O Globo
STF, ao condenar um ex-presidente, envia
recado. Mas, se ele não chega traduzido às favelas, vira só notícia de rico pra
rico
A condenação de Bolsonaro, de generais e
gestores pelo Supremo entra para a História como marco contra a tentativa de
golpe. Mas, nas favelas, o reflexo é ambíguo. Para alguns, vitória da
democracia. Para outros, mais uma cena de um teatro onde a favela nunca é
chamada a atuar — só a sangrar. Ali, Justiça não chega de toga, mas de viatura:
bate de madrugada, enquadra sem explicação, executa sem defesa. Eis a chance de
mostrar que o Estado de Direito vale para todos.
O Brasil segue dividido entre quem tem o direito de ser cidadão e quem vive sob punição permanente. A polarização política virou método de deseducação. O menino da favela aprende cedo que justiça é só para rico; certo e errado não estão na lei, mas no bolso de quem pode pagar por ela. Por isso, a condenação de um ex-presidente não traz alívio imediato, mas desconfiança:
— E os outros, serão punidos também? Isso é
justiça ou vingança? Quando a justiça chega pra nós?
A favela é território aonde o Estado chega
com força, mas sem escuta. Onde mães solo carregam o mundo nos ombros, e
ausência paterna é regra. Onde não há tempo para falar de democracia, porque a
vida é urgência. Meninos crescem tendo a polícia, e não o professor, como
referência de autoridade. Que cidadão nasce daí?
Cada decisão institucional é também
pedagógica. O Supremo, ao condenar um ex-presidente, envia recado. Mas, se ele
não chega traduzido às quebradas, vira só notícia de rico pra rico, julgamento
distante que não muda o cotidiano de quem vive na lógica da sobrevivência. A
democracia não se fortalece apenas nas urnas, mas nas vielas, escolas públicas,
cozinhas onde mulheres tentam manter os filhos vivos. Nesses espaços, a Justiça
deve aparecer não só para punir, mas para proteger.
Quando alcança os grandes, surge a chance de
mostrar que não há intocáveis. Mas só vira lição se a favela for chamada para a
aula, com tradução e participação. Sem isso, tudo é espetáculo, e o futuro
seguirá nas mãos de meninos criados no silêncio da omissão — com raiva e
abandono que depois viram violência.
A Justiça precisa ser instrumento de
reconstrução do pacto social, não apenas de castigo. Esse pacto deve incluir
favelas e periferias como parte ativa da construção de um país onde ninguém
fique para trás — nem no banco dos réus, nem na porta da escola, nem no berço.
Cabe à Justiça proteger a Constituição não só em seu sentido de lei e ordem,
mas em seu compromisso com direitos fundamentais. Porque a desigualdade — o
crime persistente que corrói o Brasil — precisa ser combatida e extirpada. Que
a Justiça seja, de fato, guardiã de uma sociedade igualitária, como inspira a
Constituição de 1988.

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