destacaram em suas atividades, e nos dão motivos de orgulho. Seguem trechos:

Eliane Catanhêde – ‘Caráter inusitado’

- O Estado de S.Paulo

PGR em chamas, MP, PF, Receita e ex-Coaf são peças do quebra-cabeças lançado por Moro

A Procuradoria-Geral da República está em chamas e a força-tarefa da Lava Jato reclama do “caráter inusitado” da ação da subprocuradora geral Lindôra Araújo, braço direito de Augusto Aras e ligada à família Bolsonaro, que desembarcou em Curitiba exigindo arquivos e dados sigilosos das investigações e criando a impressão de uma devassa na Lava Jato que pode atingir até o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Esse, porém, é apenas mais um fato “inusitado” num país com quase 60 mil mortos de covid-19.

A audácia de Lindôra corresponde à sucessão de mentiras ridículas do advogado Frederick Wassef, capaz de inventar até “forças ocultas” que queriam matar Fabrício Queiroz para atingir o presidente Jair Bolsonaro. E lembra o pedido inusual da delegada da PF Denisse Ribeiro para o Supremo suspender as investigações sobre bolsonaristas golpistas e, assim, evitar “risco desnecessário para a estabilidade das instituições”. Tudo muito inusitado.

O mais grave, porém, é que a ida da procuradora a Curitiba ocorre quando o presidente Jair Bolsonaro é investigado pelo Supremo justamente pela acusação, feita por Moro, de intervir politicamente na Polícia Federal. E tudo num contexto maior de controle dos órgãos de investigação do País, não só para proteger filhos e amigos, como admite o presidente, mas também para perseguir adversários, como suspeitam governadores, ministros do STF, cúpula do Congresso e o próprio Moro. Ou seja, os alvos.

Luiz Carlos Azedo - Aras versus Moro

-Nas entrelinhas | Correio Braziliense / Estado de Minas

“A base de dados da força-tarefa de Curitiba guarda informações obtidas por escutas telefônicas, apreensão de documentos, celulares e computadores”

Tudo indica que o procurador-geral da República, Augusto Aras, decidiu mesmo domar a Operação Lava-Jato, neutralizando completamente o que ainda resta de influência junto ao Ministério Público do ex-ministro da Justiça Sergio Moro — idealizador e líder da operação, quando juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. Nos bastidores, Aras vem repetindo a interlocutores que sua principal missão à frente da Procuradoria-Geral da República (PGR) é “despolitizar” o órgão. Na avaliação dele, a PGR vinha sendo palco de disputas políticas entre grupos internos. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o cargo, fora da lista tríplice eleita pelos procuradores, parece ter sido esse o grande pacto firmado entre ambos.

O problema é que a Lava-Jato é uma linha de força do processo político brasileiro, uma espécie de fronteira entre a ética e a política, que deveriam andar de mãos dadas, mas não é bem assim que acontece. Mesmo que os procuradores da Lava-Jato percam o protagonismo nas investigações, permanecerão tendo enorme influência no comportamento da opinião pública e no processo eleitoral. Quando nada porque já promoveram um notável expurgo na vida política brasileira, ao conseguir a aprovação da Lei da Ficha Limpa e denunciar boa parte da atual elite política do país. É ilusão imaginar que Moro e seus aliados serão carta fora do baralho nas eleições de 2022. Eles já têm até um partido pronto para oferecer uma alternativa: o Podemos, do senador Álvaro Dias (PR).

Por isso mesmo, é bom prestar atenção na queda de braço entre a subprocuradora da República Lindora Maria de Araújo, atual responsável pela condução da Lava-Jato na PGR, e a força-tarefa de Curitiba. Na sexta-feira, os procuradores Hebert Reis Mesquita, Victor Riccely Lins Santos e Luana Macedo Vargas pediram exoneração das funções, permanecendo no grupo que trabalha com Lindora apenas Alessandro José Fernandes de Oliveira e Leonardo Sampaio de Almeida. Antes, a procuradora Maria Clara Noleto, também por divergências, já havia chutado o balde. A crise foi provocada por uma visita de Lindora Araujo à força-tarefa de Curitiba, na quarta e na quinta-feiras, que gerou, inclusive, uma reclamação desses procuradores junto à Corregedoria Nacional do Ministério Público Federal, “como medida de cautela” e “para prevenir responsabilidades”.

Míriam Leitão - No futuro, não acreditaremos

- O Globo

Parece ficção: o país enfrenta um vírus fatal enquanto o governo se preocupa com armas e pontos na carteira de motorista

Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o Brasil contava 52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era proteger infratores do trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do inacreditável. Na última terça-feira, o governo mobilizou sua base parlamentar, agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos olhos: os motoristas terão mais chance de cometer infrações de trânsito, antes de chegar ao ponto de perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de Vigilância Sanitária, usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e dura: que a curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.

Naquela mesma quarta-feira, em que morreram 1.103 brasileiros pela covid-19, o presidente e seu filho e divulgador, conhecido pela alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo diretor-geral Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com várias armas, o que pode ser conferido no vídeo postado nesse jornal pela competente Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado do contexto do país naquele dia, se perguntará: que presidente é este? Teremos dificuldade de explicar.

