domingo, 4 de dezembro de 2022

Luiz Sérgio Henriques* - Breve notícia da terra devastada

Celebração grosseira do ‘politicamente incorreto’ contaminou parte das elites e se espalhou pela sociedade

Em Washington, mal começado o governo e já na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes. Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina” que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte supostamente positiva da sua agenda. 

Livramo-nos há pouco da promessa bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada. Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo e destruidor. 

Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for. 

Paulo Fábio Dantas Neto* - A política voltou, a moderação ainda não

Está longe de chegar o momento de pararmos de celebrar o retorno da política aos céus de Brasília. Muitas nuvens continuam por lá, mas já temos de volta a linha do equador, a demarcar o mundo comum da democracia do mundo da vontade indômita, despótica, mãe de todas as aventuras autocráticas.

Há que sentir alento quando o presidente eleito - após uma campanha árdua por todo o país e ainda mal saído de um procedimento médico - desloca-se, mais uma vez, antes da sua posse, à capital federal, para conversar pessoalmente com partidos e lideranças aliadas e adversárias em busca de calibrar os passos iniciais de um governo que tem tudo para ser ainda mais desafiador do que foi a campanha.  Por outro lado, recuperamos uma boa memória quando diferenças políticas voltam a se apresentar em seus variados matizes, ultrapassando, aos poucos, a paisagem binária que desertificou a política brasileira nos últimos anos. O público pode observar conflitos e entendimentos políticos transcorrerem sob luzes mais potentes, tendo à mão informações menos truncadas, que permitem percepções e opiniões se formarem de modo menos ingênuo e mais realista do que como se deu durante uma campanha marcada por jogadas populistas e discursos maniqueístas, para além do que é habitual em eleições.

As dificuldades do país estão saindo das sombras, sob as quais se acumulavam e agigantavam. Chantagens não deixam de ser parte do repertório da política, mas perdem o caráter violento, até mórbido, que vinham tendo. Em vez de ameaças, as urgências fazem agendas; em vez de berros, há diálogos. Nada é ingênuo, ou idílico, mas toda ambição e contenda adquirem tons mais razoáveis. Interesses não deixam de estar em toda parte, mas buscam legitimar-se politicamente sem qualquer deles arvorar-se a soberano. Concorrências seguem imperfeitas, entre forças assimétricas, mas a persuasão torna-se língua franca, sem a qual nenhuma diretriz se comunica, nenhum poder se efetiva. A esse conjunto de realidades, aceitas e valorizadas numa democracia, podemos chamar de complexidade.

Merval Pereira - Pedras no caminho

O Globo

Comandantes militares podem não antecipar a saída, mas querem apoio do novo governo a projetos estratégicos

A crise originada pela politização dos militares pelo Presidente Jair Bolsonaro, com o objetivo de permanecer no poder de qualquer maneira, fosse pelo voto - o que não aconteceu por muito pouco -, ou através de um golpe político-militar, parece estar sendo superada desde que o presidente eleito Lula deixou vazar que o ex-deputado José Múcio Monteiro será o novo ministro da Defesa.

As negociações nos bastidores encaminham-se para que a transição dos comandos militares seja feita da maneira mais normal possível, sem a antecipação pretendida pelos atuais comandantes das Três Armas. No entanto, a politização deixou sequelas, que só serão resolvidas a médio e longo prazos.

Há uma ansiedade entre as altas patentes militares para que o novo ministro da Defesa e o Presidente da República se posicionem em apoio a projetos militares estratégicos claramente sustentados; à política de recursos humanos, sobre a qual pretendem total controle das Forças Armadas, e um diálogo “franco e respeitoso” com os alto-comandos.

Elio Gaspari - O nó da disciplina militar

O Globo

Em algum momento, os comandantes militares devem parar essa roda, pois já há gente chamando generais de 'melancias'

É velha como a Sé de Braga a afirmação de que quando a política entra num quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra.

No princípio, um general pensa de uma maneira, e outro, de outra. Depois, a divergência passa aos coronéis, e assim sucessivamente.

Em algum momento, os comandantes militares devem parar essa roda, pois já há gente chamando generais de “melancias” (verdes por fora, vermelhos por dentro). Chegou-se ao ponto de um sargento lotado no Gabinete de Segurança Institucional postar uma mensagem dizendo que Lula não subirá a rampa do Planalto no dia 1º de janeiro.

A turma da transição quebrou a cabeça para escolher um ministro da Defesa. Pode ser importante, mas não é tudo.

Os três novos comandantes das Forças assumirão seus postos com a tarefa de colocar ordem nas casas.

Há chefes militares que empurram a disciplina com a barriga (Lyra Tavares, desastrosamente, em 1969) e chefes que a defendem com o pulso (Leônidas Pires Gonçalves de 1985 e 1990, e Orlando Geisel de 1969 a 1974).

