domingo, 17 de abril de 2022

Opinião do dia - Karl Marx*: herança democrática

“Finalmente, os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países.”

*Karl Marx (1818-1883), “Manifesto Comunista”, Fevereiro, 1848. Boitempo Editorial, p.69. São Paulo, 2005.

Luiz Sérgio Henriques*: A globalização continua

O Estado de S. Paulo

Do ponto de vista estritamente político, é bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.

Vozes econômicas influentes informam que a globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.

Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.

Paulo Fábio Dantas Neto*: O fato Simone, entre dois realismos

Nem análises realistas, nem políticas realistas podem ignorar fatos razoavelmente demonstrados. A identidade entre esses dois realismos para por aí. Enquanto análises realistas não podem nunca brigar com os fatos, políticas realistas podem e muitas vezes devem fazer isso. No caso das análises, a máxima do realismo independe de quais fatos ela trata, eles são sempre excelências. No caso da política, há fatos a serem tratados como excelências, outros como excrescências, a depender da sua orientação política.

Se o assunto é a próxima eleição presidencial, são evidentes algumas aplicações práticas dessas afirmações gerais, quando as relacionamos ao cenário visto neste momento eleitoral, cada vez menos “pre”, que se vive no Brasil. O fato razoavelmente demonstrado é que são muito pequenas as chances de se firmar candidatura competitiva alternativa ao embate entre Bolsonaro e Lula. Esse é o principal fato, Sua Excelência, com a qual análises realistas não podem brigar. É ele também o fato auspicioso que políticas realistas dos dois polos do embate factual devem celebrar, conservar e cultivar, com zelo reverencial, como têm feito os realismos simetricamente opostos de Lula e Bolsonaro. E é ele o fato que uma política realista adversária desses dois atuais polos, se não pode ignorar, também não pode tratar como uma excelência. Se assim o fizer, deixará de ser política realista por renunciar à política. Partidos vocacionados para a mediação e não para a intensificação de conflitos ocupam um dado lugar no espaço político, seja ele nomeado de centro democrático ou atenda a outra denominação que esses atores adotem ou que recebam de analistas ou adversários. Eles podem, claro, dar uso mais ou menos eficaz a esse espaço. Mas o realismo político, nesse caso, manda que se agreguem num campo político e tratem o fato, já demonstrado, da polarização que os exclui como uma excrescência a remover.

Creio não ser preciso detalhar aqui a excrescência apontada pelo metro do centro político. Do ponto de vista de quem nele se situa, ou de quem o valoriza, os riscos que a democracia brasileira corre hoje são excessivos, antes de mais nada, por serem desnecessários, pois existe uma preferência majoritária pela democracia, nas elites políticas e também no eleitorado. Porém, como largamente sabido, nesse último a preferência democrática é pouco intensa, instável, podendo tornar-se fluida por antigas e várias razões. No centro do problema (ou no problema do centro) estão desigualdades que levam outros temas a se mostrarem emergenciais para amplas parcelas do eleitorado, negando ao da democracia política e suas instituições a prioridade desejada pela camada democraticamente politizada desse mesmo eleitorado. Por outro lado, no plano das elites políticas e seus vários partidos, a competição eleitoral em cenário de desigualdades críticas atua no sentido de rebaixar ali também a intensidade da preferência democrática de modo a ajustar sua postura à do eleitorado que pretende representar.

Luiz Carlos Azedo: Autoritarismo e corrupção são naturalizados no pleito

Correio Braziliense / Estado de Minas

Falta uma candidatura robusta que possa cumprir o papel de pautar o futuro no debate eleitoral e oferecer uma alternativa nova para o país

Por suas convicções, declarações e atitudes, o presidente Jair Bolsonaro (PL) é considerado pela oposição uma ameaça à democracia no Brasil. Sua visão de mundo, a compreensão sobre o papel do Estado na vida nacional, seus métodos de atuação, tudo corrobora o seu perfil político autoritário. Em decorrência disso, e da postura negacionista e da falta de empatia com as vítimas da pandemia de covid-19, disseminou-se uma grande rejeição na opinião pública à sua reeleição, que se reflete nas pesquisas.

Em contrapartida, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aparecia como franco favorito nas pesquisas eleitorais, gerando grande expectativa de poder, uma vez que já não estava preso e suas condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Diante de um cenário de 660 mil mortos, 11 milhões de desempregados, alta da inflação e estagnação econômica, a volta de Lula ao poder parecia apenas uma questão de tempo e não, como seria necessário ser, de uma estratégia bem-sucedida para consolidar o isolamento de Bolsonaro.

O presidente parecia fadado a ser enxotado do poder pelo eleitor. Com fim da pandemia, a situação mudou completamente. A principal preocupação da população já não é com a saúde. Passou a ser com a economia, cujos problemas relatados acima estão sendo mitigados pelo governo. O programa de transferência de renda Auxílio Brasil substituiu o Bolsa Família, uma herança do governo Lula. Outras medidas estão sendo adotadas, como mudanças na tabela do imposto de renda, subsídios para o gás de cozinha, adiantamento de 13º salário, liberação do fundo de garantia etc.

