Valor Econômico
País precisa extrair lições do julgamento e banir militares da política para que atentados contra a democracia não se repitam
A mineira Cármen Lúcia, responsável pelo voto
decisivo no julgamento encerrado na quinta-feira, iniciou sua fala relembrando
um poema de Affonso Romano de Sant’Anna - outro mineiro, embora ela seja de
Montes Claros e ele, falecido recentemente, fosse natural de Belo Horizonte.
Ou melhor: o poeta era mineiro, mas a
ministra se considera “geraizeira”, como esclareceu numa célebre entrevista
alguns anos atrás a Pedro Bial. Sim, “Minas é muitas; são, pelo menos, várias
Minas”, sentenciou Guimarães Rosa num ensaio de 1957.
Cármen Lúcia explicou no “Conversa com Bial” que existe a região das Minas, dos subterrâneos de ouro e das montanhas de ferro, e há também os Gerais, o descampado de cerrado dos “Grandes Sertões: Veredas”. Essa dupla geografia se manifesta em tipos com personalidades completamente diferentes nascidos no mesmo Estado.
“O ‘mineiro’ toma a banana do macaco, deixa o
macaco agradecido, satisfeito, como se ele ainda devesse um favor, com uma
facilidade impressionante”. A decana da Primeira Turma do STF, contudo, admitiu
não ter essa habilidade política famosa nacionalmente: “Eu queria ser, ainda
estou aprendendo a ser mineira. O ‘geraizeiro’ briga com o macaco quando o
macaco toma sua banana”.
Como comentei na cobertura ao vivo que
o Valor fez
do julgamento, Cármen Lúcia negou as raízes briguentas típicas de quem nasce
nos Gerais e fez uma referência bastante “mineira” à obra de Romano de
Sant’Anna.
Na introdução de seu voto, pinçou alguns
versos de “Que país é este?”: “Uma coisa é um país, outra um monumento. / Uma
coisa é um país, outra o aviltamento”. E concluiu com outro trecho: “Este é o
país do descontínuo, onde nada congemina” - ou seja, se multiplica, se amplia,
se pluraliza.
Foi uma demonstração da habilidade e da
sutileza política que honra a tradição dos mineiros. Afinal, a ministra estava
prestes a julgar, além do ex-presidente e ex-capitão, três generais, um
almirante, um tenente-coronel, um delegado da Polícia Federal e outro da
Polícia Civil.
Tivesse sido mais geraizeira, Cármen Lúcia
poderia ter começado, logo de cara, com os versos muito mais diretos contra os
militares que abrem o poema de Sant’Anna: “Uma coisa é um país, outra um
ajuntamento / Uma coisa é um país, outra um regimento / Uma coisa é um país,
outra o confinamento.”
“Que país é este?” foi publicado por Affonso
Romano de Sant’Anna em 1980, quando a sociedade civil se mobilizava pelo fim da
ditadura militar - tanto que o poema é dedicado a Raymundo Faoro, autor de “Os
Donos do Poder” e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil entre 1977 e
1979, com intensa atuação pela redemocratização do país.
Dividido em sete grandes estrofes, o poema
também revela uma inversão de papéis. Romano de Sant’Anna deixa de lado o trato
jeitoso dos mineiros e compra corajosamente a briga com os fardados que
comandavam com mãos de chumbo o Brasil.
“Há 500 anos caçamos índios e operários / há
500 anos queimamos árvores e hereges / há 500 anos estupramos livros e mulheres
/ há 500 anos sugamos negras e aluguéis”. Num país que àquela altura já era
governado há 16 anos pelos militares, Sant’Anna faz um balanço: “Minha geração
se fez de terços e rosários: um terço se exilou, um terço se fuzilou, um terço
desesperou”.
A proporção pode não ser exata, mas com a
ditadura a censurar a imprensa e as artes, as estatísticas também não eram
confiáveis. E continua: “Mas este é um povo bom / me pedem que repita / como um
monge cenobita / enquanto me dão porrada / e me vigiam a escrita”.
Em nome do povo, aliás, os militares se
imiscuem na política, destinados “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, como
prega o infame art. 142 da Constituição, concessão feita às Forças Armadas em
1988 e interpretado erroneamente pelos defensores de golpes.
Mas Affonso Romano de Sant’Anna, abrindo a
última parte de seu poema negando-se um poeta mineiro, desafia os militares que
tomaram o poder em 1964 para defender o povo do comunismo: “Povo / não pode ser
sempre o coletivo de fome. / Povo / não pode ser um séquito sem nome. / Povo /
não pode ser o diminutivo de homem.”
Nas eleições de 2022 foram eleitos pelo menos
91 militares ou candidatos que usavam patentes militares como nome de urna para
o Legislativo e o Executivo estaduais e federal. Dentro do Poder Executivo, há
ainda hoje milhares de membros das Forças Armadas e das polícias civis ocupando
cargos de comissão em posições estratégicas do Ministério da Defesa (que
deveria ser conduzido por civis) e no Palácio do Planalto.
Nós brasileiros não podemos depender da
habilidade política ou da coragem briguenta de poetas e ministros - seja
paulistano, maranhense, mineira ou paulista (carioca infelizmente não).
Se não banirmos os militares definitivamente da política, em breve voltaremos a julgar novas tentativas de golpe ou a resistir às suas manobras por anistia. Afinal, um poeta mineiro e uma ministra geraizeira nos lembram que somos o país do descontínuo.
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