Luiz Carlos Azedo - A “ambição de poder” e a volta dos militares à caserna

Correio Braziliense

Jair Bolsonaro exumou velhos conceitos e fez renascer das cinzas a “ambição de poder” da geração de militares saudosos dos 20 anos de ditadura, nos quais a carreira era uma via de ascensão política

A volta dos militares às suas funções constitucionais específicas é o caminho para despolitizar as Forças Armadas, historicamente contaminadas pela velha compreensão positivista de que são a expressão armada e a liderança moral do povo brasileiro desde a vitória de Guararapes contra os holandeses, o mito fundador do Exército nacional. Em razão disso, muitos militares ainda acreditam que, em nome do povo, devem exercer a tutela sobre os Poderes republicanos e as demais instituições da vida pública.

Essa compreensão vem dos governos de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, que consolidaram o regime republicano e operaram uma transição na qual o poder político do país saiu das mãos da aristocracia imperial e passou aos grandes fazendeiros de café, não apenas por isso, mas quase que como uma indenização pela abolição da escravidão pela monarquia constitucionalista. Mas havia uma compreensão clara na República Velha, a partir do governo de Prudente de Moraes, de que a democracia era um poder civil, apesar de todos os problemas.

Bernardo Mello Franco - A conciliação e seus descontentes

O Globo

Apoio do PT a Lira abre primeira divergência na aliança que elegeu Lula

acordo do PT com Arthur Lira abriu a primeira divergência entre os partidos que apoiaram Lula. A bancada do PSOL avisou que votará contra a reeleição do presidente da Câmara. Deve apresentar uma candidatura de protesto e renovar as críticas ao Centrão e ao orçamento secreto.

Eleito por uma frente ampla, Lula já começou a fazer concessões. Em nome da chamada governabilidade, desistiu de peitar o principal aliado de Jair Bolsonaro no Congresso. Ao mesmo tempo, negocia a distribuição de ministérios para siglas com as quais não tem nenhuma afinidade ideológica, como PSD e União Brasil.

O presidente eleito é conhecido pelo pragmatismo. Em 2002, amaciou o discurso econômico para vencer resistências no empresariado e no mercado financeiro. Vinte anos depois, tende a repetir o movimento na direção de ruralistas, evangélicos e militares.

Míriam Leitão - É a democracia, no fim das contas

O Globo

Bastidores da reunião de Lula com economistas e da decisão sobre militares mostram que o fundamental é a democracia

O presidente Lula ao falar na sexta-feira que só começará a anunciar os nomes dos ministros depois da diplomação estava fazendo uma jogada estratégica. Espera diminuir a pressão e ganhar tempo. A economia é uma grande fonte de preocupação do presidente eleito, mas não é a única. No caso dos militares, ele tomou uma decisão bem no começo da disputa eleitoral. Havia conversas de emissários da campanha com alguns oficiais. Lula determinou que os contatos informais parassem. “Eu quero conversar com eles como comandante”, ou seja, depois de eleito. Lula avaliou que consultas informais aos militares confirmavam o desvio da politização das Forças Armadas, e davam a ele um papel que eles não têm.

Ao fim da longa reunião da terça-feira que o presidente Lula teve com os economistas que participam da transição, ele brincou. “Eu só não anuncio logo o ministro da Fazenda porque, quando eu fizer isso vários de vocês vão embora.” O que impressionou os economistas foi como ele se dedicou à reunião. Pediu para cada um falar, não quis marcar tempo de fala. Fez perguntas. Ouviu. Ele chegou às nove, Fernando Haddad já estava lá desde cedo, Alckmin se atrasou porque estava com Hamilton Mourão. No fim da manhã, Lula convidou os economistas para almoçar e a conversa continuou.

Dorrit Harazim - A obra bolsonarista mais se assemelha a um país-fantasia

O Globo

A julgar pelos primeiros relatórios de alguns dos 30 grupos temáticos da transição, a desgraceira é monumental

Era uma vez um país chamado Brasil, presidido por um capitão chamado Jair Bolsonaro, que deveria comandar a nau pátria até o último dia de mandato, 31 de dezembro de 2022. Só que o capitão sumiu desde que Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito seu sucessor. E o conjunto da obra bolsonarista, entregue a conta-gotas e de má vontade à equipe de transição de Lula, mais se assemelha a um país-fantasia. Fantasia por falido, e falido no sentido múltiplo do termo — financeiro, social, gerencial, moral. A julgar pelos primeiros relatórios de alguns dos 30 grupos temáticos da transição, a desgraceira é monumental. Por enquanto, o impacto nacional decorrente dessa ruína ainda é pouco percebido — nada consegue competir com o feitiço da sucessão de zebras, surpresas e reviravoltas de uma Copa do Mundo. E a do Catar só termina no domingo 18 de dezembro, já às vésperas do Natal. Portanto, na prática, até a posse de Lula no Palácio da Alvorada, o país continuará navegando à deriva. Algum dia, talvez, será possível computar quanto do futuro do Brasil foi perversamente esbanjado ou destruído na era Bolsonaro.

Eliane Cantanhêde - Foco no Itamaraty

O Estado de S. Paulo

A política externa de Lula foi e será ambiciosa e audaciosa, bem além das pautas bilaterais

Num jantar na casa da senadora Kátia Abreu, o presidente eleito Lula brincou: se tivesse que satisfazer todas as vontades do PT, teria de criar cem ministérios! E deu dicas de que José Múcio Monteiro (do velho PFL) irá para a Defesa e Flávio Dino (exPCdoB) para Justiça, como já vinha sinalizando o petista Fernando Haddad na Fazenda. Entre os 20% que ainda não estão na sua cabeça, destaca-se o nome para o Itamaraty.

Lula disse que não pretende seguir a lista tríplice para a Procuradoria-Geral da República e garantiu que o ministro da Defesa será civil, indicando preferência por Múcio, ex-presidente do TCU. Kátia, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, provocou: “Então, por que o chanceler tem de ser diplomata?”

Muniz Sodré* - A epifania de um gol

Folha de S. Paulo

É sintomático que outra consciência venha à luz exatamente onde irrompe obscurantismo

Dominar a bola com a ponta da chuteira esquerda e, num voleio perfeito, girar em torno do próprio eixo para chutar com a direita é uma descrição correta, mas escassa, do segundo gol de Richarlison contra a seleção da Sérvia na Copa do Mundo. Obra-prima, de arte, um marco na história do futebol. Aos olhos de muitos, o movimento perfez no espaço a letra inicial de Lula. Puro acaso, mas um caso de ironia objetiva.
Disso são caprichosos os exemplos. É que "ironia", a figura de linguagem em que alguém diz o contrário daquilo que quer dar a entender, se faz na escuta, isto é, na subjetividade do interlocutor. Mas há situações em que a disparidade entre a intenção e o resultado da ação permite falar de ironia objetiva.

Assim, durante a ditadura, numa cerimônia ao ar livre em Brasília, a bandeira nacional desfraldada no topo de um mastro, por efeito de uma ventania, ficou registrada numa foto com as palavras de "ordem pro-Esso", em vez de "progresso". Esso, a companhia petrolífera, era símbolo do império americano. Algo acidental, mas, ao olhar analítico, a concreta e irônica insinuação de um poder maior.

Não é apenas jogo verbal, há fundos de sentido. Na Copa América, Richarlison havia dedicado sua chuteira à ciência, para depois leiloá-la e financiar um grupo de pesquisa na USP. Aos 25 anos, atento à desigualdade das condições de vida no país, ele se diz um apoiador de causas. Dentro ou fora de campo, suas inclinações políticas estão afinadas com combate à fome e proteção climática.

Janio de Freitas - Um lema necessário

Folha de S. Paulo

Compromisso militar com ordem constitucional não é confiável

Aparente irrelevância, a indecisão sobre uso de carro sem capota pelo presidente Lula, no breve desfile pós-posse, reflete as entranhas complexas da situação como poucas outras sínteses o fariam.

A dúvida admite, em princípio, a continuidade de uma tradição de cerimonial em dias que, infestados de criminalidade política, repelem toda a tradição das mudanças de governo. O golpismo não mudou muito mais do que o vocabulário eleitoral.

O golpe não saiu das casernas por dois fatores principais. No plano interno, a firme ação da Justiça Eleitoral conduzida pelos ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin, e secundada pelo Supremo, contra a sucessão de preparativos lançados pelo golpismo para criar o seu pretexto.

No plano externo, foi a pressão em apoio à legalidade, uma forma de se opor a Bolsonaro. A certeza de sanções internacionais e isolamento sufocante do país, como represália ao golpe, acionou freios medrosos no golpismo militar.

Bruno Boghossian - Administrando expectativas

Folha de S. Paulo

Petista tenta administrar expectativas e obter tolerância sobre as primeiras decisões do mandato

Antes de receber a primeira pergunta na entrevista coletiva da última sexta-feira (2), Lula tentou preparar o terreno. "Eu estou convencido de que a situação do país não é das melhores", diagnosticou o presidente eleito. "Nós temos informações de que nós não teremos grande crescimento em 2023 se depender da política que está em vigor nesse país."

Lula já ganhou a eleição, mas ainda sustenta um discurso crítico a Jair Bolsonaro para amortecer o início de seu governo. Ao repisar a imagem de que a gestão atual deixa um cenário de terra arrasada, o petista trabalha para administrar as expectativas de seus eleitores e obter uma certa tolerância sobre as primeiras decisões de seu mandato.

Vinicius Torres Freire - A política muito econômica de Alckmin

Folha de S. Paulo

Vice-presidente eleito fala de diretrizes, faz pontes com o setor privado e baixa fervuras

Geraldo Alckmin não gosta de déficit, mais por temperamento do que por teoria. O vice-presidente eleito não se dá ares de entender de economia, jamais manteve um grupo de economistas à sua volta nem se envolve nos debates de economia do governo de transição.

No entanto, Alckmin tem baixado várias fervuras e passa recados econômicos. Liga para economistas conhecidos ou recebe, do seu pequeno círculo, relatos ou relatórios, como aqueles sobre como o caldo engrossou nas taxas de juros da praça financeira, com o que ficou preocupado. Se teve oportunidade de dizer essas coisas a Luiz Inácio Lula da Silva, não foi possível apurar. Mas tem dito e feito coisas de certa relevância, suavemente.