No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições democráticas, foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A instituição passou os últimos anos atualizando seus valores para fugir exatamente do que o ministro leva na bagagem das suas convicções.

Bernardo Mello Franco - O vírus da cartolagem

- O Globo

A pandemia adiou a Olimpíada de Tóquio e cancelou o torneio de Wimbledon, mas os cartolas do futebol não podem esperar um pouco mais pelo retorno do carioca

Entre 40 milhões de rubro-negros, só um podia dizer que conquistou a América duas vezes. Jorge Luiz Domingos integrou a comissão técnica do Flamengo nas Libertadores de 1981 e 2019. Foi massagista das duas gerações mais vitoriosas do clube, onde trabalhou por quase quatro décadas.

Jorginho morreu no início de maio, vítima da Covid. A tragédia comoveu os atletas, mas não interrompeu a cruzada dos cartolas contra a quarentena. Duas semanas depois, o Flamengo atropelou decretos do estado e da prefeitura e retomou a rotina no Ninho do Urubu. No dia do treino clandestino, o presidente Rodolfo Landim voou para Brasília e almoçou com Jair Bolsonaro.

O repasto uniu dois negacionistas que ignoram ou fingem ignorar a gravidade da pandemia. Eleitos no fim de 2018, Landim e Bolsonaro forjaram uma aliança de interesses. A tabelinha colou a imagem do Flamengo, que já teve nove jogadores infectados, à extrema direita no poder. Uma mistura entre bola e política que ofende torcedores e desonra as tradições do clube.

Dorrit Harazim - Sobras de guerra

- O Globo

Mortandade tão vasta e tão abstrata dificulta o luto individual, exceto quando ele nos atinge de perto

Não é de hoje que números redondos são ferramentas infalíveis para atrair leitores, concentrar homenagens, turbinar emoções. Não fosse a pandemia que imobiliza este 2020 fantasmagórico, o 250º aniversário do nascimento de Beethoven e os festejos pelos 75 anos do final da Segunda Guerra na Europa seriam mais tonitruantes. Basta comparar com o passado recente: em 2019 o mundo se entregou a comemorações voluptuosas pelos 50 anos de Woodstock, os 30 anos da Queda do Muro de Berlim, e tantos outros marcos históricos.

Em tempos de coronavírus, números redondos também são ferramenta de primeira linha, só que às avessas — eles nos arrancam do torpor de um amanhã incerto. Sabidamente o medo que mais imobiliza o ser humano é o medo de ver o que está à sua frente. Isso inclui o presidente da República. Para Jair Bolsonaro, cada novo número-choque da pandemia no Brasil tem impacto dobrado, pois atesta sua falha histórica como governante da nação em tempos turvos.

Na linha desse tempo pandêmico o mundo mal teve tempo de atravessar o choque do primeiro milhão de infectados. No momento rumamos para 10 milhões mundo afora, e logo mais a régua terá de ser levantada. Na manhã da última sexta-feira dados apontavam para 55.304 mortos no Brasil. Portanto nova barreira redonda derrubada, com a anterior (50 mil) já esquecida.

Como nossas mentes dificilmente registram o número por inteiro, é mais provável que em conversas de quarentenados tenhamos arredondado para 55 mil. Em textos jornalísticos ou legendas noticiosas, o número completo acaba encurtado para “mais de 55 mil”. Ou, “55,3 mil”. Acabam ficando de fora do nosso imaginário as chamadas “sobras da guerra” — no caso, os 4 últimos dessas 55.304 vidas perdidas para a Covid. É natural: quem pensa nos centavos diante de um cheque de 10 mil reais, certo?

Elio Gaspari - Decotelli poderá explicar o edital do FNDE

- Folha de S. Paulo / O Globo

Empossado, ministro poderá acabar com o silêncio oficial, desvendando o mistério

Como ministro da Educação o doutor (?) Carlos Alberto Decotelli poderá contar como foi concebido o edital 13/2019, que licitava a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino, coisa de R$ 3 bilhões. Afinal, ele presidia o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação no dia 21 de agosto de 2019, quando o edital foi publicado.

Tratava-se de um imenso e silencioso jabuti. O próprio FNDE havia anunciado no dia 8 de agosto que Decotelli deixaria o cargo. Ele saiu semanas depois, e o novo presidente suspendeu o edital.

A Controladoria-Geral da União havia estudado o jabuti e descobriu o seguinte:

Armava-se uma despesa de R$ 3 bilhões sem que o Ministério da Economia tivesse sido ouvido.

Trezentos e cinquenta e cinco colégios receberiam mais de um laptop por aluno. A Escola Municipal Laura de Queiroz, de Minas Gerais, receberia 30.030 laptops para seus 255 estudantes. Na Chiquita Mendes, de Santa Bárbara do Tugúrio (MG), cada aluno ganharia cinco laptops.

Duas das empresas que encaminharam orçamentos ao FNDE mandaram cartas com o mesmo erro de português: “Sem mais, para o momento, colocamo-nos à disposição para quaisquer esclarecimentos que se façam necessária”. Noutra coincidência, as duas empresas pertenciam à mesma família.

