segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O herói vingador que sabe mais. Por Demétrio Magnoli

O Globo

Para seus eleitores, ele acalenta um plano sigiloso, de longo curso, que trará a redenção

Atônitos desde a derrota de Kamala Harris, os democratas acreditam que acharam uma bússola. O norte, imaginam, chama-se Jeffrey Epstein. Divulgando uma página do “livro de aniversário” dos arquivos judiciais do caso Epstein, um documento de 2003, sonham lancetar o coração político de Trump.

A página contém um diálogo ficcional entre Trump e Epstein, pleno de subentendidos sexuais e emoldurado pelos contornos de um corpo feminino. A assinatura parece ser Trump, algo que ele nega. Trata-se de mais uma prova da amizade pretérita entre os dois, fato de domínio público, mas não constitui evidência de envolvimento nas aventuras criminosas do financista pedófilo. Por que, então, os democratas sentem o cheiro do sangue?

Epstein criou uma rede de tráfico sexual de menores na Flórida e em Nova York. Circulava nas rodas da elite, entre figuras como Bill Clinton, o príncipe Andrew e o próprio Trump. Morreu na prisão em 2019, aos 66, em circunstâncias misteriosas. Sem o QAnon e o Maga, seria apenas uma história policial.

QAnon, corrente de redes sociais dedicada a investigar uma suposta conspiração mundial da elite pedófila, fixou-se no caso Epstein. Para os aderentes febris, era a face visível de um mundo subterrâneo com líderes políticos e empresários que, em meio a rituais satânicos de abusos de crianças, consagram-se à dominação global. São óbvios os paralelismos com os Protocolos dos Sábios do Sião, a célebre falsificação antissemita.

O QAnon introduziu-se na esfera da política durante a campanha presidencial de 2016, quando parte de seus adeptos aderiu ao Maga, o movimento Make America Great Again, de Trump. Alguns deles, como Marjorie Taylor Greene, chegaram ao Congresso e tornaram-se destacadas lideranças trumpistas. A narrativa conspiratória ganhou, então, uma nova camada, pela identificação de Trump como agente especial convocado pelos militares para a missão secreta de exterminar a elite pedófila.

Na estrutura lógica das teorias da conspiração, há um lugar reservado ao Herói. A amizade de Trump com Epstein foi traduzida como estratagema de infiltração. Trump cartografaria a organização da elite pedófila, a fim de aplicar-lhe o golpe letal.

A morte de Epstein, seguida pelos lockdowns da pandemia, assinalou o ápice da imbricação do QAnon com o Maga. Trump não aderiu à teoria conspiratória, mas, habilmente, ofereceu estímulos aos crentes. A invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, contou com a participação de soldados rasos do QAnon persuadidos de que, finalmente, chegara o momento da redenção.

Na campanha de 2024, Trump apelou diretamente à narrativa da conspiração. Ele e seu vice, JD Vance, acusaram os democratas pelo sigilo judicial imposto aos arquivos do caso Epstein, prometendo divulgá-los por completo. Hoje, diante da violação da promessa, são os democratas que exigem a publicidade dos documentos, disseminando a suspeita de cumplicidade do presidente com os crimes do financista. A esperança é apropriar-se da lógica conspiratória, voltando-a contra Trump.

A manobra dá resultados. No Maga, alguns acusam o presidente de aliar-se ao “Estado profundo”, enquanto outros desesperam-se com sua aparente impotência ante a poderosa elite global. Acossado, Trump alega, variadamente, que os arquivos nada contêm ou que foram falsificados por um conluio entre Obama, Hillary Clinton e Biden.

Xeque-mate? Suspeito que não. Na arquitetura mental das narrativas conspiratórias, a teoria ajusta-se constantemente às circunstâncias, acomodando sucessivas frustrações. Ao final, o Herói sempre escapa ileso, pois sabe mais: conhece o que não somos capazes de conjecturar. Ele acalenta um plano sigiloso, de longo curso, que trará a redenção. Se não age agora, tem motivos tão perfeitos quanto insondáveis.

A insistência no tema de Epstein revela, paradoxalmente, a crise da oposição nos Estados Unidos. O presidente perde popularidade devido à inflação, à guerra tarifária, à truculência contra imigrantes, aos insucessos externos. Mas, sem rumo desde a falência catastrófica de seus discursos identitários, os democratas desviam o combate à arena conspiratória, que pertence a Trump. Não é por aí.

 

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