domingo, 21 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Indicadores melhoram, mas violência segue alta

O Globo

Apesar de queda nas mortes violentas nos últimos anos, Brasil ainda é um dos países onde mais se mata

A principal notícia trazida no panorama da violência no Brasil em 2023, traçado pelo 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é positiva: a queda de 3,4% na taxa de mortes violentas (de 23,6 para 22,8 por 100 mil habitantes). É verdade que ainda é pouco diante da angústia que aflige os cidadãos, mas o levantamento mostra que a queda no indicador é consistente desde 2017, quando os números bateram recorde, com 64.079 ocorrências (30,8 por 100 mil habitantes). As 46.328 mortes do ano passado representam redução de 28% no período. Houve queda na maior parte do país.

Mas os números são altos demais. Por hora, cinco brasileiros perdem a vida em homicídios, latrocínios, lesões corporais letais, feminicídios ou ações policiais. A taxa brasileira é 18,8% superior à média de América Latina e Caribe (19,2 por 100 mil) e quase o quádruplo da média mundial (5,8 por 100 mil). O Brasil figura como 18º país mais violento do mundo, segundo dados do escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Com apenas 3% da população mundial, concentra 10% dos homicídios.

Murillo de Aragão - A agenda 2024

Revista Veja

Calendário político e econômico revela um cenário desafiador

A agenda política do segundo semestre revela desafios de grandes proporções para o governo. São temas eleitorais, fiscais e econômicos com amplas repercussões para as expectativas do país. No campo eleitoral, a batalha das disputas municipais será uma prévia das eleições gerais de 2026. Os partidos que se saírem bem terão amplas possibilidades de consolidar grandes bancadas no Congresso na próxima legislatura.

Outro fato relevante é que as eleições municipais de Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte são extremamente importantes tanto para o lulismo quanto para o bolsonarismo. Lula tem dado especial atenção à disputa nessas capitais. No Congresso, a corrida pela presidência da Câmara dos Deputados deverá ter novos contornos com a possibilidade do anúncio do candidato de Arthur Lira no início do semestre. No Senado, o favoritismo de Davi Alcolumbre parece consolidado pelo fato de ter apoio do atual presidente, Rodrigo Pacheco, e também do presidente Lula.

Merval Pereira - O medo das urnas

O Globo

É compreensível que o governo brasileiro, qualquer governo que se guia pelas regras internacionais, precise manter sua liderança na América do Sul, mas para tal não é preciso assumir as vergonhosas ações das ditaduras

Mesmo que Maduro não fosse seu candidato preferido, o presidente Lula estaria agora mais empenhado do que nunca na sua vitória, para não ter que enfrentar o dilema de quem se mete a apoiar ditadores: evitar o “banho de sangue” prometido pelo ditador venezuelano em caso de derrota. Caso ela venha, o que não parece impossível a esta altura, o presidente brasileiro, que se diz um democrata, terá que intervir para que a Venezuela não se torne uma ditadura escancarada.

Não que Lula não apoie ditaduras, como mostra seu comportamento com Cuba, ou Nicarágua. Esses três exemplos, aliás, são de países que fizeram revoluções de esquerda para afastar governos autoritários de direita, presumidamente para defender o povo explorado. No que foram apoiados entusiasticamente em determinado momento histórico. Agora são eles os ditadores de esquerda que exploram o mesmo povo. De heróis passaram a vilões, e colocam governos como o de Lula em uma enrascada: como dizer-se um democrata quando os amigos se tornam ditadores?

Elio Gaspari - Godoy esmiúça o segredo do PCB

Livro traça um grande painel da história do Partido Comunista Brasileiro, com seu chefe, Luís Carlos Prestes, ilustrado por um verdadeiro romance policial

Está chegando às livrarias “Cachorros”, do repórter Marcelo Godoy. É um grande painel da história do Partido Comunista Brasileiro, com seu chefe, Luís Carlos Prestes, ilustrado por um verdadeiro romance policial: a dupla militância de Severino Theodoro de Mello, o Pacato ou Melinho, morto em maio passado, aos 105 anos. Era um cabo do Exército quando participou do levante comunista de 1935. Cuidou do aparelho onde vivia Prestes, morou na União Soviética e tornou-se um dirigente do PCB; era um contato de agentes soviéticos no Rio. Essa vida começou a mudar no dia 10 de maio de 1966, quando ele caminhava por Copacabana e foi abordado por um agente do Serviço Nacional de Informações, o SNI. (Ele era o quarto dirigente contactado pelo serviço brasileiro, ou americano. A clandestinidade do PCB era uma fantasia.)