Cristovam Buarque*: Reforma ou revogação

Blog do Noblat / Metrópoles

Os partidos que apoiam Lula caem no negacionismo ao exigirem que ele, se eleito, revogue a reforma trabalhista

Há três anos somos governados por um negacionista, cuja cabeça é orientada por crenças do passado. Este espírito revogatório da realidade exige a unidade dos democratas para obterem os votos necessários e impedir sua reeleição. Tudo indica que o caminho para isto é o voto em Lula.

Mas faltando cinco meses para a eleição, muitos eleitores começam a temer que Lula traga também um espírito negacionista, tentando revogar a realidade, com base em crenças diferentes do Bolsonaro, mesmo assim crenças baseadas em ideologias que negam a realidade onde funciona a economia contemporânea de qualquer país. A visão de líderes próximos a Lula assustam aos que não querem mais governos negacionistas, assustam ainda mais ao perceber-se o risco de que por isto ele perca votos e milhões de antibolsonaristas optem pelo voto nulo, em consequência reelegendo Bolsonaro.

Merval Pereira: Os políticos se protegem

O Globo

O cientista social Fábio Kerche, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), publica no novo número da revista Insight Inteligência um interessante artigo analisando as semelhanças entre o sistema de justiça brasileiro e o dos Estados Unidos que levam ao incentivo de um procurador-geral da República mais condescendente, como temos hoje Augusto Aras, e processo semelhante que  aconteceu nos Estados Unidos com relação ao promotor responsável por acusar o presidente de lá.

Em ambos os casos, ressalvando as profundas  diferenças entre os modelos, Fabio Kerche constata que os políticos, da situação  e da oposição, apoiaram que o promotor encarregado de processar os presidentes tivesse menos autonomia do que em outros momentos da história recente desses países. “Altas doses de autonomia  parecem ser um risco que os políticos nem sempre  estão dispostos a apostar”, ressalta.

Elio Gaspari: A terceira via é um deserto de ideias

O Globo / Folha de S. Paulo

O pessoal que busca o candidato que evitará a polarização Bolsonaro x Lula pratica um jogo de cubos que até agora rendeu noticiário, e só

Quatro partidos buscam um candidato de consenso para marcharem unidos na eleição presidencial. Parece piada. Consenso em relação a quê? O PSDB fez uma prévia vencida pelo governador João Doria. O MDB tem uma candidata na rua e boa parte de sua caciquia na sala dos jantares de Lula. O União Brasil (ex-DEM, ex-PFL. Ex-PDS e ex-Arena) tem no doutor Luciano Bivar um candidato de fantasia.

Doria ganhou a prévia, mas Eduardo Leite não saiu do páreo. Simone Tebet sabe, desde o primeiro momento, que suas dificuldades estão numa caciquia que não pretende descolar de Lula. Cada um dos candidatos da terceira via não tem consenso a começar no próprio partido.

Isso não se deve à falta de conversas. É por falta de ideias que seus candidatos não conseguem chegar ao segundo dígito. O país parece estar saindo de uma pandemia que matou mais de 600 mil pessoas, na qual milhões foram salvas pelo SUS. Os planos de saúde ameaçam com um aumento histórico. No início da pandemia, recusaram-se a cobrir os custos de testes. Alguém ouviu uma palavra dos candidatos da terceira via sobre a saúde pública? Inflação? Desemprego?

O pessoal que busca o candidato que evitará a polarização Bolsonaro x Lula pratica um jogo de cubos que até agora rendeu noticiário, e só. Isso está estatisticamente demonstrado pelas pesquisas. Não falam para o andar de baixo, e quem vive nele não mostra interesse pelas suas ilustres figuras. Lula e Bolsonaro têm penetração no andar de baixo, cada um à sua maneira, e por isso a eleição está polarizada.

Até meados de maio a turma da terceira via e do consenso buscará um sabor comum a dois punhados de areia, um pedaço de melancia e meio bife. Podem até se unir em torno de um candidato que cresça, mas dificilmente irão juntos até a eleição.

Bernardo Mello Franco: O vermelho e o azul

O Globo

O diretório nacional do PT aprovou com folga a escolha de Geraldo Alckmin como vice de Lula. A votação desta quarta removeu a última pendência para a união entre os antigos adversários. Falta definir como o ex-tucano vai influir na campanha e no programa de governo.

O petista quer apresentar a chapa como uma frente ampla contra o bolsonarismo. “Não sou só o candidato do PT. Quero ser o candidato de um movimento de recuperação da democracia”, afirmou, em fevereiro.

O problema é que uma frente ampla exige mais que um vice conservador. Lula precisa atrair setores que se desiludiram com Jair Bolsonaro e não acreditam na tal terceira via, mas ainda torcem o nariz para a ideia de votar no PT.

“O campo vermelho da sociedade já está com Lula. Agora temos que abrir conversas com o campo azul”, defende o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues.

Convidado a integrar a coordenação da campanha petista, o senador da Rede prega o diálogo com grupos que aderiram ao capitão em 2018. “Alckmin é um símbolo importante, mas não fará a frente ampla sozinho. Temos que furar as bolhas do agronegócio, dos evangélicos, dos empresários. Se não tirarmos votos do Bolsonaro, vamos perder a eleição”, alerta.