A CGU interpelou o FNDE e recebeu respostas pífias, até que em novembro ela emitiu um relatório de 66 páginas. Como o jabuti andava sem fazer barulho, o caso ficou no escurinho da burocracia e o edital foi cancelado. Em dezembro o repórter Aguirre Talento expôs o caso. Seria natural que viesse alguma explicação do governo. Passaram-se sete meses e nada. Abraham Weintraub, aquele que propôs botar os “vagabundos” do Supremo Tribunal na cadeia, trocou mais três vezes o presidente do FNDE, mas nunca tocou no assunto.

Janio de Freitas - Um mundo de coisas acintosas

- Folha de S. Paulo

A recente decisão da Justiça sobre Flávio Bolsonaro merece uma investigação

A mais recente decisão da Justiça sobre Flávio Bolsonaro, favorecendo-o contra a investigação que mais abala seu pai, merece ela mesma uma investigação. Nada acontece por acaso nesse inquérito sobre anos e anos de apropriação de salários no gabinete de Flávio quando deputado estadual.

Em torno desse tema, emergem interações com milícias, exóticos negócios imobiliários e outros indícios. Todos do tipo que, nas ocorrências de combinação entre submundo e política, em geral são causa de ameaças, chantagens e subornos.

Os desembargadores Mônica Oliveira e Paulo Rangel têm comprovado conhecimento do acórdão do Supremo contra o qual votaram para transferir o inquérito, do juiz de primeira instância ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça-RJ. Como desejado por Flávio. E com possível anulação de tudo até agora apurado por decisões do juiz Flávio Itabaiana, como movimentações financeiras anormais e a reveladora prisão de Fabrício Queiroz.

Em tentativa anterior da defesa de Flávio, Mônica Oliveira negou a transferência do caso. Como fixado pelo Supremo para o investigado que deixou a função privilegiada com instância especial. Hoje senador, Flávio não pode ter os privilégios dos deputados estaduais. Paulo Rangel deixou em livro seu apoio à norma contra a qual votou agora. Contradições tão acintosas, em oposição também à relatora Suimei Cavalieri (Flávio foi favorecido por dois votos a um), precisam de mais do que recurso ao Supremo para repor o respeito à norma, lá mesmo decidida e já aplicada.

Hélio Schwartsman - O segredo da democracia

- Folha de S. Paulo

Não faltam teorias românticas, quase religiosas, para justificar esse regime político

Por que a democracia é boa para nós? Não faltam teorias românticas, quase religiosas, para justificar esse regime político, que se consolidou nos países mais avançados a partir do século 20.

Uma delas, de forte apelo popular, diz que a democracia faz sua mágica ao promover escolhas conscientes por parte dos cidadãos. Quanto mais instruída for a população, melhores decisões ela tomará. Outra, mais comum nos meios acadêmicos, sustenta que a democracia funciona porque permite que os governantes sejam recompensados (reeleitos) ou punidos (postos para fora) de acordo com seu desempenho.

É bobagem, e há um bom número de obras de divulgação de que já tratei aqui, como “The Myth of the Rational Voter”, “Democracy for Realists”, “Democracy Despite Itself?” e vários títulos de Adam Przeworski, que desmontam, até com algum humor, essas e outras teorias. Mas, se não é isso, perguntar-se-á o leitor, o que é então.

Ricardo Noblat - Você perdeu, Bolsonaro! Apoio à democracia bate recorde

- Blog do Noblat – Veja

País dividido quanto ao risco de uma nova ditadura
Em dezembro passado, pesquisa nacional do Datafolha conferiu que 62% dos brasileiros apoiavam a democracia e 12% uma ditadura. O apoio à democracia aumentou para 75%, de acordo com nova pesquisa aplicada por telefone junto a 2.016 pessoas nos últimos dias 23 e 24. E o apoio a uma ditadura caiu para 10%.

O que aconteceu de relevante no país entre dezembro e agora para que o apoio à democracia tenha batido seu recorde desde quando o Datafolha começou a medi-lo em 1989? Naquele ano, pela primeira vez, os brasileiros foram às urnas eleger o presidente da República depois de 21 anos de ditadura militar.

Os últimos seis meses foram os mais tensos do ponto de vista político por obra e graça do presidente Jair Bolsonaro. Ele afrontou o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, testou os limites da democracia e compareceu a manifestações de rua em Brasília onde seus seguidores pediram uma intervenção militar.

Elio Gaspari - Foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair

- Folha de S. Paulo

Estabilidade se deveu à primeira conciliação nacional partida da oposição, graças à genialidade de Tancredo

O primeiro general entrou no Palácio do Planalto em 1964 e o último (o quinto) saiu por uma porta lateral em 1985.

Contada assim, a ditadura durou 21 anos, mas ela se diferenciou de outras latinoamericanas, comunistas, africanas e até mesmo de algumas europeias.

Sua maior singularidade esteve na rotação da Presidência. Enquanto pelo mundo afora os ditadores só deixavam o poder mortos ou depostos, no Brasil todos tiveram mandatos. O regime intitulava-se “revolução”.

Disso resultou que o governo do marechal Castello Branco (1964-1967) pouco se parece com o de Arthur da Costa e Silva (1967-1969).