Luiz Carlos Azedo - Cachorros, o “cerco e aniquilamento” da cúpula do PCB

Correio Braziliense

Severino Theodoro de Mello, o Pacato, militante histórico do PCB, era “Vinícius”, um super espião da inteligência militar nos anos de chumbo

O novo livro de Marcelo Godoy, “Cachorros” (Alameda), já à venda na internet, remove velhos esqueletos dos porões do regime militar e sua infiltração nas organizações de esquerda, sobretudo a cooptação de um dirigente histórico do antigo PCB, Severino Theodoro de Mello.

O novo livro de Marcelo Godoy, “Cachorros” (Alameda), já à venda na internet, remove velhos esqueletos dos porões do regime militar e sua infiltração nas organizações de esquerda, sobretudo a cooptação de um dirigente histórico do antigo PCB, Severino Theodoro de Mello.

Mello contribuiu para sequestros, mortes, prisões e desaparecimentos que ajudaram a neutralizar o PCB nos anos 1970. Com a publicação do livro “A Casa da Vovó: uma biografia do DOI-Codi, relatos inéditos de policiais e militares que atuaram nos centros de torturas e assassinatos do regime”, ganhador dos prêmios Jabuti (não ficção) e melhor Ensaio Social da Biblioteca Nacional, questionamentos de dirigentes oriundos do antigo PCB sobre esses depoimentos, que classificam os infiltrados como “cachorros”, desafiaram Godoy a aprofundar suas investigações, sobretudo sobre o veterano dirigentes do PCB.

Dorrit Harazim - O predestinado

O Globo

Ele portava na orelha direita o curativo branco, sua condecoração de herói do destino e quase mártir

A coreografia levou a assinatura do comunicador de massas intuitivo. Donald Trump sempre exerceu controle detalhista da própria imagem e, muito antes de entrar na política, aprendeu a dominar recursos imagéticos de impacto. Não foi diferente na última noite da Convenção Nacional do Partido Republicano, quando fez seu aguardado discurso de candidato oficial. Mandou escurecer as luzes na arena Fiserv Forum de Milwaukee e emergiu no palco a passos lentos, entre colunas de neon que projetavam cinco letras monumentais: T, R, U, M, P.

Portava na orelha direita o curativo branco, sua condecoração de herói do destino e quase mártir. Cinco dias antes, por um átimo, o candidato quase foi morto com um tiro de AR-15 na cabeça perante uma multidão de apoiadores. O atentado que estarreceu os Estados Unidos e o resto do mundo fez dele um candidato a predestinado.

Bernardo Mello Franco – A mágica de Trump

O Globo

Tentativa de assassinato deu a republicano chance de estrear no papel de vítima

Ele conquistou a fama com pancadas, caretas e cambalhotas. Nos anos 80, Terry Bollea se projetou com um bigode gaulês e o nome de guerra de Hulk Hogan. Virou estrela do telecatch, misto de circo com luta livre que movimenta milhões de dólares nos Estados Unidos.

Na quinta-feira, o fortão trocou o ringue pelo palanque. Foi escalado para discursar no encerramento da convenção do Partido Republicano, em Milwaukee. “Deram um tiro no meu herói”, disse Hogan, hoje um marombado septuagenário. Repetindo o número que o consagrou, ele fez cara de mau e rasgou a camiseta que lhe encobria os músculos. Por baixo do pano, revelou-se outra camisa — esta com a logomarca da campanha de Donald Trump.

Lourival Sant’Anna - A chave democrata

O Estado de S. Paulo

Democratas buscam alguém capaz de transmitir a vitalidade que Biden já não tem

A eleição americana está nas mãos dos democratas. A convenção republicana provou que a tentativa de assassinato não tornou Donald Trump menos tóxico. A compulsão por mentir e incitar o ódio segue intacta. Só Joe Biden se equipara a Trump em rejeição. Sua saída da disputa daria chance aos democratas de manter o poder.

Biden já chegou a essa conclusão. Sua desistência depende de encontrarem alguém capaz de derrotar Trump e ajudar os democratas a conquistar maioria no Congresso. Não faltam nomes. Kamala Harris é a candidata mais forte. Sua posição de vice simplificaria a troca, facilitando a transferência de doações de campanha e dos votos das primárias. Em pesquisa da CNN, ela reuniu 45% das intenções de votos, encostada em Trump, com 47%. Já Biden perderia por 43% a 49%.