Rogerio Studart*: Políticas de austeridade ameaçam a democracia

O Globo

Usar os juros contra surtos inflacionários é um remédio socialmente amargo. Mas, como os mais pobres não têm como se proteger da corrosão da inflação, o resultado pode ser positivo socialmente se o remédio for eficaz e rápido, se a desigualdade for baixa e se existir um sistema de proteção social. Não é o caso no mundo, muito menos no Brasil.

Primeiro, surto inflacionário é principalmente fruto de choques de oferta. Portanto o remédio pode exigir uma profunda retração de demanda, da produção e do emprego. Segundo, nas últimas três décadas, mesmo nos países ricos, os mecanismos de proteção social foram dilapidados, e a iniquidade aumentou de forma assustadora. O quadro hoje é dramático: segundo a Oxfam, os dez homens mais ricos do mundo têm hoje seis vezes mais riqueza do que os 3,1 bilhões mais pobres. Enquanto isso, nos Estados Unidos, a maior economia do mundo, mais de 60% da população não pode pagar suas contas se não receber um mês de salário.

No Brasil, a situação é ainda mais grave. De acordo com o Relatório Global de Desigualdade, 10% dos mais ricos detêm 80% da riqueza total, 1% detém quase 50% (!), e 50% da população possui mero 1%. Vinte milhões passam fome diariamente. Pouquíssimos podemos poupar, e parte significativa das poupanças vai para a dívida pública. Como demonstra o próprio Tesouro Nacional no seu Relatório Mensal da Dívida Federal, cerca de 30% são propriedade de instituições financeiras, e quase 60% são intermediadas por elas. Não por outra razão, os bancos tiveram, como indicado em notícia recente, lucros recordes (R$ 81,6 bilhões) em 2021.

Míriam Leitão: Áudios do STM provam tortura na ditadura

O Globo

Superior Tribunal Militar, dia 24 de junho de 1977, o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos fala. “Fato mais grave suscita exame, quando alguns réus trazem aos autos acusações referentes a tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas, Nádia Lúcia do Nascimento, abortasse após sofrer castigos físicos no Codi-DOI.” Conta que o aborto foi provocado por “choques elétricos no aparelho genital”. Em seguida lê o que disse Nádia. “Deseja ainda esclarecer que estava grávida de três meses, ao ser presa, tinha receio de perder o filho, o que veio a acontecer no dia 7 de abril de 1974”.

As vozes desse tempo sombrio foram resgatadas pelo historiador Carlos Fico, titular de História do Brasil da UFRJ.

— O Superior Tribunal Militar passou a gravar as sessões a partir de 1975, mesmo as secretas. Até 1985 são 10 mil horas. Em 2006, o advogado Fernando Augusto Fernandes pediu acesso. Não conseguiu. Foi ao Supremo, que mandou liberar. O STM não obedeceu. Em 2011, a ministra Cármen Lúcia determinou o acesso irrestrito aos autos. O plenário acompanhou a ministra. Em 2015, as centenas de fitas de rolo foram digitalizadas. Fernandes analisou apenas 54 sessões. Em 2017 consegui copiar a totalidade das sessões. Aprimorei o áudio e passei a ouvir — explica o professor.

Eliane Cantanhêde: O “inimputável”

O Estado de S. Paulo

Os escândalos do MEC estão na ‘alma’, mas também no ‘coração’ do governo

Ao premiar Ciro Nogueira com a Casa Civil, o presidente Jair Bolsonaro admitiu que estava entregando “a alma do governo” ao Centrão, o que poderia ser confundido, maldosamente, com “vender a alma ao diabo”. Assim como o “gabinete paralelo” do Ministério da Saúde operava dentro do Planalto para compra de vacinas, o “gabinete oculto” do FNDE e o “do culto” do MEC estão na “alma do governo”.

A bem da verdade, os dois escândalos estão na alma, mas também no coração do governo: na Casa Civil e no gabinete do presidente. O Planalto abriu as portas 35 vezes para os pastores que participavam de reuniões, desfilavam em aviões da FAB, achacavam prefeitos e, conforme o ex-ministro Milton Ribeiro à PF, foi Bolsonaro quem pôs

Vinicius Torres Freire: Se organizar direitinho, todo o mundo rouba

Folha de S. Paulo

Faz dois anos, presidente da rachadinha rachou o governo com o centrão

Sinais ostensivos de roubança no governo não prejudicaram a popularidade de Jair Bolsonaro. Nem o repique da inflação, nem o aumento dos combustíveis. Há indícios de que seu prestígio subiu um par de pontos.

A avaliação de Bolsonaro não está muito abaixo do que era nos tempos menos anormais de seu governo. No ano anterior ao início da epidemia, até fevereiro de 2020, 34% do eleitorado lhe dava nota "ótimo/bom", em média. No início deste abril, 29% (dados da pesquisa Ipespe, de maior frequência).

Sim, Bolsonaro leva nota "ruim/péssimo" de 54% desde agosto de 2021. Mas o assunto aqui é resistência eleitoral e política. Neste abril, faz dois anos que Bolsonaro organizou a sua sobrevida.

Na primavera da epidemia de 2020, o desprestígio de Bolsonaro crescia rápido por causa de sua indiferença à morte. Perdia feio no Congresso. Temia o impeachment e a prisão de filhos.