Ainda que dissesse por aí que não sabia de nada do ministério, ajudou a conter o lobby que algumas figuras graúdas da finança faziam contra a nomeação de Fernando Haddad para o Ministério da Fazenda. Na semana passada, boatos da arraia miúda e média do mercado o nomeavam para a Fazenda.

Cristovam Buarque* - Corte de verbas na educação

Blog do Noblat / Metrópoles

O governo Bolsonaro comete mais um crime: corte de verbas para as universidades e escolas técnicas

Nos tristes estertores finais de seu governo, que serão tema de historiadores e escritores, o governo Bolsonaro comete mais um crime: corte de verbas para as universidades e escolas técnicas. Mesmo que volte atrás e reponha os recursos, a incerteza desestrutura pesquisas, cursos, desorganiza administrações e abala o ânimo dos professores, alunos e pesquisadores: é um crime.

Mas serve para mostrar um desequilíbrio estrutural do sistema educacional brasileiro: o presidente, seu ministro da educação, a União cuidam do ensino superior e das escolas técnicas, sem responsabilidade, nem cuidado, com a educação de base de 50 milhões de crianças em idade escolar. Todos os anos e meses, milhares entre os quase seis mil prefeitos ficam incapacitados de gastar o necessário com suas escolas municipais, mas o Brasil simplesmente ignora quando eles cortam gastos, até mesmo quando atrasam salários de professores. Até hoje, raras prefeituras conseguem pagar o pequeno salário definido pela lei nacional do Piso Salarial do Professor. Entre os estados, o governo do Rio Grande Norte é dos poucos que cumpre o Piso inclusive para os aposentados.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Novo governo precisa de choque de realidade fiscal

O Globo

Se consumada a gastança desenfreada dos planos petistas, Lula terá cometido seu erro mais grave antes da posse

É certo que o presidente Jair Bolsonaro promoveu o desmonte de várias áreas da máquina pública, dos órgãos ambientais à vacinação, das universidades à cultura. A equipe de transição para o novo governo tem se esmerado em usar tal cenário como pretexto para defender toda sorte de despesa, sem nenhum lastro ou sobriedade fiscal.

Urdiu-se uma narrativa em que todo gasto se justifica para resgatar o país da “terra arrasada” a que foi lançado por Bolsonaro. Não se imagine que a preocupação é apenas social, com saúde, educação ou programas de transferência de renda. Nada disso. Estão em curso projetos para repor privilégios à elite do funcionalismo e dar aumentos salariais indiscriminados, recompor fundos setoriais e subsídios, liberar verbas para investimentos de retorno duvidoso e satisfazer grupos de pressão organizados (dos profissionais de enfermagem às empresas de transporte coletivo).

A crença em que existam recursos abundantes para tudo é absurda diante dos fatos e da lógica. Mas não apenas. Se for levada adiante a gastança desenfreada dos planos petistas, será o erro mais grave cometido pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, antes mesmo da posse. E ele será o primeiro a se arrepender — se não agora, com certeza nos primeiros seis meses de governo, quando ficar clara a perda do voto de confiança que recebeu dos setores produtivos, do mercado financeiro e do investidor externo.

Poesia | Cada um de nós é por enquanto a vida -José Saramago com narração de Mundo dos Poemas

 

Música | Mangueira Carnaval 2023

 

sábado, 3 de dezembro de 2022

Ascânio Seleme - De volta ao passado

O Globo

O que se vê hoje, com a resistência militar a Lula, meio velada, meio às claras, lembra os momentos que antecederam o fim da ditadura com a sucessão do último general por um civil

O mal-estar causado por declarações de oficiais das três Forças sobre política, os cuidados extraordinários que o novo governo vem tomando para lidar com a transição na área militar e a sondagem quase clandestina do presidente eleito a membros do alto comando do Exército lembram em tudo os momentos que antecederam o fim da ditadura com a sucessão do último general por um civil. Quem acompanhou a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral em janeiro de 1985 e a posse de José Sarney em março do mesmo ano sabe como aqueles meses foram tensos e exigiram muita cautela e tato. O que se vê hoje, com a resistência militar a Lula, meio velada, meio às claras, tem a cara do passado.

Para refrescar a memória do leitor, não custa lembrar que o final da ditadura brasileira foi melancólico. O presidente João Figueiredo chegou ao fim de seu mandato de seis anos cansado e desmotivado. Tentou apoiar a candidatura de Mario Andreazza, seu ministro, que perdeu na convenção do PDS para Paulo Maluf. Mesmo envergonhado, apoiou Maluf e com ele perdeu a eleição para Tancredo. Figueiredo aceitou a vitória do ex-governador de Minas, um político conciliador, hábil e de excelente trânsito em todos os setores, mas nunca engoliu Sarney, que deixou o seu partido para apoiar e ser o vice do candidato da oposição.