Trump, Vance e o futuro dos EUA

The Economist /O Estado de S. Paulo

Republicanos saem da convenção em Milwaukee mais fortes do que parecia possível

Se vencer, Trump será mais velho do que Biden quando deixar o cargo – daí a importância de Vance

Os EUA passaram por uma daquelas semanas que parecem décadas, como dizia Lenin. Se Thomas Matthew Crooks tivesse disparado um centímetro para a direita, se Donald Trump não tivesse virado a cabeça, agora ele estaria morto. Felizmente, Trump não foi seriamente ferido. E a sorte o abençoou de outras formas também.

Na Flórida, uma juíza dispensou o caso mais forte contra ele, e seu oponente enfraquecido, Joe Biden, permanece na corrida, embora mais democratas estejam o incentivando a desistir. Na convenção republicana, em Milwaukee, esta semana, a presença de Trump foi recebida como um sinal de providência divina.

Delegados usavam bonés de beisebol com a mensagem “45/47 neles (uma alusão ao 45.º presidente americano, que foi Trump, e ao 47.º, que pode ser Trump). Isso costumava ser uma aspiração; hoje parece uma previsão.

Vinicius Torres Freire – As promessas econômicas de Trump 2

Folha de S. Paulo

Apesar do desastre da campanha de Biden e do atentado, eleição nos EUA é muito incerta

É ainda mais temerário fazer prognósticos sobre uma eleição em que um candidato quase foi assassinado e outro pode ser deposto.

Mas os últimos acontecimentos provocaram mais especulação sobre Donald Trump 2. Segundo pesquisa YouGov/CBS feita entre os dias 16 e 18 de julho, Trump tem 52% dos votos, Joe Biden, 47%. A margem de erro é de 2,7 pontos percentuais.

Dados o estado calamitoso da campanha de Biden, a hipótese de que o sangue de Trump inflaria sua votação e que faltam três meses e meio para a votação, não parece vantagem insuperável. De resto, o resultado da eleição muito depende de meia dúzia de estados que oscilam entre democratas e republicanos, onde a disputa está apertada.

Hélio Schwartsman - América iliberal

Folha de S. Paulo

Livro mostra que, na história dos EUA, movimentos autoritários convivem com tradições liberais

Uma das grandes narrativas de nosso tempo assevera que os EUA, fiéis a suas tradições liberais, não apenas se converteram numa das primeiras democracias do mundo como ajudaram a espalhar esse regime pelo planeta. Tal enunciado, embora tenha algo de verdade, esconde problemas, como toda grande narrativa. Na vida real, as coisas tendem a ser mais complexas e nuançadas, quando não contraditórias.

Muniz Sodré - Política de vexame

Folha de S. Paulo

O ato grotesco escatológico, que o argentino fingiu entender o significado, ainda foi acolhido por governadores de estado

Ainda circula nas redes a cena em que Bolsonaro entrega a Milei sua medalha de "imorrível, imbrochável e incomível", com um dos filhos tentando traduzir os termos para o espanhol. Pode-se perguntar por que reportar uma baixaria dessas, quando a memória coletiva já está saturada dos episódios repugnantes a cargo de ambos. Mas o ato recente ocorre num quadro de estresse de variáveis essenciais da vida política, levado além do que seria normal chamar de zona crítica, e pelo visto peça de uma estratégia.

Bruno Boghossian - Normalizar não é preciso

Folha de S. Paulo

Manter ideias radicais fora do cardápio político é uma maneira de respaldar as instituições que fazem a contenção de abusos

Se os franceses tivessem acordado no dia 1º de julho convencidos de que a ultradireita representava uma alternativa normal na política do país, a Reunião Nacional estaria hoje no poder. No segundo turno da disputa, a maior parte daqueles atores decidiu que a turma de Marine Le Pen não deveria governar a França.

O problema da "normalização da ultradireita" começa e termina no desejo do eleitor, mas é também uma questão de debate público e de organização política. Quando a população de um país identifica uma plataforma radical como melhor opção de governo, a escolha está feita. Ela não deixa de ser radical nem passa a ser admitida com menos resistência.

Celso Rocha de Barros - O tiro e a facada

Folha de S. Paulo

Republicano sai do atentado com ferimentos menos graves que os de brasileiro e não deve esperar por bônus semelhante

O tiro de Thomas Crooks vai ajudar a eleger Donald Trump como a facada de Adélio Bispo ajudou a eleger Jair Bolsonaro?

