O Globo
A negociação terá de ser entre ministros e secretários, porque Trump não abandonará a parte política
O que o ex-presidente Jair Bolsonaro sonhava
fazer, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, está fazendo, sem
contestação relevante. Impressionante como são parecidos na ânsia de destruir
as bases institucionais estabelecidas nos anos pós-Segunda Guerra como linha
mestra da maneira ocidental de ver o mundo. A paranoia de que o comunismo
espreita o Ocidente, se infiltra nos meios estudantis, intelectuais, artísticos
e científicos é a mesma. Daí a necessidade de desmontar a estrutura
estabelecida e recomeçar do zero, ou até não recomeçar.
Nos Estados Unidos, os setores de pesquisa e tecnologia sofrem grande abalos e cortes de gastos, assim como a educação, destruindo fatores importantes para o avanço da produtividade da economia americana. A imprensa, como sempre acontece em governos autoritários, tem de enfrentar os arreganhos dos presidentes — como foi Bolsonaro durante seu “reinado”, e como hoje é Trump.
Aqui, o autoritário de plantão encontrou
resistência tenaz da Justiça; lá, também as Cortes regionais enfrentam os
avanços do governo Trump. A proposta de alterar a divisão territorial no Texas,
que mudaria a configuração dos votos distritais garantindo a prevalência do
Partido Republicano, é um abuso de poder inimaginável numa democracia. No
terceiro episódio da segunda temporada do seriado “House of cards”, o líder
democrata do Senado apresenta uma moção. Ela é aprovada pelos senadores
presentes, e o vice-presidente Frank Underwood, em sua função de presidente do
Senado, instrui o sargento de armas a obrigar a presença dos senadores
ausentes. Vários senadores republicanos ausentes, incluindo o líder da maioria
no Senado, Hector Mendoza, são presos e levados para o Senado pela Polícia do
Capitólio para que haja quórum. Pois, na vida real, o governador do Texas
cogita mandar prender deputados democratas que saíram do estado para não dar
quórum à votação.
Lula tem razão quando diz não poder falar
tudo o que pensa numa conversa com Trump. Anuncia, porém, num arroubo infantil,
que seu governo será mais esquerdista e mais socialista diante dos
acontecimentos. Se Trump tiver bom senso e levar a conversa apenas para o lado
comercial, há boa possibilidade de acordo. Mas é difícil imaginar Trump com bom
senso e pensar que ele abra mão da pressão sobre o governo brasileiro por causa
de Bolsonaro. A negociação terá de ser entre ministros e secretários, porque
Trump não abandonará a parte política.
Ele faz o que quer nos Estados Unidos, e
ninguém reclama, ou reclama pouco. A demissão da diretora do departamento de
estatísticas que divulgou dados ruins para a criação de empregos é
inacreditável. Aqui seria um escândalo, mas lá nada acontece. Há economistas já
dizendo que essa política de Trump pode, por um lado, melhorar a capacidade de
investimento em inteligência artificial e dar mais produtividade à economia
americana. Mas isso, num primeiro momento, tira empregos. Ele ganhou a eleição
prometendo levar os empregos de volta, e isso não acontecerá.
Tarifaço x inflação
Na terça-feira, escrevi que “embora as
pesquisas de opinião mostrem que, num primeiro momento, Lula não se beneficiou
desse movimento (o apoio dos bolsonaristas ao tarifaço contra o Brasil), ou se
beneficiou pouco, será difícil manter tal postura quando a inflação se
apresentar como consequência da taxação exorbitante dos americanos, e a
economia brasileira sofrer um baque”. Melhor teria sido escrever “se a
inflação”, pois a maioria dos economistas considera que a inflação pode ser até
beneficiada pela queda de preços de alguns produtos que, na impossibilidade de
ser exportados, serão ofertados no mercado interno.
Lendo a ata do Copom, porém, vê-se que o
efeito interno da taxação do governo Trump não deve ser desprezado. Diz ela a
certa altura: “A elevação por parte dos Estados Unidos das tarifas comerciais para
o Brasil tem impactos setoriais relevantes e impactos agregados ainda incertos
a depender de como se encaminharão os próximos passos da negociação e da
percepção de risco inerente ao processo”. O Copom diz ainda que terá como foco
os reflexos do cenário externo sobre a inflação doméstica à frente.
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