Folha de S. Paulo
Para nossa democracia ser segura, nosso povo
também precisa se sentir seguro
Na corrida por votos em 2026, candidatos à
direita falam em "pacificar" o país. O que passa, em sua visão,
por perdoar golpistas poderosos. Nada é mais contraintuitivo. Se a
ideia é promover paz, vamos deixar de responsabilizar pessoas que querem impor
sua vontade por meio de ameaças e violência?
Vamos fingir que nada grave aconteceu e seguir a vida? Vamos deixar o caminho aberto para que novas violências, e talvez mais graves, sejam cometidas? Que paz é essa?
Imagine um abusador que já abusou de várias
crianças, inclusive suas próprias filhas. Não foi uma vez, não foram duas, não
foram três. Mas várias e várias vezes. Uma das filhas tentou falar, mas ninguém
a ouviu.
A família toda sabia, mas ninguém nunca fez
nada. As filhas entenderam então que o abuso era algo normal. O tempo passou e
elas se tornaram adolescentes. E o abusador, livre de qualquer consequência
pelas violências que praticou, continuou a abusar das jovens.
Um dia, porém, o criminoso foi denunciado por
uma vizinha. Na visão do abusador, ele não fazia nada de errado. Por isso, ele
não havia se preocupado em esconder seus crimes. As evidências eram tantas, e
tão abundantes, que não foi difícil para a Justiça reconhecer as violências
cometidas.
No entanto, algumas pessoas da família saíram
em sua defesa. Em sua visão, era preciso perdoar o abusador. Afinal, ele era um
homem honesto e admirado na sociedade. Muitas pessoas gostavam dele. A pressão
foi tanta, que o caso acabou arquivado. Passados alguns anos, o abusador voltou
a cometer violências contra as crianças de sua família. Agora, em vez das
filhas, as vítimas eram seus netos.
Em 2023, foram registrados 40.659 estupros de
menores de 13 anos no país, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública. São quatro estupros por hora. A maior parte dos crimes acontece dentro
de casa, praticada pelos próprios familiares.
Vários abusadores seguem impunes. Sobretudo
quando são homens dos quais outras pessoas dependem. Homens poderosos. Homens
respeitados socialmente. Homens que ocupam altos cargos. Muitos pensam: é
melhor perdoar. Melhor esquecer. Para que trazer isso à tona? Melhor ter paz.
Os abusadores da nossa democracia, que
ameaçaram, torturaram e assassinaram pessoas usando a força conferida pelo
Estado, já foram "perdoados" todas as vezes que deram e tentaram
golpes. Por mais de 130 anos foi assim.
O Brasil já aprovou nove decretos e leis que
anistiaram pessoas, sobretudo militares, que tentaram virar a mesa. Até o dia
11 de setembro, o Brasil nunca havia responsabilizado de fato nenhum golpista em
sua história. Sempre houve a tal "pacificação". E por isso mesmo,
continuamos a conviver com novas tentativas de golpe. É hora de dizer chega.
A cultura da impunidade para golpistas
poderosos deve acabar. Nossas instituições precisam ser seguras. Mas para nossa
democracia ser segura, nosso povo também precisa se sentir seguro.
Se a ideia é pacificar de fato o país,
precisamos enfrentar a realidade que faz com que a violência seja a principal
preocupação dos brasileiros hoje. O povo merece paz. Criminosos e golpistas
poderosos, não.
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