segunda-feira, 15 de setembro de 2025

O julgamento visto das quebradas. Por Preto Zezé

O Globo

STF, ao condenar um ex-presidente, envia recado. Mas, se ele não chega traduzido às favelas, vira só notícia de rico pra rico

A condenação de Bolsonaro, de generais e gestores pelo Supremo entra para a História como marco contra a tentativa de golpe. Mas, nas favelas, o reflexo é ambíguo. Para alguns, vitória da democracia. Para outros, mais uma cena de um teatro onde a favela nunca é chamada a atuar — só a sangrar. Ali, Justiça não chega de toga, mas de viatura: bate de madrugada, enquadra sem explicação, executa sem defesa. Eis a chance de mostrar que o Estado de Direito vale para todos.

O Brasil segue dividido entre quem tem o direito de ser cidadão e quem vive sob punição permanente. A polarização política virou método de deseducação. O menino da favela aprende cedo que justiça é só para rico; certo e errado não estão na lei, mas no bolso de quem pode pagar por ela. Por isso, a condenação de um ex-presidente não traz alívio imediato, mas desconfiança:

— E os outros, serão punidos também? Isso é justiça ou vingança? Quando a justiça chega pra nós?

A favela é território aonde o Estado chega com força, mas sem escuta. Onde mães solo carregam o mundo nos ombros, e ausência paterna é regra. Onde não há tempo para falar de democracia, porque a vida é urgência. Meninos crescem tendo a polícia, e não o professor, como referência de autoridade. Que cidadão nasce daí?

Cada decisão institucional é também pedagógica. O Supremo, ao condenar um ex-presidente, envia recado. Mas, se ele não chega traduzido às quebradas, vira só notícia de rico pra rico, julgamento distante que não muda o cotidiano de quem vive na lógica da sobrevivência. A democracia não se fortalece apenas nas urnas, mas nas vielas, escolas públicas, cozinhas onde mulheres tentam manter os filhos vivos. Nesses espaços, a Justiça deve aparecer não só para punir, mas para proteger.

Quando alcança os grandes, surge a chance de mostrar que não há intocáveis. Mas só vira lição se a favela for chamada para a aula, com tradução e participação. Sem isso, tudo é espetáculo, e o futuro seguirá nas mãos de meninos criados no silêncio da omissão — com raiva e abandono que depois viram violência.

A Justiça precisa ser instrumento de reconstrução do pacto social, não apenas de castigo. Esse pacto deve incluir favelas e periferias como parte ativa da construção de um país onde ninguém fique para trás — nem no banco dos réus, nem na porta da escola, nem no berço. Cabe à Justiça proteger a Constituição não só em seu sentido de lei e ordem, mas em seu compromisso com direitos fundamentais. Porque a desigualdade — o crime persistente que corrói o Brasil — precisa ser combatida e extirpada. Que a Justiça seja, de fato, guardiã de uma sociedade igualitária, como inspira a Constituição de 1988.

 

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