Tancredo conversava com generais. Embora sem a mesma desenvoltura com que dialogava com deputados, senadores, governadores e todos os outros membros do colégio eleitoral que o elegeria presidente, o governador de Minas pavimentou seu caminho ao Planalto negociando discretamente com os militares. Já Sarney era considerado persona non grata e tratado como traidor do regime por deixar o PDS para apoiar a oposição e compor a sua chapa.

Oscar Vilhena Vieira* - A Constituição orçamentária

Folha de S. Paulo

Em 34 anos, dinâmica do funcionamento do sistema constitucional gerou nada menos do que 125 emendas

Antes mesmo de assumir o governo, o presidente eleito Lula precisará aprovar uma emenda constitucional de natureza orçamentária para poder governar. Isso diz muito sobre a dinâmica de funcionamento de nosso sistema constitucional, que nos seus poucos 34 anos de vida gerou nada menos do que 125 emendas.

Como sabemos, a Constituição de 1988 é resultado de uma espécie de compromisso maximizador. Além da "Constituição material", que estabeleceu os direitos fundamentais, o sistema de separação de Poderes, a Federação e as regras do jogo democrático, há uma "Constituição orçamentária", que entrincheirou em seu texto uma parte substantiva do conflito distributivo brasileiro.

Todos aqueles setores que dispunham de alguma forma de poder no momento da elaboração da Constituição depositaram ali suas aspirações, mas também seus interesses de natureza corporativa ou econômica. De um lado, foram protegidos recursos para atender despesas decorrentes de direitos fundamentais, como educação e saúde; mas também entrincheirados privilégios dispendiosos, em detrimento do interesse da população.

Marco Antonio Villa - O PT tem de aprender com a história

Revista IstoÉ

O ano de 2023 não poderá ser uma repetição de 2003. É indispensável um governo de união nacional

O novo governo a ser instalado no Palácio do Planalto a 1º de janeiro de 2023 tem de ter como foco central a compreensão do momento político-eleitoral de 2022. Ou seja, a eleição presidencial foi um plebiscito não de Jair Bolsonaro, mas do Partido dos Trabalhadores – mais do que sobre Luiz Inácio Lula da Silva. O que isto quer dizer? Os quase 14 anos de governo do PT deixaram algumas marcas políticas – para seus opositores, mais ou menos radicais — marcas que vão demorar anos para serem apagadas. Principalmente as duas presidências Dilma Rousseff, sua forma de fazer política, as relações com os graves problemas nacionais e o desastre econômico do triênio 2014-2016, o pior da história econômica republicana.

O governo Bolsonaro — o mais calamitoso desde 1889 — quase conseguiu obter a reeleição, A derrota foi por uma margem mínima. Como explicar que durante um quadriênio assistimos cenas inimagináveis, um descalabro administrativo que não encontra paralelo na nossa história, o decoro presidencial sendo cotidianamente ignorado e mesmo assim milhões de brasileiros sufragaram o nome do responsável pela mais grave tragédia sanitária do Brasil como a pandemia da Covid-19?

Pablo Ortellado - STF precisa pôr fim ao orçamento secreto

O Globo

Trata-se de um instrumento indecente de compra de apoio político no Congresso

Passadas as eleições, o Supremo Tribunal Federal (STF) acertou ao pautar um dos mais danosos legados institucionais do bolsonarismo: as emendas de relator, também conhecidas como “orçamento secreto”.

O orçamento secreto é um instrumento indecente de compra de apoio político no Congresso. Por meio dele, parlamentares que apoiam o governo ganham o direito de destinar verbas do orçamento federal para ações em suas bases eleitorais, sem qualquer transparência.

O orçamento secreto foi criado em 2020 para contornar um problema criado pelo próprio Bolsonaro, que se elegeu criticando os instrumentos tradicionais de formação de maiorias parlamentares. Desde a volta da democracia, o governo eleito monta uma coalizão majoritária obtendo apoio de partidos que passam a integrar o governo, ocupando postos em ministérios, secretarias e autarquias. Essa composição garante um número suficiente de votos no Congresso para aprovar projetos de interesse do Executivo.

Eduardo Affonso - As palavras do ano

O Globo

Recomenda-se não fazer ‘gaslighting’ com patriotas, já que a transição será demorada, e ditadura e golpe não devem sair do seu vocabulário tão cedo

A editora do dicionário Merriam-Webster escolheu gaslighting como “palavra do ano” de 2022 nos Estados Unidos.