Foi um abril de reviravolta e ataques em várias frentes. No início do mês, aconselhado por seus generais, Bolsonaro chamou o centrão. No dia 16, demitiu Luiz Mandetta, o popular ministro da Saúde. No dia 19, foi ao comício diante do Quartel-General do Exército, no qual se pedia golpe militar contra Congresso e Supremo. No dia 24, Sergio Moro caiu.

Hélio Schwartsman: Autores veem extrema direita como alternativa a liberalismo

Folha de S. Paulo

Para eles, o liberalismo destrói a identidade etnocultural dos grupos

Hoje recomendo um livro de terror: "A World After Liberalism", de Matthew Rose. É brincadeira, mas é sério. É brincadeira porque "A World..." não se encaixa bem no gênero terror se o pensarmos como a categoria literária a que pertencem "Frankenstein", "O Médico e o Monstro" e "Drácula". "A World..." não é uma peça de ficção, e sim uma coleção de pequenos ensaios que ficam entre o jornalístico e o sociológico. Mas é sério porque o livro de Rose, até mais do que os clássicos citados, mete medo.

Rose mostra que, por trás das sandices e dos impropérios lançados por militantes em redes sociais, existe um pensamento de extrema direita mais consistente e mais profundo. Ele perfila cinco autores que foram responsáveis por lançar algumas dessas ideias: Oswald Spengler, Julius Evola, Francis Parker Yockey, Alain Benoist e Samuel Francis. Confesso que conhecia minimamente Spengler, já tinha ouvido falar em Evola e ignorava os outros três.

Janio de Freitas: A oportunidade dos saudosistas

Folha de S. Paulo

Incógnita é até onde irá apego ao ideário da ditadura e ao poder de impô-lo em caso de derrota eleitoral do presidente

Nenhuma instituição mostra maiores perdas, na confrontação dos conceitos públicos mais aparentes, do que as Forças Armadas atingidas pelas características do mandato de Bolsonaro.

O Judiciário, com seus momentos de alta e de baixa, a Câmara nos níveis mais deploráveis, o Senado, os partidos e a política em geral reproduzem, neste período singular, as suas imagens anteriores. Graças ao SUS, o serviço público viveu a experiência de aplaudido, com exceção das polícias.

As Forças Armadas, e o Exército em particular, têm situação sem precedente há mais de um século, desde os tempos de Floriano e de Hermes da Fonseca.

É eloquente, cheio de significados, o rompimento da cautela nas referências aos militares, criada pelas represálias de violência vigentes por muito tempo.

Cartunistas, humoristas, boa parte dos e sobretudo das comentaristas profissionais, cartas de leitores e, claro, as redes de internet praticam, uns, a franqueza de crítica, outros a libertação do sarcasmo e do deboche.

Militares mais antigos, crias e guardiães da ditadura como realidade e como memória, viram na candidatura de Bolsonaro, com as circunstâncias produzidas pelos agentes da Lava Jato, a oportunidade ideal: impor as visões da ditadura sem a ditadura, tornada difícil e talvez insustentável.

Dorrit Harazim: Ovo e segredo

O Globo

Muito além de seu significado no calendário cristão, a Páscoa tem um inigualável sabor de criança. Ela não só atiça ao máximo a imperiosa curiosidade dos pequenos, como infla de impaciência a gulosa imaginação própria àquela idade. Com ovos de Páscoa exibindo-se da quitanda à megastore, o atropelo de dúvidas e desejos infantis costuma ser intenso. É pra querer logo o maior de todos? Ou aquele menor e reluzente, na cor preferida? Como adivinhar se ele é oco? Ou, no chacoalhar da sacudida, como saber qual a surpresa que esconde? E esse outro que faz barulho maior?

Da criança bem-nascida àquela que jamais terá a ventura de segurar em mãos um chocolate para chamar de seu, imaginar que segredos escondem aquelas oferendas é parte da farra. De todo modo, é preciso paciência para abrir o caminho até chegar ao tesouro: soltar primeiro as fitas, depois o papel celofane, que está ali para proteger o papel laminado, que por sua vez protege a massa oval do chocolate. E é ela que preserva a surpresa final, o segredo mais bem guardado.

Cacá Diegues: As suçuaranas da cultura

O Globo

E ‘A Primeira Missa’ e o ‘Independência ou morte’ vão seguir como exemplos de nosso respeito pela nação

A televisão revelou, a partir de um dispositivo fotográfico montado estrategicamente dentro da mata litorânea do Rio de Janeiro, a sobrevivência de suçuaranas, belas onças-pardas típicas da região, dadas como em extinção há cerca de um século.

Saudemos portanto as suçuaranas, de volta às aventuras selvagens em nossas matas. Podemos dizer que o Brasil renasce um pouco pelas patas desses heroicos animais, representantes do que sempre tivemos de mais belo, raro e nosso.

Aliás, sempre acabamos por nos iludir com o país e com o que ele tem de aparentemente mais louvável. Durante o Segundo Reinado, quando tivemos o período mais longo de nossa história com um só chefe da nação, Dom Pedro II resolveu incentivar o orgulho da população e relançar o Brasil no mundo, numa operação ao mesmo tempo política, turística e de autoafirmação.