É difícil dizer. Na verdade, até hoje não sabemos bem qual foi o efeito da facada sobre a campanha eleitoral de 2018. A maioria dos analistas acha que o atentado ajudou Bolsonaro, eu também acho. Mas como?

Uma primeira hipótese, levantada nos primeiros dias após o atentado de 2018, apostava que a comoção em torno do atentado faria Bolsonaro subir rapidamente nas pesquisas. Alguns achavam que algo semelhante havia acontecido com a campanha de Marina Silva em 2014, lançada logo após a morte de Eduardo Campos em um acidente aéreo.

Não foi bem assim: Bolsonaro subiu nas pesquisas depois da facada, mas gradualmente. Se houve um "bônus de solidariedade" eleitoral, ele cresceu conforme o candidato era mostrado no hospital, com sua família, todos os dias, correndo risco de vida.

Pablo Spinelli - 1974: a derrota vitoriosa

Voto Positivo

O ano de 1974 é deveras importante para a análise e a ação da política no tempo presente. Dez anos antes se instaurou no país aquilo que a academia há cerca de duas décadas intitulou de Ditadura Militar-Civil. O termo civil é exposto para lembrar a adesão do empresariado, de políticos, de setores eclesiásticos, da mídia escrita e falada, de grupos da heterogênea classe média, dentre outros, que transbordavam quantitativamente o número de militares quanto à proposta da derrubada do governo constitucional de João Goulart que foi substituído por generais em simulacros de eleições organizadas pelo Alto Comando das Forças Armadas.

Poesia | Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de Luís de Camões

 

Música | Hamilton de Holanda, Diogo Nogueira e Silvia Perez Cruz - "Dança da Solidão" (Paulinho da Viola)

 

sábado, 20 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Parlamentares usam emendas em favor de parentes candidatos

O Globo

Antecipação permitiu driblar regra em ano eleitoral. Laço familiar é exaltado em palanques sem constrangimento

As eleições municipais têm funcionado como estímulo para deputados destinarem emendas parlamentares a prefeituras de parentes. Depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucionais as emendas identificadas pela sigla RP9, ou “emendas do relator”, os congressistas passaram a usar as RP8, ou “emendas de comissão”, para alocar recursos a seus projetos particulares.

Até a semana passada, o governo federal programara pagar R$ 9,1 bilhões em emendas de comissão, garantindo o envio do dinheiro depois de esgotado o prazo determinado pela Justiça Eleitoral para essas transferências, o início de junho. Com a garantia dos recursos, as prefeituras e seus padrinhos poderão erguer palanques, anunciar e iniciar obras a tempo de conquistar votos para prefeito e vereador.

Carlos Alberto Sardenberg - O risco de complicar

O Globo

O texto básico, já aprovado, é bastante bom. Mas os detalhes podem pôr muito a perder

Há pelo menos duas décadas, a reforma tributária está na pauta política e econômica. Pode-se entender isso como perda de tempo, a versão pessimista. Faz sentido. Os temas se repetiram demasiadamente. Parecia impossível chegar a uma decisão, a um projeto abrangente de reforma. Até surgiram alguns, mas não pegaram embalo. Mas há também uma versão mais esperançosa. Foi o tempo necessário para decantar as propostas e chegar a um entendimento sobre as bases da reforma.

Fiquemos com essa última linha, pois o Congresso Nacional acaba de aprovar uma abrangente reforma dos impostos sobre o consumo. Caminhamos, portanto, para uma mudança por acumulação, não por ruptura. Mesmo porque, depois de tudo aprovado, será implantada ao longo de dez anos. Mais ainda: o texto básico é exatamente do que o Brasil precisa. Simplifica o sistema, facilitando a vida das empresas, torna-o mais eficiente e justo.

Pablo Ortellado - ‘Hashtags’ mostram riscos à democracia

O Globo

Na esquerda, a teoria conspiratória dominante sustenta que o atentado a Trump foi encenado

A democracia americana balançou no último sábado quando um atirador disparou contra a cabeça de Donald Trump durante um comício, gerando uma tempestade de teorias conspiratórias e ameaças de mais violência. Duas hashtags rapidamente se tornaram os assuntos mais comentados nas mídias sociais, destacando os riscos que um episódio de violência política como esse pode trazer num cenário de polarização crescente.