A Presidência de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) pouco teve a ver com a de Ernesto Geisel (1974-1979). Foi Médici quem escolheu Geisel para sucedê-lo e anos depois diria que, “se arrependimento matasse, eu já teria morrido”.

Nenhum dos quatro se pareceu com João Baptista Figueiredo (1979-1985). Quando ele saiu pela porta lateral do Palácio, estava afastado de Geisel, o país estava quebrado, o regime havia perdido a credibilidade.

A estabilidade política foi salva pela primeira conciliação nacional partida da oposição, graças à genialidade de Tancredo Neves. (Ele viria a ser eleito indiretamente, mas morreu sem tomar posse.)

As duas décadas de ditadura produziram progresso e pleno emprego, bancarrota e recessão, ordem pública, censura e torturas, moralidade e corrupção (numa escala centesimal).

O coronel-deputado Costa Cavalcanti, que construiu a hidrelétrica de Itaipu, morreu com patrimônio irrelevante.

Até hoje, as viúvas da ditadura fingem que as ruínas não aconteceram, e seus adversários relutam em admitir que algumas coisas deram certo.

Fulanizando: o general Augusto Heleno disse em 2018 que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia.”

Igor Gielow - Ditadura formou geração de militares que hoje povoam governo Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Uma das bases de sustentação do atual governo, fardados trazem do regime autoritário a mentalidade de que as Forças Armadas são importantes para a união nacional

A ascensão do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro ao poder fez brilhar os olhos de uma geração de oficiais-generais brasileiros.

Após 33 anos fora do núcleo decisório do país, os fardados enxergaram uma oportunidade de redenção.

Em aproximação mediada por generais da reserva que haviam encampado a candidatura, houve, depois do primeiro turno, a bênção do Alto-Comando do Exército, principal órgão da estrutura militar brasileira, a Bolsonaro.

O resultado, passado um ano e meio de governo de fato, é a maior crise existencial recente das Forças Armadas.

“Há uma confusão institucional. Chama a atenção o grande número de militares no governo”, diz o primeiro general da reserva que deixou o primeiro escalão, Carlos Alberto dos Santos Cruz (ex-Secretaria de Governo).

Em uma “live” do Instituto Brasiliense de Direito Público no sábado (20), ele classificou de desequilibrado o papel dos militares na política. “Há excesso. Isso começa a deteriorar o comportamento.”

Hoje, 10 dos 23 ministros do governo vieram da caserna, incluindo aí o interino da Saúde, general Eduardo Pazuello. A exemplo do sucessor de Santos Cruz, Luiz Eduardo Ramos, Pazuello é da ativa. “Para ir ao governo, todo mundo tem de passar para a reserva”, afirma o ex-ministro.

Ramos prometeu adiantar sua saída do serviço ativo. Mais próximo militar, historicamente, de Bolsonaro, ele personifica um conflito que remonta ao regime de 1964.

A ditadura foi a última de uma série de intervenções militares desde a proclamação da República, em 1889, um clássico golpe fardado.

A República Velha terminou em 1930 com outro golpe. Os anos de 1945, com o fim do Estado Novo, e 1954, marcado pelo suicídio de Getúlio Vargas, também veriam ações decisivas de alteração do poder civil pelas mãos militares.

Rolf Kuntz * - A doutrina do esgoto e a reputação do Brasil

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro dificulta combate ao vírus, ameaça o ambiente e assusta investidor

Brasileiro pula no esgoto, sai, mergulha e nada acontece com ele, disse o presidente Jair Bolsonaro em 26 de março, minimizando a pandemia e criticando a quarentena. Até aquele dia 77 pessoas haviam morrido de covid-19 e 2.915 casos de infecção tinham sido confirmados, segundo o balanço federal. Não se sabe quantos brasileiros se banharam no esgoto a partir daí nem quantos tomaram a cloroquina receitada por sua excelência. Mas três meses depois 55.102 haviam morrido e os casos acumulados eram 1,23 milhão, informou a imprensa na manhã da última sexta-feira.

Esses números são de secretarias estaduais. Um consórcio jornalístico passou a consultar essas fontes quando o governo central, depois de perder dois ministros da Saúde em menos de um mês, limitou a comunicação sobre casos e mortes.

A piora das expectativas econômicas acompanhou a expansão do contágio e a multiplicação das mortes. Ao atualizar suas projeções, o Fundo Monetário Internacional (FMI) passou de 5,3% para 9,1% a contração estimada para o produto interno bruto (PIB) do Brasil neste ano. O primeiro número foi divulgado no começo de abril, quando o País, assim como outros da região, registrava o impacto inicial da covid-19. A nova estimativa foi anunciada na última quarta-feira.

O alongamento da pandemia e da incerteza sobre sua evolução foi levado em conta na revisão das projeções para 2020 e 2021, disse a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath. Esse fator foi relevante no caso brasileiro e nos de outros países, acrescentou. Dados populacionais do Brasil e de outros emergentes, segundo ela, também foram vistos como um desafio adicional no combate ao novo coronavírus.

Democracia, nunca menos – Editorial | Folha de S. Paulo

Debate sobre sistema de governo deveria estar superado, mas urge voltar ao tema

É sólido o edifício da jovem democracia brasileira. Vultosa maioria, de 75%, hoje considera essa a melhor forma de governo. Trata-se de recorde desde que o Datafolha começou a pesquisar o tema, em 1989.