Talvez gaslaite tenha de esperar um pouco até ser admitida no Aurélio ou no Houaiss, mas até lá podemos nos valer do idioma pátrio. Trata-se da boa e velha manipulação psicológica — a desestabilização emocional do outro em benefício próprio. Apesar de não nos faltar gente craque no assunto (políticos, gurus, pastores, maridos), a expressão não é tão popular por aqui. Outras palavras representariam melhor nosso ano, pelo uso intensivo ou por terem sofrido mutação genética. Minhas candidatas:

Auditável: adj. Aquilo que se possa contar manualmente tantas vezes quantas forem necessárias, até que seja obtido um resultado favorável. Ex.: voto auditável;

Complexo (abrev.: CPX): s.m. Conjunto de representações de forte valor afetivo, que leva indivíduos com baixa capacidade para lidar com questões complexas a crer que todo morador de favela seja traficante, assaltante ou meliante. Presente em Complexo de Castração (que envolve inveja do pênis, até quanto ao tamanho) e Complexo de Inferioridade, passando pelos Complexos do Alemão, da Maré, da Penha, da Serrinha;

Carlos Góes - Desigualdade que vem do berço

O Globo

Nossa desigualdade é persistente, o que impede que gerações de brasileiros escapem das suas circunstâncias

O prêmio Nobel de economia Angus Deaton começa seu livro “A Grande Saída” convidando o leitor a entender que, muitas vezes, situações positivas podem gerar desigualdades. Se, entre dois prisioneiros de um campo de concentração, um consegue escapar, isso vai gerar uma desigualdade.

Obviamente, isso não significa que seja ruim que alguém escape daquela situação infernal. É positivo que uma pessoa deixe de ser vítima de uma injustiça. A desigualdade, no caso, reflete que nem todos conseguiram escapar de uma situação ruim.

No livro, Deaton fala de como a Humanidade vem escapando da penúria ao longo dos últimos séculos. Até pouco tempo, quase todos os seres humanos tinham níveis de consumo baixo, acesso muito limitado à saúde e viviam sob governos tirânicos.

Ao longo desses anos, partes do mundo conseguiram escapar desses grilhões. Primeiro veio a revolução sanitária, que reduziu a mortalidade infantil inicialmente no Ocidente, depois no resto do mundo. Depois veio a melhora nas condições materiais. Em 1990 (praticamente anteontem!), 38% do mundo viviam na extrema pobreza. Em 2019, já eram bem menos: 8,4%.

João Gabriel de Lima* - A debandada dos conservadores

O Estado de S. Paulo.

Ele (Bolsonaro) se isolou ao defender, obsessivamente, que houve fraude na eleição

“Entre mim e Maquiavel existe uma grande diferença: eu fui príncipe, ele não.” A frase, dita às gargalhadas, é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em uma mesa na Flip de Paraty, anos atrás. Maquiavel só conhecia o poder em teoria. Fernando Henrique, que o exerceu na prática, não perdeu a piada.

Acaba de sair no Brasil um ótimo ensaio sobre Maquiavel e os dias de hoje. Seu autor é o filósofo Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. As perguntas que o livro procura responder estão sugeridas no título, “Maquiavel, a democracia e o Brasil”. Até que ponto a obra de Maquiavel, escrita num contexto absolutista, vale para governos democráticos? Suas ideias se aplicam ao Brasil atual?

Parte do pensamento de Maquiavel se estrutura sobre os conceitos de “fortuna” e “virtù”. “Fortuna” são as circunstâncias que possibilitam a ascensão do governante. A ideia de “virtù” é mais complexa. “Trata-se da ação planejada para conquistar e manter o poder”, explica Janine, entrevistado no minipodcast da semana. “A palavra remete também à ideia de virilidade.”

Bolívar Lamounier* - A falta que um muro de arrimo nos faz

O Estado de S. Paulo

A quem crê piamente na ‘robustez’ de nossas instituições, lembro que até o poderoso general Geisel precisou se precaver contra um golpe

Se fôssemos julgar pelos últimos quatro ou cinco anos, nossa conclusão só poderia ser a de que a maioria dos brasileiros, mesmo os poliglotas e os pertencentes às camadas ditas “nobres”, adora o debate público, não porque tenha grande interesse no desenvolvimento do País, mas porque seus maiores deleites são maldizer as instituições e insultar adversários.

Confesso que não tenho mais paciência para isso. Dou atenção a tais embates – que tiveram seu ápice na eleição presidencial de 2018 – por razões estritamente profissionais. Pessoalmente, posso manifestar desânimo, resmungar e até grunhir quando me deparo com algum fato público abominável – e os há em abundância; mas deixo para os desocupados o contentamento de martelar sandices como essas dos últimos anos.

Nossa história ostenta uma pândega simetria. Cerca de 80 anos atrás, os poliglotas e nobres a que acima me referi, representando-se como combatentes das justas medievais, abarrotavam-se nos melhores salões a fim de esgrimir no mais castiço português a contraposição de suas teses sobre o que significava “ser brasileiro”. Era raro irem à janela para dar uma olhada no ambiente externo; se lá fossem, não veriam muita coisa, pois a iluminação era escassa, uns poucos pobretões matavam o tempo e a maioria da população não estava lá, estava no interior, tentando sobreviver como trabalhadores rurais.

Miguel Reale Júnior* - As derrotas do derrotado

O Estado de S. Paulo

Se Bolsonaro tentou se mostrar dotado de valentia no exercício da Presidência, o ‘imbrochável’, todavia, revelou triste fraqueza na derrota

A segurança das urnas foi atestada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelas próprias Forças Armadas, que não constataram qualquer indício de fraude. Três missões internacionais de observação eleitoral também garantiram a fidedignidade do resultado.