Poucos minutos depois dos disparos, a expressão staged (armado/encenado) já estava entre os tópicos mais discutidos no X. Postagem após postagem especulavam sobre que forças ocultas estariam por trás do atentado suspeito. A discussão girava em torno das falhas graves do serviço secreto e da polícia, que, supostamente alertados sobre a presença do atirador, demoraram a agir. Também foi considerada suspeita a rapidez com que Trump se recompôs e “posou” para a famosa foto produzida pela agência Reuters, em que aparece com o punho erguido, cercado por seguranças, sob uma bandeira americana tremulando.

Eduardo Affonso - Falso ou verdadeiro?

O Globo

O brasileiro está mais exposto aos vieses dos algoritmos, a ficar refém da própria bolha

Uma pesquisa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicada em junho, avaliou em 21 países a capacidade da população de identificar notícias falsas. Para surpresa de ninguém, o Brasil ficou em último lugar.

São vários os motivos para nossa constrangedora credulidade. Alguns, universais — como o viés de confirmação, que nos leva a acreditar no que mais nos convém (vide os “patriotas” identificando sinais de uma iminente operação de “garantia da lei e da ordem”, que lhes garantiria burlar a lei e institucionalizar a desordem). Outros, ligados ao estágio de qualquer país eternamente “em desenvolvimento” — como o baixo nível de alfabetização digital, que nos deixa acríticos (vide a quantidade de gente que ainda cai em golpes na internet). Há também a desinformação sistêmica — uma força-tarefa trabalhando em tempo integral para desintegrar nossos detectores de mentiras.

Dora Kramer - A arte da zoeira

Folha de S. Paulo

Criativo na era analógica, na digital PT foi pego no contrapé do novo tempo

Na era analógica, o PT era eficiente no embate. Naqueles idos do final do século passado, era também bom de festa, de (algum) humor e criatividade. Com esses atributos, tanto fez oposição que conseguiu, e segue conseguindo, ser situação.

Nesse lugar de poder pela quinta vez e na era digital, o partido parece ter sido pego de jeito no contrapé do novo tempo. Perde de lavada num ambiente dominado pela direita. Não consegue pautar as provocações nem reagir a elas de modo eficaz.

Leva o tranco e, quando (raramente) se anima a dar o troco, o faz em moeda de menor valor.

Hélio Schwartsman - Física do crime

Folha de S. Paulo

Números do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública esmiúçam os padrões da violência no país e oferecem possibilidades de intervenção

Se a física com suas fórmulas e números longos parece uma coisa complicada, as ciências sociais são muito mais. É que o reducionismo, isto é, a possibilidade de quebrar um fenômeno complexo em elementos mais simples para entendê-lo, funciona melhor nas ciências exatas do que nas que envolvem seres humanos. Átomos são comportamentalmente mais consistentes do que pessoas.

A dificuldade não é motivo para desistir. Mesmo em fenômenos multifatoriais complexos como a criminalidade é possível identificar tendências e encontrar oportunidades de intervenção.

Alvaro Costa e Silva - O medo dá voto

Folha de S. Paulo

Bancada da bala já dispara contra PEC de Lewandowski

Ricardo Lewandowski disse o óbvio: o atentado contra Trump mostra as consequências negativas de armar a população. A bancada da bala, no entanto, não está nem aí para o ministro da Justiça. Ainda comemora a exclusão de armas de fogo do imposto do pecado, que encarece refrigerantes, mas nada cobra de pistolas.

Uma espécie de incentivo fiscal para os bandidos que se abastecem na compra e venda de material desviado não só de colecionadores, atiradores esportivos e caçadores como de polícias e empresas de segurança.

Demétrio Magnoli -Pedrinho gritou 'lobo'!

Folha de S. Paulo

O analista concentra-se nas nuances; o pregador, na caricatura que lhe serve

"Não rir, nem lamentar, nem odiar, mas compreender". A prescrição de Spinoza, que serviu como guia para os intelectuais públicos, saiu da moda. Na era das redes sociais, os intelectuais públicos desistiram de decifrar os fenômenos políticos, dedicando-se à tarefa banal de exprimir indignação moral perante suas bolhas ideológicas. De analistas, tornaram-se pregadores. Daí, o pequeno escândalo provocado por meus comentários, aqui e na GloboNews, sobre a ascensão da Reunião Nacional (RN) francesa.

