terça-feira, 5 de agosto de 2025

Reforma do sistema monetário global? - Luiz Gonzaga Belluzzo

Valor Econômico

A ampliação dos déficits comerciais americanos que atormentam Trump teve como contrapartida a rápida acumulação de reservas na China superavitária

As idiossincráticas trumpadas de Trump mereceriam a explicitação das forças socioeconômicas que se movimentam nos subterrâneos das vidas de mulheres e homens.

Keynes, o John Maynard, dedicou-se à compreensão das relações complexas entre Estrutura e Ação, entre os papéis sociais e sua execução pelos indivíduos engalanados nos ouropéis da liberdade e racionalidade, mas, de fato, enredados nas forças sistêmicas. Keynes, na esteira de Freud, introduziu as configurações subjetivas produzidas pelas interações entre as formas sociais e seus indivíduos, inexoravelmente submetidos aos objetivos de acumulação de riqueza monetária.

Não seria impróprio afirmar que o poder americano se debilitou no exercício de suas forças. Mais uma vez, no movimento de suas estruturas, a economia global iludiu as conjecturas binárias que pretendem afastar a Economia da Política. O exercício do poder americano desencadeou transformações financeiras, tecnológicas e geopolíticas que culminaram no enfraquecimento de sua hegemonia.

Entre tantos desesperos, Trump acusou os Brics de organizarem uma conspiração contra o poder do dólar. Não por acaso, um dos temas do momento é a reforma da arquitetura financeira internacional, ou coisa assemelhada. São cada vez mais frequentes os rumores sobre a possibilidade de abandono progressivo do dólar em favor de outras moedas no faturamento das transações internacionais e na denominação de contratos.

O futuro chegou ao passado: Keynes, delegado da Inglaterra em Bretton Woods, propôs a Clearing Union, uma espécie de banco central dos bancos centrais. A Clearing Union emitiria uma moeda bancária, o bancor, destinada exclusivamente a liquidar posições entre os bancos centrais. Os negócios privados seriam realizados nas moedas nacionais, que, por sua vez, estariam referidas ao bancor mediante um sistema de taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis. Os déficits e superávits dos países corresponderiam a reduções ou aumentos das contas dos bancos centrais nacionais (em bancor) junto à Clearing Union.

O plano apresentado por Keynes em Bretton Woods buscava uma distribuição mais equitativa do ajustamento dos desequilíbrios de balanço de pagamento entre deficitários e superavitários. Isto significava, na verdade - dentro das condicionalidades estabelecidas - facilitar o crédito aos países deficitários e penalizar os países superavitários. O propósito de Keynes era evitar os ajustamentos deflacionários e manter as economias na trajetória do pleno emprego. Ele imaginava, ademais, que o controle de capitais deveria ser “uma característica permanente da nova ordem econômica mundial”.

O arranjo monetário adotado em Bretton Woods afirmou a supremacia do dólar. Essa supremacia sobreviveu ao gesto de Richard Nixon em 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à posterior flutuação das moedas em 1973. A continuada desvalorização do dólar, ao longo dos anos 70, suscitou a elevação brutal do juro básico americano em 1979. Esse gesto de poder derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na “desinflação competitiva” e culminou na crise japonesa deflagrada no crepúsculo dos anos 80. A valorização da moeda americana suscitou o Acordo do Louvre, que empurrou goela abaixo do Japão a valorização do iene, a famosa endaka.

Sob pressão de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira. Saboreou inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado de ações. A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações despencaram e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos irrecuperáveis.

Redistribuição espacial da indústria ampliou desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre EUA, Ásia e Europa

Retornemos às relações entre Estrutura e Ação: a supervalorização da moeda americana que danou as economias devedoras, como o Brasil, também moveu o investimento direto das corporações industriais americanas para a China e Ásia emergente.

Hoje, a “competitividade” chinesa é crescente tanto nos mercados menos qualificados quanto, em ritmo acelerado, nos de tecnologia mais sofisticada. O país tornou-se grande receptor do investimento direto americano, europeu e japonês e, ao mesmo tempo, ganhou participação crescente no mercado de bens finais, peças e componentes dos EUA e Europa.

A redistribuição espacial da indústria manufatureira ampliou os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa, bem como favoreceu o avanço da chamada globalização financeira. A ampliação dos déficits comerciais americanos que atormentam Trump teve como contrapartida a rápida acumulação de reservas na China superavitária. Nos anos 90, as reservas chinesas abasteceram vigorosamente o mercado de títulos emitidos pelo Tesouro americano.

Há bens que vêm para o mal. A acumulação de reservas chinesas lastreadas nos Treasuries foi simultânea à espantosa expansão do crédito nos Estados Unidos. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa. Nessa toada, a espantosa evolução do consumo das famílias de Tio Sam instigou a bolha financeira que explodiu na crise de 2008. A virtude da temperança chinesa incitou os destemperos da finança que levaram à crise de 2008.

Não por acaso, correm à solta as propostas de reforma das relações monetário-financeiras internacionais. Quase todas elas contemplam a redução do papel do dólar como moeda-reserva e recomendam sua substituição progressiva por um sistema plurimonetário.

Há quem pretenda ressuscitar a proposta europeia apresentada em 1979, na reunião do FMI em Belgrado: substituir o dólar por uma cesta de moedas, a “conta de substituição”. Naquela reunião, a proposta foi rejeitada por Paul Volcker, que reafirmou o poder da moeda americana, ao impor ao mundo uma elevação sem precedentes da taxa de juro.

Despido da roupagem de protagonista importante, o palmeirense que ora submete os leitores do Valor às suas mal traçadas linhas estava na reunião de Belgrado. Ouvi pessoalmente as vozes dos poderes que comandam a economia. “Ninguém vai contestar o Poder do Dólar”, sapecou Volcker.

Nenhum comentário: