Valor
Econômico
A
ampliação dos déficits comerciais americanos que atormentam Trump teve como
contrapartida a rápida acumulação de reservas na China superavitária
As idiossincráticas trumpadas de
Trump mereceriam a explicitação das forças socioeconômicas que se movimentam
nos subterrâneos das vidas de mulheres e homens.
Keynes, o John Maynard, dedicou-se à compreensão das relações complexas entre Estrutura e Ação, entre os papéis sociais e sua execução pelos indivíduos engalanados nos ouropéis da liberdade e racionalidade, mas, de fato, enredados nas forças sistêmicas. Keynes, na esteira de Freud, introduziu as configurações subjetivas produzidas pelas interações entre as formas sociais e seus indivíduos, inexoravelmente submetidos aos objetivos de acumulação de riqueza monetária.
Não seria impróprio afirmar que o
poder americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no
movimento de suas estruturas, a economia global iludiu as conjecturas binárias
que pretendem afastar a Economia da Política. O exercício do poder americano
desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que
culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.
Entre tantos desesperos, Trump acusou os Brics de organizarem uma
conspiração contra o poder do dólar. Não por acaso, um dos temas do momento é a
reforma da arquitetura financeira internacional, ou coisa assemelhada. São cada
vez mais frequentes os rumores sobre a possibilidade de abandono progressivo do
dólar em favor de outras moedas no faturamento das transações internacionais e
na denominação de contratos.
O futuro chegou ao passado:
Keynes, delegado da Inglaterra em Bretton Woods, propôs a Clearing Union, uma
espécie de banco central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma
moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os
bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais,
que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de
câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países
corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais
(em bancor) junto à Clearing Union.
O plano apresentado por Keynes em
Bretton Woods buscava uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos
desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários.
Isto significava, na verdade - dentro das condicionalidades estabelecidas -
facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países
superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários
e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais,
que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova
ordem econômica mundial”.
O arranjo monetário adotado em
Bretton Woods afirmou a supremacia do dólar. Essa supremacia sobreviveu ao
gesto de Richard Nixon em 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à
posterior flutuação das moedas em 1973. A continuada desvalorização do dólar,
ao longo dos anos 70, suscitou a elevação brutal do juro básico americano em
1979. Esse gesto de poder derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os
europeus na “desinflação competitiva” e culminou na crise japonesa deflagrada
no crepúsculo dos anos 80. A valorização da moeda americana suscitou o Acordo
do Louvre, que empurrou goela abaixo do Japão a valorização do iene, a famosa
endaka.
Sob pressão de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira.
Saboreou inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado
de ações. A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações
despencaram e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos
irrecuperáveis.
Redistribuição
espacial da indústria ampliou desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre
EUA, Ásia e Europa
Retornemos
às relações entre Estrutura e Ação: a supervalorização da moeda americana que
danou as economias devedoras, como o Brasil, também moveu o investimento direto
das corporações industriais americanas para a China e Ásia emergente.
Hoje, a “competitividade” chinesa
é crescente tanto nos mercados menos qualificados quanto, em ritmo acelerado,
nos de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande receptor do
investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo, ganhou
participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos EUA e
Europa.
A redistribuição espacial da
indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos
entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu o avanço da chamada
globalização financeira. A ampliação dos déficits comerciais americanos que atormentam
Trump teve como contrapartida a rápida acumulação de reservas na China
superavitária. Nos anos 90, as reservas chinesas abasteceram vigorosamente o
mercado de títulos emitidos pelo Tesouro americano.
Há bens que vêm para o mal. A
acumulação de reservas chinesas lastreadas nos Treasuries foi simultânea à
espantosa expansão do crédito nos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra
coisa é a mesma coisa. Nessa toada, a espantosa evolução do consumo das
famílias de Tio Sam instigou a bolha financeira que explodiu na crise de 2008.
A virtude da temperança chinesa incitou os destemperos da finança que levaram à
crise de 2008.
Não por acaso, correm à solta as
propostas de reforma das relações monetário-financeiras internacionais. Quase
todas elas contemplam a redução do papel do dólar como moeda-reserva e
recomendam sua substituição progressiva por um sistema plurimonetário.
Há quem pretenda ressuscitar a proposta europeia apresentada em 1979, na
reunião do FMI em Belgrado: substituir o dólar por uma cesta de moedas, a
“conta de substituição”. Naquela reunião, a proposta foi rejeitada por Paul
Volcker, que reafirmou o poder da moeda americana, ao impor ao mundo uma
elevação sem precedentes da taxa de juro.
Despido da roupagem de
protagonista importante, o palmeirense que ora submete os leitores do Valor às suas mal
traçadas linhas estava na reunião de Belgrado. Ouvi pessoalmente as vozes dos
poderes que comandam a economia. “Ninguém vai contestar o Poder do Dólar”,
sapecou Volcker.
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