É sólido e, ainda assim, vem sofrendo ataques sistemáticos de extremistas identificados com o presidente Jair Bolsonaro, no maior teste de estresse desde a volta de um civil à Presidência, há 35 anos.

Muitos o fazem por má-fé; outros, por não terem vivido os horrores da máquina cruel que se instalou com a ditadura militar em 1964. Este último grupo faz parte dos 54,2% de jovens nascidos após 1985.

Por isso, a Folha lança ação em três frentes: campanha publicitária e especial jornalístico neste domingo (28), quando começa um curso gratuito para interessados em conhecer a história para não repeti-la.

A iniciativa serve também para acordar os saudosistas de um mundo de fantasia, em que não haveria corrupção nem escândalos, a segurança pública seria grande, e a economia, milagrosa.

Na vida real, o arbítrio sufocava as instituições, o pensamento livre e o direito de expressá-lo. A tortura era política de Estado, os adversários desapareciam, os desmandos ficavam ocultos pela mordaça nos outros Poderes e o crescimento econômico da década de 1970 acabou em inflação descontrolada e dívida.

Prognósticos e terapias para o mundo do trabalho – Editorial | O Estado de S. Paulo

Investimento em diversidade, igualdade e equidade gera empresas mais eficientes e sociedade mais justa

Em seu relatório O Mundo do Trabalho e a Covid-19, a OIT estima que só no segundo trimestre a perda em horas de trabalho será equivalente a 305 milhões de empregos. Mas um dos distúrbios mais perversos provocados pela pandemia é o impacto desigual sobre quem já padecia com a desigualdade. Antes dela, 7,1% dos trabalhadores viviam na extrema pobreza. Entre 2014 e 2017, a renda global do trabalho caiu de 53,7% para 51,4% em relação à renda do capital. Quase 40% da força de trabalho mundial está empregada em setores de alto risco e 107 países não reconhecem os direitos dos trabalhadores de se unirem em sindicatos. Só no primeiro mês da crise, a renda dos informais – frequentemente sem direitos trabalhistas e proteções sociais – encolheu 60%.

“Os jovens correspondem a mais de 1 em 10 empregados em setores severamente afetados. Junto às rupturas na educação, isso os coloca sob o risco de se tornarem uma ‘geração lockdown’ que carregará os impactos da crise por muito tempo”, diz a OIT. “As mulheres são desproporcionalmente empregadas em setores criticamente afetados como serviços, hospitalidade, turismo, e também são impactadas pelos transtornos na esfera doméstica.” Além disso, “empresas pequenas e médias – o motor da economia global – sofrem brutalmente e muitas não se recuperarão”. São repercussões globais, mas mais agressivas nos países em desenvolvimento.

Se por um lado a aceleração da digitalização e do trabalho remoto prenuncia um futuro promissor com mais flexibilidade e sustentabilidade, por outro crescem as ansiedades quanto aos riscos da 4.ª Revolução Industrial, em especial os da automação. Nesse cenário, “há o risco massivo de que o desemprego e a perda de renda pela covid-19 deteriorem a coesão social e desestabilizem os países social, política e economicamente”.

O momento da reforma tributária – Editorial | O Globo

Crescimento é o caminho para as receitas aumentarem e fazerem frente ao desequilíbrio fiscal

A paralisação abrupta dos sistemas produtivos no mundo, causada pela necessidade de bloqueios de cidades e do isolamento social forçados pelo vírus da Covid-19, está sendo enfrentada por toda parte com o aumento de despesas públicas. O retorno à normalidade depende de cada país. Há os mais bem estruturados, com finanças públicas que estavam organizadas, e que reúnem também outras condições estruturais que lhes permitem um retorno mais rápido e com menos distorções ao crescimento. E entre tantos outros há o Brasil, apanhado pela tempestade quando ainda tentava sair das dificuldades da falência do método heterodoxo adotado por Lula II e Dilma. O crescimento continuava baixo, havia conseguido realizar uma reforma da Previdência sempre tentada sem êxito, até que o país foi obrigado a esquecer a austeridade nas finanças diante da debacle sanitária e social. Não havia escolha.

Antes de a crise passar e deixar os escombros, é preciso rearrumar a agenda das reformas, que continuam cada vez mais necessárias.
E as circunstâncias aconselham que se dê prioridade à tributária, por sua capacidade de ajudar na retomada do crescimento, por meio do aumento da produtividade na economia, entre outras razões. Mesmo que haja mudanças que entrem em vigor aos poucos, ao longo dos anos, a reforma tem a capacidade de, ao sinalizar melhorias, oxigenar o ambiente de negócios desde já.

Todos os países sairão da epidemia com as contas públicas bastante deficitárias. O Brasil, que teria neste ano um resultado primário — sem considerar os juros da dívida — negativo na faixa de R$ 120 bilhões, acumulará algo oito ou nove vezes maior, elevando a dívida pública em relação ao PIB de cerca de 75% a quase 100%.