Num passado menos envenenado, rótulos políticos serviam para descrever fenômenos dinâmicos. A atual RN, de Le Pen, emanou de um longo processo de revisões históricas e dramáticas cisões internas que ainda não se concluiu. Nessa trajetória, renunciou às suas raízes, fincadas na França de Vichy, para aderir à narrativa gaullista da França da Resistência. A estratégia permitiu-lhe capturar a maior parte do eleitorado da centro-direita tradicional, relegando o velho partido gaullista a um gueto. A extrema direita tornou-se direita nacionalista.

Fareed Zakaria - O cerco democrata ao presidente americano

O Estado de S. Paulo

Sem muitas alternativas, resta ao partido tentar convencer Biden a desistir da corrida presidencial

As primárias passaram o poder das líderes partidários para os ativistas do partido

Nos EUA, os partidos são conchas nas quais os empresários operam à vontade. Os democratas que mais ou menos revelaram que querem a saída de Joe Biden – um grupo que agora inclui Chuck Schumer, Nancy Pelosi e Hakeem Jeffries – não têm nenhum mecanismo formal para expulsá-lo. Tudo o que podem fazer é pressioná-lo nos bastidores, envergonhá-lo publicamente (como estão fazendo) e ameaçar deixá-lo sem dinheiro e sozinho.

Mas essas são apenas ameaças. Elas só funcionam se Biden acreditar nelas – acreditar que o partido se manterá firme contra ele, mesmo com a proximidade da eleição e o risco de outra presidência de Trump aumentar.

Carlos Andreazza - Arcabouço final: o finado exausto

O Estado de S. Paulo

Metas fiscais são meras fabulações do governo Lula. Mas a culpa, claro, é de quem lhe cobra - o maldito mercado, a mídia vendida - o cumprimento do contrato

O arcabouço fiscal – presunto difícil de carregar – foi criado pelo governo Lula. Idem a ficção-base do orçamento. As metas fiscais – inclusive as já adulteradas, vilipendiado o corpo natimorto – são fabulações do governo Lula. De modo que: o governo Lula terá inventado – faz parecer herança – um problema para si. Culpa, porém, de quem lhe cobra – o maldito mercado, a mídia vendida – o cumprimento do contratado.

“Você não é obrigado a estabelecer uma meta e cumpri-la, se você tiver coisas mais importantes para fazer” – disse o presidente; que tem, segundo Alexandre Padilha, “compromisso fiscal inegociável”.

Não mente o ministro. “Compromisso fiscal inegociável” pode ser com o incremento da arrecadação. Já não bastou.

Luiz Gonzaga Belluzzo - Entre Lincoln e Trump

CartaCapital

Apenas o Estado, fundado na lei, pode proteger a sociedade dos que visam impor o terror privado

O tiro que raspou a orelha de Donald Trump em um comício na Pensilvânia foi tão somente mais um entre tantos que vitimaram presidentes e políticos americanos ao longo da história. Não vou aborrecer os leitores com a lista de mortos e sobreviventes.

Depois do tiroteio, o festival de manifestações espargido nas mídias despertou em minha memória o atentado perpetrado contra Abraham Lincoln, em 14 de abril de 1865. Lincoln iniciava seu segundo mandato presidencial e foi morto no teatro por um tiro na cabeça disparado pelo ator John Wilkes Booth.

Aldo Fornazieri - O erro da isenção da carne

CartaCapital

A medida produz dois grandes danos: aumenta as desigualdades sociais e contribui para o aquecimento global

Quem estudou ou estuda Maquiavel sabe que o bem e o mal são intercambiáveis. Muitas vezes aquilo que se apresenta como o bem produz o mal e outras vezes aquilo que parece uma crueldade é mais piedade do que algo apresentado como piedade. A ocorrência quase universal desse intercâmbio é praticamente diária nos acontecimentos políticos mundanos e nos negócios humanos.

Alguém minimamente informado sabe também que a principal causa formadora das desigualdades sociais no Brasil reside na estrutura tributária injusta e concentradora de renda. A regulamentação da reforma tributária deu mais um passo para reforçar e ampliar as causas da geração das desigualdades. Esse feito conseguiu unir quase todos os deputados, o governo e a oposição, Lula e os deputados do PL, o agronegócio e as esquerdas, e por aí vai. Trata-se da inclusão da isenção tributária da carne bovina e de outras proteínas animais em nome de garantir o acesso aos pobres. Essa suposta piedade aumenta a crueldade das desigualdades e beneficia os mais ricos e os grandes produtores de carne – o agronegócio, geralmente depredador.

Marcus Pestana - Como a questão fiscal mexe com a vida de todos nós?