Celso Lafer*: Lygia Fagundes Telles

O Estado de S. Paulo

Para seus amigos e confrades, como para os seus leitores, é um consolo lembrar o que dizia Cícero no ‘De amicitia’.

A presença de Lygia tinha o sopro de uma aura. Conjugava-se com sua beleza, que perdurou no correr dos muitos anos de sua vida. O seu olhar tinha características próprias que transpareciam no contato pessoal. Era um olhar pluriantenado de sensibilidade que agudizava a sua percepção das coisas, das pessoas e do mundo. Traduziu-se numa obra literária de primeira grandeza que, no romance e no conto, possui a limpidez adequada a uma visão que penetra e revela, como observou Antonio Candido. Filia-se no seu escrever à linhagem de Machado de Assis. Na sua obra, para evocar Octavio Paz em Blanco, na transcriação de Haroldo de Campos, “a irrealidade do que é visto / dá realidade à visão”.

A recente publicação (2018) de um volume que reúne os seus contos vem acompanhada de um brilhante posfácio de Walnice Nogueira Galvão. Nele Walnice destaca que, na diversidade das estruturas e das matérias de seus contos, o fio condutor da limpidez de sua linguagem é a criatividade literária de uma imagem pregnante. Esta é “um concentrado ou condensado de sentido, uma síntese extremada de tudo o que o conto insinua”. A multiplicidade destas “imagens pregnantes” – o isqueiro, a cor verde, o colar de âmbar ou de pérolas, as mãos dadas, o espartilho, o vestido bordado –, como indica Walnice na análise dos seus contos, traz “consigo um senso de revelação, iluminando como um rastilho toda a narrativa”.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

O fracasso das políticas de segurança

O Globo

 

Não é aceitável que mais da metade dos moradores de uma cidade queiram mudar-se com medo da violência. É o que acontece com 59% dos cariocas e 55% dos paulistanos, de acordo com pesquisa do Datafolha. A melhor tradução da mensagem desses dados é que a maior parte da população das duas maiores cidades do país não acredita que os administradores públicos que elegeram sejam capazes de protegê-la.

Rio e São Paulo são vítimas do mesmo populismo que permite a ocupação desordenada de áreas das cidades que se convertem em santuários paralelos à margem da lei. No Rio, pela topografia local, as favelas podem ser mais visíveis que em São Paulo. Um paulistano que não saia dos bairros nobres das zonas Sul e Oeste pode passar a vida ao largo delas, mas nas periferias persistem as mesmas mazelas: falta de saneamento, ausência de agentes públicos, moradias improvisadas (com frequência em áreas de risco) e a sensação de insegurança trazida pelas facções criminosas.

É certo que houve avanço no combate à criminalidade, mas a pandemia trouxe um recuo dramático. O aumento da pobreza, da fome e a multiplicação na quantidade de moradores de rua contribuem para ampliar a sensação de abandono e insegurança nas grandes cidades. As redes sociais funcionam como um amplificador de notícias sobre assaltos e assassinatos, frequentemente em bairros onde a situação parecia controlada há poucos anos.

Poesia | Manoel de Barros: Ruina

 

Música | Leila Pinheiro: Índios

 

sábado, 16 de abril de 2022

Opinião do dia - Hannah Arendt*: pensar o futuro

“No momento em que voltamos nosso espírito para o futuro, não estamos mais preocupados com “objetos”, mas sim com projetos, e não importa se eles formados espontaneamente ou como reações antecipadas a circunstâncias futuras. E assim como o passado apresenta-se ao espírito sempre com aspecto de certeza, a característica principal do futuro é sua incerteza básica, por mais alto que seja o grau de probabilidade a que se possa chegar em uma previsão. Em outras palavras, estamos lidando com coisas que nunca foram, que ainda não são e que podem muito bem nunca vir a ser.”

*Hannah Arendt (1906-1975), “A vida do espírito” p.274. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009.

Ricardo Noblat: Como Jair Messias Bolsonaro ameaça o estado de direito no Brasil

Blog do Noblat / Metrópoles

Marine Le Pen, na França, não esconde que jogará fora das quatro linhas da Constituição

Na última quinta-feira, o jornal Le Monde estampou em manchete de primeira página: “Como Marine Le Pen ameaça o estado de direito”. Le Pen é a candidata da extrema direita que disputará o segundo turno da eleição presidencial francesa com Emmanuel Macron, atual presidente, de centro-direita.

Em declaração recente, Le Pen deixou claro o que pretende fazer se eleita. Ela quer governar “livre do controle constitucional, do Parlamento e de uma parte da Imprensa”. Dito de outra maneira: ignorando a Constituição, o Congresso e a imprensa que não compartilha suas ideias claramente antidemocráticas.

Le Pen, pelo menos, é sincera. Não esconde que jogará fora das quatro linhas da Constituição. Quem votar nela não poderá dizer depois que votou por engano. A eleição na França será sobre a democracia, de resto como a do Brasil em outubro próximo. Quando a imprensa, aqui, estampará isso em suas manchetes?

