O Globo
O Congresso talvez seja o espelho de um país
que, quando se indigna, muda, mas quando se acomoda, se deixa capturar
A atuação do Congresso Nacional nos últimos
anos tem sido marcada por uma maioria suprapartidária movida por interesses
corporativos. Diferentes partidos, aglutinados no bloco informal conhecido como
Centrão, deixam de lado qualquer coerência programática e se alinham,
invariavelmente, ao presidente da República da vez — desde que este retribua
com o velho “toma lá, dá cá”.
O que torna essa dinâmica ainda mais grave, sob o ponto de vista institucional, é que essa maioria corporativista é numericamente suficiente para aprovar emendas constitucionais e derrubar vetos presidenciais, fragilizando o sistema de freios e contrapesos (checks and balances) essencial a uma Democracia com “D” maiúsculo.
As últimas semanas retrataram com clareza
esse estado de coisas. O país assistiu, perplexo, a uma sucessão de atos que
desafiam não apenas o bom senso, mas o próprio pacto republicano. Em votações
relâmpago, em sessões que avançaram pela madrugada do dia 16/9 e no dia
seguinte, a Câmara aprovou, em dois turnos, o texto-base de uma proposta que,
sob o disfarce de “prerrogativa”, visava, na prática, blindar parlamentares contra
a Justiça.
Naquelas horas sombrias, houve manobras
regimentais, emendas de última hora e o retorno do voto secreto — artifício que
o país imaginava sepultado com o século XX. Em menos de 24 horas, o país viu um
texto constitucional ser votado, alterado e reconfigurado — tudo sob o mesmo
clima de cumplicidade e pressa, atropelando o intervalo entre os dois turnos
necessário exatamente para permitir o amadurecimento da discussão e a escuta da
opinião pública.
Desta vez, porém, diante da afronta
institucional que se desenrolou em tão curto espaço de tempo, algo diferente
aconteceu: uma reação pública imediata e intensa. As redes sociais se
inflamaram e, em menos de 48 horas, milhares de pessoas foram às ruas — em
cidades como São Paulo, Rio, Belo Horizonte e Brasília.
Foram manifestações majoritariamente
espontâneas, sem partidos nem palanques, movidas por uma indignação que há
tempos não se via. A sociedade pareceu recordar que a democracia exige
vigilância e que a ética pública não se terceiriza.
No Senado, o clima foi outro. Sob forte
pressão popular, a Comissão de Constituição e Justiça rejeitou por unanimidade
a PEC da Blindagem, ato contínuo sepultada pelo presidente da Casa. Ainda que
impulsionada pela opinião pública, a reação firme dos senadores contrastou com
a pressa e o oportunismo da Câmara.
Foi, mais que uma vitória política, um raro
momento de respiro institucional — quando os freios e contrapesos funcionaram
para conter os impulsos corporativos do poder.
Outro tema ocupa há meses o tempo dos
parlamentares federais: a proposta de anistia aos envolvidos nos ataques de 8
de janeiro. Ambos os temas têm a mesma raiz moral — a recusa em aceitar
responsabilidade. Expressam a tentação de transformar prerrogativas em
privilégios, direitos em escudos, trazendo à tona o mesmo instinto de
autopreservação de certas elites políticas diante da lei.
É verdade que, de vez em quando, o interesse
público prevalece — desde que não conflite com interesses dessa maioria ou,
como vimos recentemente, diante de forte reação popular. Nesse mesmo período, a
Câmara aprovou uma histórica reforma do Imposto de Renda.
Após décadas de distorções, o país deu um
passo concreto em direção à justiça tributária, aliviando a carga sobre rendas
do trabalho de menor e média faixa e começando a cobrar mais das rendas de
capital — em especial lucros e dividendos. É uma mudança de alta importância
simbólica e fiscal — talvez o primeiro movimento sério para corrigir uma das
mais antigas assimetrias brasileiras.
Durou pouco o bom comportamento da Câmara.
Nesta semana, a Casa rejeitou a Medida Provisória 1.303/2025, peça central da
estratégia fiscal do governo. Por 251 votos a 193, os deputados decidiram
retirá-la de pauta, fazendo a MP caducar.
Sem entrar no mérito da matéria, o gesto,
além de contrariar acordo previamente firmado com o Executivo, revelou a
rapidez com que o ímpeto reformista se desfaz quando medidas de interesse
público tocam privilégios ou contrariam conveniências eleitorais.
Esse é o Congresso. Um retrato inquietante de
nossa representação política. Talvez seja o espelho de um país que ainda oscila
entre o que almeja ser e o que insiste em continuar sendo. Um país que, quando
se indigna, muda; mas quando se acomoda, se deixa capturar.
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