Música | Alceu Valença - Coração Bobo

Poesia | Mauro Mota - As Andorinhas

Torre feita de canto e de plumas
ou feitas de argamassa as andorinhas?
A simbiose do pouso nos litúrgicos
beirais e a migração de alvenaria.
Era a torre da igreja ornitológica,
onde a cor da manhã se suspendia.
Era uma ave de bronze na gaiola,
era a língua do sino presa à corda.

Mas quando, no intervalo dessa pena,
no seu repique matinal batia,
era a coletivíssima revoada:

asas de cal e músicas de penas
caindo todas pelo chão da praça
como se a torre se despedaçasse.

sábado, 27 de junho de 2020

Marco Aurélio Nogueira* - O futuro que nos escapa

- O Estado de S.Paulo

Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional

Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.

Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.

A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.

O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.

Merval Pereira - O pós-Bolsonaro

- O Globo

Cientista político vislumbra retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação para a defesa nacional

Diante da polêmica sobre o papel das Forças Armadas num regime democrático, o que deve um presidente de origem civil fazer com a questão militar? Esse é o tema sobre o qual se debruça o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio Octavio Amorim Neto, num artigo para o boletim do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre). Ele leva em conta o pós-Bolsonaro, seja com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE, ou com a derrota de Bolsonaro, ou Mourão ( em caso de impeachment) em 2022.

Como até hoje não houve força política para retirar da definição do papel das Forças Armadas a responsabilidade pelas “garantias dos poderes constitucionais”, como sugere o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras, Octavio Amorim Neto vislumbra outras possibilidades "de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional”.

O cientista político lembra que na Estratégia Nacional de Defesa havia a promessa de realizar “estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se numa força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”.

Passados doze anos, o país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa, critica Octavio Amorim Neto, que no longo prazo, “permitiriam democratizar as relações civis- militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa”.

Marcelo Trindade* - O discurso e a prática

- O Globo

Mesmo diante de atos graves, sustenta-se que não houve crime

Desde 2014, bolsonaristas comemoraram todas as prisões, preventivas, temporárias ou em segunda instância, decretadas por Sergio Moro. Construíram seu castelo sobre elas. Agora, atacam a prisão de Sara Giromini e de Fabrício Queiróz como afronta à liberdade e perseguição do Judiciário. Enquanto isso, o PT, que se opunha às prisões de seu tempo, celebra as atuais e nelas enxerga defesa da democracia.

Os momentos e os agentes são diversos, mas o discurso é o mesmo. Desqualificam-se decisões judiciais desfavoráveis e os juízes que as proferiram. Mesmo diante de atos graves, sustenta-se que não houve crime e que os fins justificam os meios. Todo excesso deve ser perdoado, pois o que importa é o combate às elites, a defesa da liberdade, a legitimidade do voto popular ou qualquer outra causa nobre de ocasião.

Ascânio Seleme - Silêncio, medo e ameaças

- O Globo

Bolsonarinho Paz e Amor apareceu de repente, graças ao tranco que o Bolsonarão sofreu com a prisão do amigo Fabrício Queiroz

Mais uma vez sua excelência tenta dar um ar de sobriedade ao seu governo bizarro. Bolsonarinho Paz e Amor apareceu de repente, graças ao tranco que o Bolsonarão sofreu com a prisão do amigo Fabrício Queiroz. Reina uma paz no Palácio do Planalto somente vista nos primeiros 45 dias de governo. Naquela época, contudo, havia uma euforia decorrente da nova investidura que hoje não se vê. Todos os gabinetes agora estão calados, esperando para ver se a coisa se consolida de verdade. Melhor mesmo fazer pouco barulho para não assustar a fera. Vai que ela se irrita e desperta outra vez aquela ira insana.

Os generais acham que a paz pode ser duradoura. A nomeação de Carlos Alberto Decotelli para o Ministério da Educação mostra que há uma disposição do presidente de buscar um pouco de calmaria no meio da tempestade. A ameaça sobre o mais velho dos seus zeros parece ter refluído um pouco depois da decisão do Tribunal de Justiça do Rio de tirar o caso das rachadinhas da primeira instância e dar ao acusado foro especial. Até por estar contaminada politicamente, a decisão do TJ, mesmo contrariando determinação do Supremo Tribunal Federal, colabora para manter o farol baixo do capitão. Da mesma forma que ninguém se mexe no Planalto para não despertar o bicho por ora acorrentado, Bolsonaro talvez ache melhor ficar quietinho em favor da segurança do filho.

Míriam Leitão - A grande chance do saneamento

- O Globo

Novo marco abre espaço para corrigir o atraso no saneamento, mas investimentos também dependem de estabilidade política e respeito ao meio ambiente

Imagine, apenas imagine, que o Brasil tivesse água tratada chegando na casa de todos os brasileiros. Hoje uma população do tamanho da do Canadá não tem serviço de água no Brasil e, portanto, não pode seguir o primeiro protocolo para o combate à pandemia. Outros milhões têm um fornecimento intermitente. Imagine que o Brasil tivesse coleta e tratamento de esgoto. O país teria poupado milhares de vida nessa pandemia.