Procurando pelo em ovo, o Partido Liberal (PL) de Valdemar Costa Neto, instado por Jair Bolsonaro, contratou auditoria que sugeriu anular não a eleição, mas apenas parte substancial das urnas, dando a vitória ao ansioso derrotado. Como pretexto, usou a constatação de as urnas anteriores a 2020, cerca de 279 mil, não gerarem arquivos de registro com o número do respectivo código de identificação, concluindo, então, não haver possibilidade de rastreamento do resultado dessas urnas.

Essa conclusão é sabidamente inverídica, pois, como assinalou a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), todas as urnas eletrônicas, de todos os modelos, têm registrado em seu hardware um “número interno”, também chamado de “código de identificação da urna” ou “ID Urna”. Esse identificador é único para cada equipamento. A cada eleição, a urna é destinada a um município, zona e seção, recebendo um código de carga gerado em consonância com o número de identificação, sendo este código de carga o elemento que identifica esta urna no processo eleitoral e permite rastreabilidade dos resultados como produzidos pelo equipamento.

Hélio Schwartsman - Heranças malditas

Folha de S. Paulo

Bolsonaro plantou bombas para Lula na saúde

Da economia à cultura passando pelo meio ambiente, Jair Bolsonaro deixa para seu sucessor uma série de heranças malditas. Eu gostaria de discutir hoje o espólio bolsonarista na saúde.

Arrumar o SUS, subfinanciado e mal gerido, é tarefa para mais de um governo e tem como pressuposto o equacionamento do problema fiscal. Não adianta muito despejar mais dinheiro no sistema, mas criar uma inflação que empurra os cidadãos mais vulneráveis para piores condições de vida e de saúde.

Penso que a principal prioridade do governo Lula será manter o SUS operante, o que é mais difícil do que parece. Bolsonaro plantou algumas bombas pelo caminho, e a pandemia criou uma importante demanda reprimida por diagnósticos e procedimentos. Eu reforçaria ainda dois aspectos da prevenção, primária e secundária, que, se deixados de lado, poderão piorar o panorama nos próximos meses e anos.

Demétrio Magnoli - A natureza do governo

Folha de S. Paulo

Pacto entre Lula e Lira mostra que eleito escolheu ilusória frente ampla

O Brasil é um país de conceitos políticos difusos, em perene fluxo. Por aqui, fala-se de presidencialismo de coalizão, semipresidencialismo e semiparlamentarismo. Hoje, assegura-se que teremos um governo de frente –e adjetivada, ao sabor das conveniências, como "ampla" ou "democrática". Entre nós, a linguagem serve mais para iludir que para comunicar.

No segundo turno, configurou-se em torno de Lula uma frente eleitoral, que merece o qualificativo "democrática" por apoiar-se na repulsa ao golpismo da extrema-direita bolsonarista. Contudo, em momento algum articulou-se uma frente política.

Uma frente política repousa sobre um programa comum negociado por diferentes partidos. Durante a campanha do segundo turno, Lula anunciou a incorporação de algumas propostas de Simone Tebet e de Ciro Gomes, mas não modificou o núcleo de sua plataforma econômica, exposta em discursos e declarações públicas. "Governo de frente" sem programa comum é, na hipótese mais benevolente, a expressão de uma utopia pervertida.

Em tese, Lula poderia governar exclusivamente com sua coligação eleitoral. Contudo, essa frente de esquerda não é viável pois falta-lhe um mínimo de sustentação no Congresso.

Eduardo Leite assume PSDB para construir nova oposição ao PT

Governador vai liderar sigla a partir do ano que vem mirando candidatura presidencial em 2026. Primeira tarefa será organizar uma fusão com siglas de centro ou reforçar a federação com o Cidadania

Por Bianca Gomes / O Globo

O governador eleito do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, assumirá o comando do PSDB em fevereiro do próximo ano com o desafio de fortalecer o partido, pavimentar sua candidatura à Presidência em 2026 e liderar a construção de uma oposição ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Leite chega ao comando da legenda após se tornar o primeiro governador gaúcho a conquistar a reeleição. Embora o desfecho eleitoral tenha sido vitorioso, o caminho de volta ao Palácio Piratini teve idas e vindas, a começar pela tentativa frustrada de ser o candidato tucano à Presidência da República.

Após derrota nas prévias para João Doria, que hoje já não está mais na legenda, Leite flertou com o PSD, de Gilberto Kassab, movimento que causou desgastes entre os aliados internos. Mas a vitória inédita no Rio Grande do Sul depois de um primeiro turno apertado cacifou o tucano da nova geração do PSDB como a principal liderança da sigla, que teve em 2022 o pior desempenho eleitoral da sua história.

A primeira tarefa do novo dirigente assim que assumir em fevereiro de 2023 será liderar as articulações por uma fusão com partidos de centro ou ampliação da federação existente com o Cidadania.

Marcus Pestana - Equilíbrio fiscal e combate às desigualdades

A falsa contradição entre responsabilidade fiscal e social é o tema do momento, dada a discussão da chamada “PEC da Transição”.