Cristina Serra: Jornalistas e o ovo da serpente

Folha de S. Paulo

Imprensa não pode repetir em 2022 a fraude cognitiva dos dois 'extremos' quando só há um

Relatórios publicados recentemente por entidades do setor jornalístico (Fenaj, Abraji e Abert) revelam uma explosão de violência contra profissionais da comunicação no Brasil. São insultos, ataques físicos, atentados, assassinatos, censura e restrições à liberdade de imprensa.

A hostilidade contra jornalistas é estimulada pelo presidente da República e seus apoiadores. Bolsonaro já quis dar "porrada" em repórter e mandou jornalistas à "pqp". A truculência mira os profissionais e também o jornalismo como atividade essencial à democracia.

Ele não dá entrevistas coletivas formais e ministérios não se dão ao trabalho de atender à imprensa. É um generalizado "E daí?". Não há o menor respeito e compromisso com a informação de interesse público. O presidente se comunica por redes sociais e veículos patrocinados pelo bolsonarismo.

As milícias digitais fazem o resto. Ao jornalismo profissional resta reverberar as barbaridades exaladas por uma máquina de mentiras e mistificações. Tudo isso é método de sabotagem ao papel da imprensa. Faz parte da estratégia da extrema direita em todo o mundo na escalada de processos autoritários.

Hélio Schwartsman: Só matemática sofisticada salvaria terceira via

Folha de S. Paulo

Com voto valorativo, candidato que recebesse pontuações médias teria alguma chance

A esta altura, só um milagre viabilizaria a chamada terceira via. Como bom ateu, não acredito em milagres.

Viúvas da terceira via, porém, acertam em alguma coisa ao apontar que há algo de paradoxal no fato de os dois candidatos mais detestados pelos eleitores serem os que mais chances têm de conquistar a Presidência. O bom Jean-Jacques Rousseau nos convenceu de que, para chegar ao nirvana político, bastaria seguir a vontade geral. Talvez, mas aferir essa tal de "volonté générale" não é tão simples.

Se há algo que a matemática nos garante é que todos os sistemas de votação são ruins. O que utilizamos no Brasil, o escrutínio majoritário uninominal (cada eleitor vota em um candidato e vence quem recebe mais sufrágios), pode levar a situações como a que vivemos, em que os campeões da rejeição não só se tornam os favoritos como também conseguem bloquear o surgimento de alternativas.

Alvaro Costa e Silva: O laboratório da corrupção

Folha de S. Paulo

Com tantas denúncias no MEC, Ciro Nogueira virou especialista no tema

Herdeiro de uma família de larga tradição política no Piauí e tendo apoiado todos os governos (FHC, Lula, Dilma, Temer) desde que chegou a Brasília pela primeira vez para atuar como deputado federal, em 1995, Ciro Nogueira é especialista em corrupção. Entenda-se: como um cientista em seu laboratório, ele consegue distinguir e classificar os milhares de tipos da doença que sufoca o país.

Segundo Nogueira, todo-poderoso ministro da Casa Civil, a corrupção sob Bolsonaro é "virtual". Ou seja: ela não é real nem pode ser simulada; sua existência ocorre apenas em teoria; é o resultado de uma demonstração ou de uma "narrativa" –para usar essa palavra mágica, capaz de explicar tudo nos dias de hoje.

Demétrio Magnoli: Jornalistas que tuítam

Folha de S. Paulo

O vício do Twitter desmoraliza veículos de imprensa e os próprios jornalistas

O Estatuto Militar proíbe a participação de militares da ativa em atos políticos. No Brasil atual, militares da ativa passam o dia espalhando consignas políticas nas redes sociais.

O New York Times, arrependido de uma orientação formulada muitos anos atrás, acaba de recomendar a seus jornalistas que se desintoxiquem do Twitter. No fundo, o memorando interno do jornal argumenta que o jornalismo profissional é incompatível com a militância política nas redes sociais.

"Podemos depender demais do Twitter como ferramenta de reportagem ou feedback —o que é especialmente nocivo quando nossos feeds se tornam câmaras de eco", diz o memorando.

As redes sociais fragmentaram a Agora. No lugar da antiga praça central do mercado de ideias criada pela imprensa, surgiram incontáveis palanques isolados: bolhas discursivas frequentadas por tribos ideológicas. O jornalista viciado no Twitter comporta-se como qualquer internauta: imagina que a sua bolha representa a "opinião justa" e nutre-se psicologicamente dos aplausos virtuais que obtém.

João Gabriel de Lima: Os cadáveres e os ‘vladimínions’

O Estado de S. Paulo

Discurso pró-Putin se disseminou em grupos de esquerda apesar do massacre nas ruas de Bucha

A fotografia de crianças em desespero, fugindo de um bombardeio de napalm, ajudou a mudar a opinião do mundo sobre a Guerra do Vietnã. O flagrante, de 1972, foi captado por Nick Ut, que cobria o conflito em Trang Bang, aldeia próxima a Saigon. Ele trabalhava para a agência Associated Press, responsável por várias outras imagens icônicas do conflito – entre elas a da execução de um soldado, que foi parar na capa do jornal The New York Times.

