O Globo
Para seus eleitores, ele acalenta um plano
sigiloso, de longo curso, que trará a redenção
Atônitos desde a derrota de Kamala
Harris, os democratas acreditam que acharam uma bússola. O norte, imaginam,
chama-se Jeffrey Epstein. Divulgando uma página do “livro de aniversário” dos
arquivos judiciais do caso Epstein, um documento de 2003, sonham lancetar o
coração político de Trump.
A página contém um diálogo ficcional entre Trump e Epstein, pleno de subentendidos sexuais e emoldurado pelos contornos de um corpo feminino. A assinatura parece ser Trump, algo que ele nega. Trata-se de mais uma prova da amizade pretérita entre os dois, fato de domínio público, mas não constitui evidência de envolvimento nas aventuras criminosas do financista pedófilo. Por que, então, os democratas sentem o cheiro do sangue?
Epstein criou uma rede de tráfico sexual de
menores na Flórida e em Nova York. Circulava nas rodas da elite, entre figuras
como Bill Clinton, o príncipe Andrew e o próprio Trump. Morreu na prisão em
2019, aos 66, em circunstâncias misteriosas. Sem o QAnon e o Maga, seria apenas
uma história policial.
QAnon, corrente de redes sociais dedicada a
investigar uma suposta conspiração mundial da elite pedófila, fixou-se no caso
Epstein. Para os aderentes febris, era a face visível de um mundo subterrâneo
com líderes políticos e empresários que, em meio a rituais satânicos de abusos
de crianças, consagram-se à dominação global. São óbvios os paralelismos com os
Protocolos dos Sábios do Sião, a célebre falsificação antissemita.
O QAnon introduziu-se na esfera da política
durante a campanha presidencial de 2016, quando parte de seus adeptos aderiu ao
Maga, o movimento Make America Great Again, de Trump. Alguns deles, como Marjorie
Taylor Greene, chegaram ao Congresso e tornaram-se destacadas lideranças
trumpistas. A narrativa conspiratória ganhou, então, uma nova camada, pela
identificação de Trump como agente especial convocado pelos militares para a
missão secreta de exterminar a elite pedófila.
Na estrutura lógica das teorias da
conspiração, há um lugar reservado ao Herói. A amizade de Trump com Epstein foi
traduzida como estratagema de infiltração. Trump cartografaria a organização da
elite pedófila, a fim de aplicar-lhe o golpe letal.
A morte de Epstein, seguida pelos lockdowns da pandemia,
assinalou o ápice da imbricação do QAnon com o Maga. Trump não aderiu à teoria
conspiratória, mas, habilmente, ofereceu estímulos aos crentes. A invasão do
Capitólio, em janeiro de 2021, contou com a participação de soldados rasos do
QAnon persuadidos de que, finalmente, chegara o momento da redenção.
Na campanha de 2024, Trump apelou diretamente
à narrativa da conspiração. Ele e seu vice, JD Vance, acusaram os democratas
pelo sigilo judicial imposto aos arquivos do caso Epstein, prometendo
divulgá-los por completo. Hoje, diante da violação da promessa, são os
democratas que exigem a publicidade dos documentos, disseminando a suspeita de
cumplicidade do presidente com os crimes do financista. A esperança é
apropriar-se da lógica conspiratória, voltando-a contra Trump.
A manobra dá resultados. No Maga, alguns
acusam o presidente de aliar-se ao “Estado profundo”, enquanto outros
desesperam-se com sua aparente impotência ante a poderosa elite global.
Acossado, Trump alega, variadamente, que os arquivos nada contêm ou que foram
falsificados por um conluio entre Obama, Hillary Clinton e Biden.
Xeque-mate? Suspeito que não. Na arquitetura
mental das narrativas conspiratórias, a teoria ajusta-se constantemente às
circunstâncias, acomodando sucessivas frustrações. Ao final, o Herói sempre
escapa ileso, pois sabe mais: conhece o que não somos capazes de conjecturar.
Ele acalenta um plano sigiloso, de longo curso, que trará a redenção. Se não
age agora, tem motivos tão perfeitos quanto insondáveis.
A insistência no tema de Epstein revela,
paradoxalmente, a crise da oposição nos Estados Unidos.
O presidente perde popularidade devido à inflação, à guerra tarifária, à
truculência contra imigrantes, aos insucessos externos. Mas, sem rumo desde a
falência catastrófica de seus discursos identitários, os democratas desviam o
combate à arena conspiratória, que pertence a Trump. Não é por aí.
Nenhum comentário:
Postar um comentário