O Brasil é um país emergente, relativamente pobre e bastante desigual. O papel da ação governamental é essencial para a melhoria da qualidade de vida da população, dadas as fragilidades existentes em nosso tecido social e econômico. A implantação das diversas políticas públicas exige um padrão de financiamento consistente e equilibrado. A crise ou o estrangulamento fiscal afetam todos nós: as crianças e jovens do ensino público, os usuários do SUS, as vítimas do crime organizado, os dependentes dos programas governamentais de transferência de renda. Sendo assim, a eficácia e a qualidade das políticas públicas dependem visceralmente da saúde financeira dos governos. Além disso, o desequilíbrio fiscal permanente interfere na vida de toda a sociedade pelas suas implicações na inflação, na taxa de juros, no ritmo do crescimento da economia e do emprego, na dívida pública e nas expectativas sobre o futuro.

Poesia | Nada é impossível de mudar, de Bertolt Brecht

 

Música | Mariana Aydar - Tuaregue e Nagô

 

sexta-feira, 19 de julho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Lula não pode mais fugir ao imperativo fiscal

O Globo

Mais uma vez ele foi ambíguo sobre o assunto — mas a realidade aritmética cobrará o preço de seu governo

O Brasil vive uma crise fiscal aguda e, se as medidas necessárias não forem tomadas a tempo, terá de enfrentar um cenário duplamente catastrófico: estagnação no crescimento e alta na inflação. A tarefa inescapável para fugir desse prognóstico é ajustar as contas públicas. Enquanto o governo gastar mais do que arrecada, não haverá conserto. Levando em conta o pagamento de juros da dívida, o buraco supera 6% do PIB. Sem os juros, está ao redor de 1%. Mantida a situação atual, a dívida como proporção do PIB crescerá em todos os anos do atual governo, mesmo que a economia registre expansão anual entre 2% e 2,5%. É real o risco de Luiz Inácio Lula da Silva terminar seu terceiro mandato presidencial com a dívida bruta em 82% do PIB, 10 pontos percentuais acima do patamar de 2022.

José de Souza Martins - Incoerência na política

Valor Econômico

A sociedade é relacional e há nela uma significativa dimensão invisível e silenciosa, base da consciência social. O que parece fragmentado e separado - religião, política, economia - está a ela unido

Em 24 de janeiro de 2022, no “cercadinho” do Palácio da Alvorada, Hadassa Gomes, de 19 anos, de Sorocaba, perguntou ao então presidente Jair Bolsonaro: “Presidente, posso falar um verso bíblico para o senhor?”. Tornara-se comum a ida de evangélicos ao cercado para orar com ele ou ler para ele um trecho da Bíblia.

“É aquele verso que você gosta muito e eu também. É um dos meus favoritos: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’. E a verdade é Jesus, a verdade é a justiça, a verdade é a honestidade. E sabendo disso, dá para considerar que o senhor é uma farsa, presidente, por um acaso.”

O diálogo que se seguiu demonstrou as referências limitadas de interlocução do presidente. “Você veio aqui para falar isso?” “Sim”, respondeu ela: “Aquele que crê na Bíblia também questiona”. Ao que ele retrucou: “Você usa a palavra de Deus para chegar a mim e vem com essa mentira?”. E Hadassa esclarece os fundamentos de seu direito de questioná-lo: “O senhor não é Deus presidente”. Alguém, do grupo do cercadinho, retruca: “É sim...”

Fernando Gabeira - Tributo à confusão

O Estado de S. Paulo

Um grande nível de caos existe não apenas no conjunto das leis tributárias, mas, principalmente, na cabeça das pessoas

A reforma tributária está sendo comemorada como um grande avanço. Os mais prudentes dizem que é uma reforma possível, longe da ideal.

Para mim, existem aspectos muito brasileiros em todo esse esforço. O que era destinado a superar a grande confusão tributária acabou resultando em algo muito confuso, apesar das melhoras. O que nos leva a suspeitar que um grande nível de caos existe não apenas no conjunto das leis, mas, principalmente, na cabeça das pessoas.

A primeira constatação aparece na maneira como querem simultaneamente uma ampla isenção e uma tarifa baixa. É evidente que, quanto maior o número de produtos excluídos da cobrança, isso vai refletir nos outros.

A solução mágica foi determinar uma tarifa máxima, de 26,5%. Uma vez determinado esse patamar, era possível incluir entre os isentos, por exemplo, a carne, inclusive os tipos mais caros, consumidos por pessoas de alta renda.

