domingo, 12 de outubro de 2025

Que Congresso é esse? Por Pedro Parente

O Globo

O Congresso talvez seja o espelho de um país que, quando se indigna, muda, mas quando se acomoda, se deixa capturar

A atuação do Congresso Nacional nos últimos anos tem sido marcada por uma maioria suprapartidária movida por interesses corporativos. Diferentes partidos, aglutinados no bloco informal conhecido como Centrão, deixam de lado qualquer coerência programática e se alinham, invariavelmente, ao presidente da República da vez — desde que este retribua com o velho “toma lá, dá cá”.

O que torna essa dinâmica ainda mais grave, sob o ponto de vista institucional, é que essa maioria corporativista é numericamente suficiente para aprovar emendas constitucionais e derrubar vetos presidenciais, fragilizando o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) essencial a uma Democracia com “D” maiúsculo.

As últimas semanas retrataram com clareza esse estado de coisas. O país assistiu, perplexo, a uma sucessão de atos que desafiam não apenas o bom senso, mas o próprio pacto republicano. Em votações relâmpago, em sessões que avançaram pela madrugada do dia 16/9 e no dia seguinte, a Câmara aprovou, em dois turnos, o texto-base de uma proposta que, sob o disfarce de “prerrogativa”, visava, na prática, blindar parlamentares contra a Justiça.

Naquelas horas sombrias, houve manobras regimentais, emendas de última hora e o retorno do voto secreto — artifício que o país imaginava sepultado com o século XX. Em menos de 24 horas, o país viu um texto constitucional ser votado, alterado e reconfigurado — tudo sob o mesmo clima de cumplicidade e pressa, atropelando o intervalo entre os dois turnos necessário exatamente para permitir o amadurecimento da discussão e a escuta da opinião pública.

Desta vez, porém, diante da afronta institucional que se desenrolou em tão curto espaço de tempo, algo diferente aconteceu: uma reação pública imediata e intensa. As redes sociais se inflamaram e, em menos de 48 horas, milhares de pessoas foram às ruas — em cidades como São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Brasília.

Foram manifestações majoritariamente espontâneas, sem partidos nem palanques, movidas por uma indignação que há tempos não se via. A sociedade pareceu recordar que a democracia exige vigilância e que a ética pública não se terceiriza.

No Senado, o clima foi outro. Sob forte pressão popular, a Comissão de Constituição e Justiça rejeitou por unanimidade a PEC da Blindagem, ato contínuo sepultada pelo presidente da Casa. Ainda que impulsionada pela opinião pública, a reação firme dos senadores contrastou com a pressa e o oportunismo da Câmara.

Foi, mais que uma vitória política, um raro momento de respiro institucional — quando os freios e contrapesos funcionaram para conter os impulsos corporativos do poder.

Outro tema ocupa há meses o tempo dos parlamentares federais: a proposta de anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro. Ambos os temas têm a mesma raiz moral — a recusa em aceitar responsabilidade. Expressam a tentação de transformar prerrogativas em privilégios, direitos em escudos, trazendo à tona o mesmo instinto de autopreservação de certas elites políticas diante da lei.

É verdade que, de vez em quando, o interesse público prevalece — desde que não conflite com interesses dessa maioria ou, como vimos recentemente, diante de forte reação popular. Nesse mesmo período, a Câmara aprovou uma histórica reforma do Imposto de Renda.

Após décadas de distorções, o país deu um passo concreto em direção à justiça tributária, aliviando a carga sobre rendas do trabalho de menor e média faixa e começando a cobrar mais das rendas de capital — em especial lucros e dividendos. É uma mudança de alta importância simbólica e fiscal — talvez o primeiro movimento sério para corrigir uma das mais antigas assimetrias brasileiras.

Durou pouco o bom comportamento da Câmara. Nesta semana, a Casa rejeitou a Medida Provisória 1.303/2025, peça central da estratégia fiscal do governo. Por 251 votos a 193, os deputados decidiram retirá-la de pauta, fazendo a MP caducar.

Sem entrar no mérito da matéria, o gesto, além de contrariar acordo previamente firmado com o Executivo, revelou a rapidez com que o ímpeto reformista se desfaz quando medidas de interesse público tocam privilégios ou contrariam conveniências eleitorais.

Esse é o Congresso. Um retrato inquietante de nossa representação política. Talvez seja o espelho de um país que ainda oscila entre o que almeja ser e o que insiste em continuar sendo. Um país que, quando se indigna, muda; mas quando se acomoda, se deixa capturar.

 

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