Nesse momento em que notícias boas são raras, é preciso comemorar o passo dado no saneamento. Ele não garante nada, esqueça os números sempre bilionários que aparecem na economia. Mas o fato é que o novo marco do saneamento estabeleceu datas. Daqui a 13 anos, ou 20, as empresas que prestam serviço terão que entregar a universalização. No meio do caminho haverá metas intermediárias. E a ANA, a agência das águas, será a reguladora-mor.

— Não tem país com esse potencial, acho que só a Índia, mas ela está muito atrasada. As grandes companhias, Suez, Eólia, Águas de Barcelona, não têm para onde ir. Todo mundo está de olho no Brasil. Hoje eu recebi um japonês no escritório. A primeira pergunta que fazem é: e se o novo prefeito não quiser ou o governador tirar o contrato. No novo marco fica mais difícil essa instabilidade. O Brasil é uma jabuticaba, tem 52 agências reguladoras, mas agora haverá uma coordenação federal. A ANA vai criar normas para as agências — diz Edison Carlos, presidente do Trata Brasil.

Ricardo Noblat - O professor que queria ser doutor e virou ministro de Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

O currículo encolheu
O ex-oficial da Marinha e professor de finanças Carlos Alberto Decotelli foi escolhido para ministro da Educação porque, entre os candidatos ao cargo, ele era o que tinha o currículo mais longo, segundo o presidente Jair Bolsonaro.

Não deve ter sido só por isso. Pesou o apoio dos militares a Decotelli. E também a sua cor. Será o primeiro ministro preto do governo. De todo modo, o currículo do ministro ficou mais curto menos de 24 horas depois do anúncio.

Constava na plataforma CNPq Lattes que Decotelli era doutor pela Faculdade de Ciências Econômicas e Estatística da respeitável Universidade Nacional de Rosário, na Argentina. Fraude! Ele concluiu o curso, mas não foi aprovado.

Descoberto, o ministro admitiu que concluíra o curso, mas que não defendera tese, exigência essencial para que pudesse se apresentar como doutor. Fraude! Em entrevista ao Jornal Nacional, o reitor confirmou que ele defendeu tese, mas que ela obteve notas baixas.

Estava escrito no currículo de Decotelli que o orientador de sua tese fora o professor Antônio Freitas Júnior, da Fundação Getúlio Vargas, e presidente do Conselho Nacional de Educação. Fraude! Freitas nunca pertenceu aos quadros da universidade.

Adriana Fernandes* - Diálogo da Renda Básica

- O Estado de S.Paulo

O tema amadureceu diante do aumento da pobreza e dos milhões de ‘invisíveis’ do País

Ninguém segura mais o debate sobre o fortalecimento dos programas sociais na direção de uma renda básica no Brasil após o fim do auxílio emergencial de R$ 600, criado na pandemia do coronavírus para socorrer a população de baixa renda.
Ele está em pleno voo, como tem mostrado uma série de reportagens do Estadão. O tema amadureceu com velocidade inimaginável há seis meses, diante do aumento da pobreza durante a pandemia, que clareou a fotografia dos milhões de “invisíveis” no País.

Congresso e governo se movimentam para não perder esse bonde que se movimenta em alta velocidade por sobrevivência política. Cada um a seu modo. A questão no momento é como financiar o aumento das transferências sociais num cenário de piora das contas públicas, com a dívida pública no caminho de 100% do Produto Interno Bruto (PIB) e a restrição do teto de gastos.

Se quiser mesmo avançar num programa de fortalecimento dos programas sociais e não ser atropelado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de chamar para o diálogo (melhor que seja o mais rápido possível) os parlamentares e os principais especialistas do tema no Brasil envolvidos na elaboração de uma proposta de renda básica.

Eles são muitos e com grande experiência acumulada em quase 30 anos, desde a apresentação do primeiro projeto de lei de garantia de renda mínima, pelo ex-senador Eduardo Suplicy em abril de 1991.

João Gabriel de Lima - Nosso maior trauma

- O Estado de S.Paulo

O trauma da ditadura voltou a assombrar o Brasil em manifestações antidemocráticas

Países, como indivíduos, têm traumas. Fantasmas do passado ajudam a determinar escolhas do presente.

A sociedade brasileira, em tempos recentes, fez três escolhas claras: democracia, responsabilidade fiscal e inclusão social. Elas nasceram de três traumas. Por duas vezes, no século 20, enfrentamos ditaduras que mataram, torturaram e censuraram. Flertamos com a hiperinflação na virada para os anos 1990. E a exclusão social – sempre presente, sempre gritante -- é tema do debate público desde que Eugênio Gudin e Roberto Simonsen iniciaram a querela entre liberais e desenvolvimentistas nos anos 1950. Os dois lados concordavam que o combate à “pauperização” – termo usado na época -- deveria estar entre nossas prioridades.

Esses três traumas são discutidos num livro fundamental para entender o país: “Brazil in Transition”, de Marcus Melo, Carlos Pereira, Lee Alston e Bernardo Muller, que ainda não tem tradução em português. Carlos e Marcus participam ativamente do debate brasileiro – no caso de Carlos, personagem do minipodcast da semana, com uma coluna aqui mesmo no Estadão. Em artigo escrito na época das manifestações de 2013, o filósofo Renato Janine Ribeiro chega a uma tríade semelhante – o que mostra consenso, em diferentes áreas da academia, sobre nossos traumas e nossas escolhas.

Julianna Sofia – Porta da rua

- Folha de S. Paulo

Haverá poucos direitos e encargos trabalhistas reduzidos

Nas palavras do ministro Paulo Guedes (Economia) foi uma ideia “espetacular” do presidente Jair Bolsonaro a proposta de estender o auxílio emergencial por três meses em parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300. De tão estupenda, Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) não se conteve. Num —improvável— lapso, antecipou nas redes sociais medida que horas mais tarde coube ao chefe anunciar, sem oficializar.

Decerto, Ramos não é um tolo a atropelar por descuido a hierarquia do Palácio do Planalto. Assim como Guedes não acha a proposta lá essas coisas —há algumas semanas defendia apenas R$ 200 por um, dois meses. E Bolsonaro está longe de ser uma mente privilegiada, segundo avaliam 54% dos eleitores no Datafolha. Recentemente chegou a dizer que vetaria qualquer valor aprovado pelo Congresso que superasse duas parcelas de R$ 300.

Gustavo Uribe – Bolsonaro ensaia estilo ‘paz e amor’ para defender os filhos e o governo

- Folha de S. Paulo

Presidente recuou nos últimos dias em conduta agressiva e tem feito gestos de pacificação ao Judiciário e Legislativo

Em uma tentativa de diminuir o desgaste do governo e proteger os filhos, o presidente Jair Bolsonaro deixou de lado nos últimos dias a postura beligerante, deu uma guinada em seu discurso público e passou a adotar um estilo “paz e amor”.

Nas duas últimas semanas, marcadas por operações policiais contra alvos próximos à sua família, o presidente recuou em conduta agressiva e fez gestos de pacificação ao Judiciário e ao Legislativo.

A mudança de postura —ao menos por enquanto— ocorreu após pelo menos dois integrantes da equipe ministerial terem recomendado ponderação ao presidente: Fernando Azevedo (Defesa) e Fábio Faria (Comunicações).

De acordo com assessores palacianos, ambos sugeriram a Bolsonaro que ele intensifique o diálogo tanto com o Judiciário como com o Legislativo na tentativa de evitar novos reveses, entre eles contra seus filhos.

Na quinta-feira (25), por exemplo, ao lado do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Dias Toffoli, Bolsonaro defendeu, em evento no Palácio do Planalto, a cooperação e a harmonia entre os três Poderes.

"Esse entendimento, essa cooperação, bem revela o momento que vivemos aqui no Brasil”, disse. “O nosso entendimento, no primeiro momento, é que pode sinalizar que teremos dias melhores para o nosso país", acrescentou.

Na quinta-feira (25), em um movimento que surpreendeu a classe política, nomeou o economista Carlos Decotelli, conhecido pelo perfil moderado e técnico, para o comando do Ministério da Educação.

Demétrio Magnoli* - Rhodes deve cair?

- Folha de S. Paulo

Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente

A Oxford Union, representação dos estudantes da Universidade de Oxford, votou a favor da campanha “Rhodes deve cair”, iniciada numa universidade sul-africana com o objetivo de remover a estátua de Cecil Rhodes da fachada de um dos edifícios da universidade britânica.

No fim, a estátua fica, graças à pressão exercida por grandes doadores de Oxford. O dinheiro dobrou os intelectuais, impedindo-os de agir como vândalos, coisa que gostariam de fazer.

Rhodes é o maior ícone do imperialismo britânico na África. A sua figura personifica a ideia racista da “missão civilizatória do homem branco” que impulsionou o empreendimento colonial do outono do século 19. As sementes do apartheid na África do Sul e na Rodésia do Sul (atual Zimbábue) foram plantadas no solo que ele arou.

Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde.

Renato Janine Ribeiro* - Sem convicção, democracia continuará ferida

- Folha de S. Paulo

É ilusão olhar só as instituições, como fez Yascha Mounk, porque elas não substituem o povo, fonte do poder na democracia

Depois que caiu a ditadura argentina, nos anos 1980, houve algumas tentativas de golpe militar, quando iam a julgamento os criminosos que haviam exercido o poder. A cada vez, multidões tomavam as ruas e repudiavam a ação subversiva e antidemocrática.

De lá para cá, a Argentina viveu graves crises econômicas —como nós—, mas nunca a democracia esteve em risco. Teve e tem apoio popular.

Digo isso a respeito do artigo de Yascha Mounk, “Brasil já é uma democracia sob supervisão militar”.

Concordo com o título e com a tese principal. Mas estranhei sua alusão a “especialistas brasileiros que consultei alguns anos atrás e que sentiam confiança na força das instituições brasileiras”, porque segundo eles “os militares haviam se afastado de vez da política”.

O problema é que instituições somente são fortes se tiverem apoio popular. Esse apoio pode se chamar cultura política, educação política. Não me deterei na diferença entre esses conceitos, mas insisto: se as pessoas não acreditarem na democracia, as instituições serão frágeis contra o autoritarismo.

Infelizmente, o que nos preservou da ditadura, desde 1985, foi a fraqueza dos antidemocratas, mais que a força dos democratas. A ditadura acabou em fiasco, inclusive econômico, mas não sofreu punições.