Andrea Jubé - O balanço das horas na sucessão da Câmara

Valor Econômico

Se no calendário faltam seis meses para a eleição do sucessor de Arthur Lira na presidência da Câmara, na prática essa conta reduz-se a três por causa das eleições municipais

Na política, a aritmética não é exata. Não raro, o placar do plenário subtrai os votos contabilizados nas planilhas dos líderes, e, nas eleições para as Mesas Diretoras, os votos até se multiplicam. Quem não se lembra da eleição para presidente do Senado em 2019, quando surgiram 82 votos na urna de apenas 81 senadores?

Nessa toada, na tabuada da política, seis podem ser três. Se no calendário faltam seis meses para a eleição do sucessor de Arthur Lira na presidência da Câmara dos Deputados, na prática essa conta reduz-se a três por causa das eleições municipais. Uma arritmia temporal que esfria mais rápido o café do chefe do Legislativo.

Luiz Carlos Azedo - Estupros, a cultura que nasce dentro de casa

Correio Braziliense

A ideia de que mulher que se dá ao respeito não é estuprada é falsa, machista e misógina, porém, sedimentada

Um dos aspectos mais perversos e desumanos da polarização política e ideológica que desagrega o tecido social brasileiro é a cultura da violência, que está se tornando hegemônica na sociedade, a partir de alguns conceitos que se apropriam do senso comum, porém, fogem completamente ao bom senso. Nunca houve tanta gente armada no Brasil nem um sentimento tão amplo a favor de que isso ocorra, mas os indicadores de violência mostram que a outra face da justiça pelas próprias mãos, da suposta autodefesa e do prendo e arrebento é o aumento da violência doméstica, principalmente contra crianças, que é fruto de uma situação de opressão no âmbito familiar.

Bernardo Mello Franco - O país do 171

O Globo

Quadrilhas se modernizam, e golpes à distância ultrapassam roubos nos números do crime

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública informa: sai o roubo à mão armada, entra o golpe pelo celular. Em 2023, as polícias registraram quase 2 milhões de estelionatos. O dado mostra que o país virou um paraíso para criminosos especializados no trambique à distância.

De acordo com o relatório divulgado ontem, houve queda expressiva nos roubos a pedestres (-13,8%), lojas (-18,8%) e bancos (-29,3%) na comparação com 2022. No mesmo período, os estelionatos subiram 8,2%, sendo 13,6% na versão eletrônica.

Flávia Oliveira - Desaparecidos para sempre

O Globo

Chama a atenção que os casos cresçam simultaneamente à redução nos casos de letalidade violenta

Quando o presidente Lula assinou o decreto de reinstalação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, no início de julho, emergiu como prioridade na retomada dos trabalhos o cemitério clandestino conhecido como Vala de Perus. Na área, dentro do Cemitério Dom Bosco, Zona Oeste da capital paulista, foram encontrados, em 1990, 1.049 sacos com ossos humanos, resultado de uma reportagem iniciada dois anos antes por Caco Barcellos, da TV Globo. O jornalista investigava homicídios praticados por PMs, que resultaram no best-seller “Rota 66: a história da polícia que mata”. Encontrou laudos sobre corpos enviados ao IML pelo Dops, a polícia política do regime, com a letra “T”, de terrorista, escrita em vermelho. Partiu daí a confirmação de denúncias feitas, desde os anos 1970, por familiares de vítimas da ditadura militar.

Rogério Furquim Werneck - Haddad e Lula

O Globo

Os intrincados jogos simultâneos do ministro da Fazenda com o Planalto e o mercado

Para avaliar as possibilidades da política econômica, é preciso ter em mente a real natureza da relação de Fernando Haddad com Lula da Silva. E, para isso, é útil ter em perspectiva o leque variado de relações distintas que ministros da Fazenda estabeleceram com presidentes da República ao longo dos últimos 30 anos.

Tirando bom proveito das rememorações do Plano Real, vale a pena ter em conta, por exemplo, que, em mais de uma ocasião, entre maio de 1993 e março de 1994, FHC se viu obrigado a deixar claro ao presidente Itamar Franco que se demitiria do cargo de ministro da Fazenda, caso o plano de estabilização viesse a ser comprometido por interferências impensadas.

Salta aos olhos que a relação de Haddad com Lula é de natureza completamente distinta. A ninguém ocorre que o atual ministro da Fazenda possa vir a confrontar o presidente com uma ameaça de demissão desse tipo. Lula bem sabe que Haddad jamais faria algo parecido.