É possível fazer um paralelo entre a foto de Nick Ut e as imagens de cadáveres de civis ucranianos espalhados pelas ruas de Bucha. Em vez de uma aldeia próxima a Saigon, temos um subúrbio de Kiev. No lugar do flagrante estático, imagens em movimento. Elas são tão chocantes que o YouTube exige senha e cadastramento aos usuários que tentam acessá-las.

O exército russo nega ter perpetrado um massacre em Bucha, e a imprensa internacional foi cautelosa nos primeiros relatos sobre o fato. Passadas duas semanas, multiplicam-se as evidências de crimes de guerra. A revista The Economist atesta que em pelo menos nove cadáveres examinados por seus repórteres há indícios flagrantes de execuções: mãos amarradas nas costas, e tiros no peito ou na cabeça.

Carlos Alberto Sardenberg: Como o Brasil pode ficar rico?

O Globo

‘Na origem de nossa incapacidade de retomar o crescimento está uma avassaladora captura do Estado por interesses privados, em detrimento do bem comum. Falhamos em aprimorar as instituições inclusivas, alargando o espaço para o crescimento de instituições extrativistas. No lugar de cumprir seu papel essencial de oferecer serviços públicos de qualidade à população, o Estado passou a servir a interesses e privilégios de grupos que dele se apropriaram.’

Assim começa o denso e oportuno documento intitulado “Desenvolvimento inclusivo, sustentável e ético”, de autoria de Affonso Pastore, Cristina Pinotti e Renato Fragelli. Trata-se, acredito, da mais importante contribuição recente para um debate que pode ser assim reduzido: como o Brasil pode escapar da armadilha da renda média e se tornar um país rico?

Tendo em vista uma questão crucial —um Estado a serviço do público —, destaca-se a importância das “instituições contratuais (verticais) que regulam o direito de propriedade, incluindo as que protegem os cidadãos contra o poder abusivo das elites, políticos e grupos de privilégio corruptos”.

Pablo Ortellado: Demissões voluntárias em alta

O Globo

Numa entrevista para a agência Bloomberg, em maio de 2021, o professor de gestão Anthony Klotz profetizou que os Estados Unidos assistiriam a uma “grande recusa”, uma onda de demissões voluntárias em massa causadas por epifanias dos trabalhadores provocadas pela pandemia: sobre o tempo que passam com a família, o tempo gasto com transporte e o sentido do trabalho.

Logo depois, dados sobre demissões voluntárias começaram a mostrar o tamanho da grande recusa: nos Estados Unidos, elas saltaram de cerca de 3 milhões por mês no período pré-pandemia para 4,5 milhões em novembro de 2021. O fenômeno foi também detectado na Europa e na China, e um levantamento recente mostra seu impacto no Brasil. Afinal, por que os trabalhadores estão voluntariamente abandonando seus empregos?

Segundo levantamento da Lagom Data, com dados do Caged (Ministério do Trabalho e Previdência), as demissões voluntárias dispararam no Brasil a partir de setembro de 2021. Enquanto, no período pré-pandemia, oscilavam abaixo da faixa das 300 mil por mês, desde outubro de 2021 passam de 400 mil e chegaram a 560 mil em janeiro de 2022.

Eduardo Affonso: Indecisos podem decidir

O Globo

Por inapetência, incompetência e conveniência dos partidos do tal “centro democrático”, vamos nos encaminhando para as eleições de outubro com a perspectiva (funesta) de um encontro marcado, no segundo turno, com um ex e um futuro presidiário.

A pesquisa Genial/Quaest (2 mil entrevistas feitas entre 1º e 3 de abril) mostra, na intenção de votos (espontânea) para presidente, que 28% preferem Lula, 22% vão de Bolsonaro e 46% estão “indecisos”.

Talvez haja aí uma sutil questão de nomenclatura —e esses “indecisos”, longe de não saberem em quem votar, estejam duplamente decididos. Seriam os “eles-não”, aqueles a quem ainda não foi oferecida uma alternativa razoável. E que acabarão por votar em branco ou nulo (e seja o que o capiroto quiser) —ou respirar fundo e escolher pelo avesso, conformando-se com o menos pior.

Gustavo Binenbojm*: A festa incompleta da liberdade

O Globo

Pessach — a Páscoa judaica — representa a forma viva mais antiga de celebração coletiva da liberdade. Há cerca de 3 mil anos, judeus espalhados pelo mundo contam a seus descendentes sobre a amargura da escravidão no Egito e sua longa travessia para a liberdade na Terra Prometida. Mesmo nas situações mais adversas, como em guerras, nos campos de concentração e durante pandemias, a comunidade judaica resistiu e cumpriu o mandamento bíblico de transmitir às crianças o testemunho de seus antepassados. A Última Ceia de Jesus, retratada por inúmeros artistas, revela detalhes da liturgia de Pessach, celebrado numa Jerusalém sob domínio romano, quase como um ato de subversão. Lembrar o passado era necessário porque a opressão se fazia novamente presente naquela época.

De certa forma, Pessach representa a incompletude da libertação da humanidade, como uma obra em construção. Se já sabemos como não ser racistas, estamos ainda aprendendo a ser antirracistas. Como disse lindamente o rabino Nilton Bonder: “Liberar-se é deixar de ser escravo; libertar-se é deixar de ser escravo e escravagista”. Não há como deixar de lembrar para que a história não se repita conosco, mas também para que ela deixe de se repetir com outros povos. Quem foi escravizado não pode jamais ser indiferente a pessoas escravizadas. Por isso, ao final de cada Pessach, a porta da casa deve ser aberta à espera daquele que ainda está por vir, daquele para quem a festa ainda não começou. Sua simbologia me parece clara: lembrar aqueles invisíveis aos nossos olhos.