Há uma visão recorrente, ingênua e voluntarista, sobre o processo de desenvolvimento e suas repercussões no bem estar geral da população. O ser humano tem uma capacidade ilimitada de sonhar, alimentar desejos e querer uma vida melhor. Ainda bem. Este é o motor das transformações. Mas nem tudo o que queremos nos é possível. Há gargalos e obstáculos que impedem a conquista de todos os nossos desejos, seja na vida individual ou coletiva. Os padrões mudam com a evolução da história. As comunidades nômades primitivas atendiam suas necessidades básicas caçando, pescando e coletando na natureza tudo que era necessária à sua subsistência. Com a evolução da civilização, o crescimento demográfico e o desenvolvimento da economia nasceram a agricultura, o comércio, a moeda, a indústria, os serviços, o mercado, as trocas internacionais. E descobrimos que existem limites. Não bastam os desejos. Há um conceito simples e incômodo chamado restrição orçamentária, na vida pessoal, empresarial e governamental.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Chacina de Aracruz exige maior atenção das autoridades

O Globo

É fundamental deter escalada de morticínios em escolas antes que se tornem corriqueiros como nos EUA

Na sexta-feira da semana passada, pela manhã, cenas de barbárie chocaram o país. Em Aracruz, Espírito Santo, um jovem de 16 anos usando roupas camufladas, máscara, colete à prova de balas, um revólver e uma pistola semiautomática invadiu duas escolas, uma pública e outra privada, atirando em quem encontrou pela frente. Transformou o município de pouco mais de 100 mil habitantes em cenário de filme de horror. A carnificina deixou quatro mortos, entre eles uma menina de 12 anos, e dez feridos. Cinco vítimas, duas delas crianças, estavam ontem internadas ainda.

O assassino foi localizado horas depois numa casa de praia da família e, segundo a polícia, confessou o crime com surpreendente tranquilidade. Por ser menor, foi levado ao Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo em Cariacica. Responderá por ato infracional análogo a quatro assassinatos qualificados (por motivo fútil) e dez tentativas de homicídio.

O caso, repleto de lacunas, está sob investigação. Até agora não está claro o que motivou o massacre. A pistola, o revólver e o carro usados no crime pertencem ao pai do rapaz, tenente da Polícia Militar do Espírito Santo. Não se sabe como o adolescente teve acesso às armas e aprendeu a manuseá-las. De acordo com as investigações, ele planejou o atentado por dois anos. A polícia apura se agiu sozinho e se tem ligação com grupos extremistas. Em depoimento, disse que simpatizava com ideias nazistas — na roupa usada nos ataques às escolas, havia uma suástica.

Poesia | Mãos Dadas - Joaquim Cardozo (interpretado por Lauro Moreira)

 

Música | Marisa Monte - Felicidade (Lupicínio Rodrigues - Porto Alegre)

 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Fernando Luiz Abrucio* - Reconstruir as política pública (1)

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

O sucesso delas vincula-se cada vez mais à sua combinação com outras, e não à sua atuação isolada

Entre os especialistas, não há dúvida: o governo Bolsonaro destruiu as políticas públicas brasileiras. A PEC da Transição pode ter um papel importante para recompor gastos em saúde, educação, meio ambiente e outras áreas essenciais, mas a reconstrução vai muito além da ampliação das despesas. São muitos os desafios de governança e gestão, e pretendo tratar de alguns deles numa série de dois artigos. Neste primeiro, o tema é a necessidade de articular as políticas públicas, pois nenhuma sozinha resolve problemas complexos. Aproveitando o clima de Copa do Mundo, o exemplo que finaliza o texto é o da articulação da política educacional com o esporte.

As lógicas setoriais têm uma função central na provisão de bens e serviços à sociedade. Por isso, os ciclos do sistema de ensino são fundamentais para definir o público-alvo e a forma de desenvolvê-lo no campo da educação, do mesmo modo que os níveis de complexidade na saúde racionalizam o atendimento dos indivíduos. Sem uma boa organização interna de cada área governamental, é impossível garantir os direitos dos cidadãos. Só que a resolução de questões coletivas depende cada vez mais de formas de articulação entre as políticas, como revelam os estudos e as experiências internacionais e nacionais bem-sucedidas.

Três motivos gerais explicam a necessidade de articulação entre as políticas públicas. A primeira diz respeito à melhoria da eficiência do gasto público. É preciso cada vez mais otimizar os recursos públicos, fazendo mais com menos, visto que o orçamento sempre crescerá menos do que as demandas sociais. O exemplo da PEC da Transição ilustra bem isso, uma vez que se é fundamental garantir verbas estáveis para combater a pobreza, ela não será combatida apenas com mais dinheiro. O governo Bolsonaro ampliou os gastos com transferências de rendas, mesmo que inicialmente à revelia e depois por cálculos eleitorais, mas o contingente de pessoas que passam fome aumentou. Muitos vão dizer que faltou foco, o que é verdade, mas também faltou diálogo entre as políticas públicas.