Mano Ferreira*: Vícios e virtudes do liberalismo brasileiro

EA Estado da Arte / O Estado de S. Paulo

“Nossos neoliberais raciocinam como paleoliberais, saudosistas de uma ordem socioeconômica vitoriana, alheia ao princípio moderno da economia social do mercado e aos deveres do Estado num país em desenvolvimento”. O leitor poderia imaginar que as palavras saíram de uma boca socialista. Em tempos bolsonaristas, de fato não falta fermento no bolo do socialismo. O autor, contudo, é José Guilherme Merquior, grande liberal brasileiro, em texto de 1983. Uma grande virtude do pensamento liberal brasileiro é que suas melhores críticas são autocríticas.

Não se trata de uma novidade. Um século antes, em 1886, Joaquim Nabuco escrevia que a agenda da abolição “substituiu a luta das teses constitucionais sem alcance e sem horizonte” do seu Partido Liberal “pela luta contra os poderosos privilégios de classe, contrários ao desenvolvimento da nação”; e que, com isso, “pela primeira vez o Partido Liberal saiu do terreno das discussões escolásticas, que só interessavam à classe governante, para entrar no terreno das reformas sociais, que afetam as massas”.

A disputa pelo real significado do liberalismo é tão antiga quanto a relevância política das ideias liberais. A acusação de socialismo disfarçado também. Hoje tratado por todos como legítimo representante do melhor liberalismo brasileiro, Nabuco também foi acusado de socialista. Um de seus acusadores foi Martinho Campos, correligionário do Partido Liberal, para quem a defesa da escravidão seria, em primeiro lugar, uma prova de caridade cristã, como se o senhor de escravos na verdade fizesse um grande favor aos escravizados; e, acima de tudo, uma defesa da propriedade privada, afinal “nenhum (escravo) caiu do céu”, todos haviam sido adquiridos legalmente.

Marcus Pestana*: A hora da verdade para a 3ª. Via

A crônica política e as pesquisas eleitorais apontam na direção de inevitável e irreversível polarização entre Lula e Bolsonaro. Nunca é demais lembrar que tudo que é sólido pode desmanchar no ar. Campanhas foram feitas para subverter os números das pesquisas. Lula tem se mantido firme no patamar em torno de 40% das intenções de votos. Recentemente, cometeu erros graves ao abusar da improvisação e abandonar a postura de “jogar parado”. Bolsonaro que vinha despencando no final de 2021, reverteu a tendência ao se abster de polemizar sobre a pandemia e desencadear uma série de iniciativas governamentais populares.

Geralmente, cada eleição tem um vetor claro de continuidade ou mudança. O momento brasileiro não é nada confortável. A instabilidade é grande; as desigualdades aumentaram na pandemia; a inflação, os juros e o desemprego são altos; as principais políticas públicas estão à deriva e a avaliação do governo é negativa. Tudo indicaria um cenário tranquilo para a vitória das oposições. No entanto, Bolsonaro tem se mostrado resiliente e eclipsado os temas centrais com uma permanente cruzada ideológica contra um impensável “fantasma do comunismo”.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

A frente ‘ampla’ que só tem o PT

O Estado de S. Paulo

O mundo político não caiu no engodo petista da tal frente ampla pela democracia. Não é ampla nem democrática. É apenas Lula sendo Lula, com sua pretensão de hegemonia

Segundo o conto lulopetista, Lula da Silva estaria liderando uma formidável “frente ampla” da sociedade brasileira a favor da democracia e contra o autoritarismo de Jair Bolsonaro. A realidade, no entanto, é bem diferente. Chega a ser embaraçosa. Apesar de seu pré-candidato à Presidência da República aparecer na frente nas pesquisas de intenção de voto, o PT tem fracassado, até aqui, na empreitada de convencer outras legendas a aderir ao seu projeto eleitoral. Até o momento, o partido de Lula obteve apenas os apoios de sempre: PCdoB, PV e PSB.

O panorama não muda muito quando se olham não os partidos, mas os políticos. Até agora, Lula conseguiu atrair Geraldo Alckmin. Longe de representar uma tendência, o apoio do ex-governador de São Paulo tem o tom de “exceção que confirma a regra”. A adesão do ex-tucano é um bom termômetro do entusiasmo com que foi recebida a tal frente ampla do PT a favor da democracia. Quais lideranças e setores que embarcaram no engodo petista? Por ora, apenas Alckmin. 

À primeira vista, o fenômeno pode suscitar perplexidade: o líder nas pesquisas de intenção de voto não consegue obter apoio de outros partidos. E, a agravar o caráter paradoxal da situação, essa resistência das legendas ocorre num cenário político-partidário marcado pelo oportunismo, sem especiais pudores de caráter ideológico ou programático. A princípio, era de esperar, portanto, que muitos partidos tivessem total interesse em aliar-se ao PT.