segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Mudanças institucionais históricas e o julgamento de Bolsonaro. Por Marcus André Melo

Folha de S. Paulo

Os julgamentos de presidentes por golpes ou corrupção representam avanços, mas o saldo institucional líquido para o STF terá sido negativo

O caráter histórico do julgamento da conspiração tem sido reiterado por analistas de diversas matizes. Douglass North (Nobel de Economia) e coautores enfatizam o controle civil sobre os militares como uma das pré-condições para a transição a uma "ordem social de acesso aberto" (que combina democracia e prosperidade) ao lado do império da lei e de organizações impessoais.

Julgamentos e condenações de presidentes por golpes ou corrupção têm se tornado muito mais frequentes em todo mundo inclusive na Europa. Da Ros e Gehrke, com dados para 1946-2022, mostram que há, a partir dos anos 1990, mudança qualitativa e quantitativa: a proporção de líderes condenados sobe de cerca de 2% para 9%. As condenações criminais tornam-se mais comuns e a punição violenta e arbitrária menos frequente. Considerando todos os chefes de governo que deixam o cargo, a probabilidade de um líder ser morto, encarcerado ou ir para o exílio no primeiro ano pós-mandato cai de mais de 30% (1960–1980) para apenas 12% (2000–2015).

O eixo da responsabilização deslocou-se com o tempo de golpes para a corrupção —subornos, enriquecimento ilícito, manipulação de recursos estatais. O golpe que está sendo julgado é prima facie uma reversão desse movimento; mas ele foi abortado endogenamente, o que sugere resiliência do próprio estamento militar. É algo novo. E como já argumentei aqui não se trata apenas de decisões individuais de generais. Há uma dimensão institucional.

A aplicação do império da lei e a punição a setores da elite política e empresarial no mensalão foi também histórica; foi aplicada por tribunal com maioria nomeada pelo incumbente e alcançou a cúpula do partido no poder e a presidente de um banco —o 0,01% da distribuição de renda— , condenada e mantida por três anos em regime fechado. O padrão histórico — no Brasil e fora — era punir, quando muito, políticos após deixarem o cargo, e por obra de uma elite rival.

O país da impunidade garantida por formalismo e seletividade penal —dos três Ps: "no Brasil, só vai para a cadeia preto, pobre e puta"— parecia romper com o passado. Simbolicamente, o processo do mensalão invertia esse padrão. Por pouco tempo. A sina do julgamento do golpe pode ser similar, podendo levar a retrocessos e nulidades anômalas —como na Lava Jato, que discuti aqui.

Antes do processo, afirmei aqui na coluna que, sob qualquer cenário, o saldo do julgamento seria negativo para o STF por hiperpartidarismo, confusão entre julgador e vítima (o primeiro também foi alvo de ataque instigado pelo próprio presidente), questão do foro, padrão personalista de nomeação dos ministros, julgamento em turma, monocratismo...

A alternativa à Moraes como relator incluiria cenários ainda piores: ex-advogado pessoal do presidente e/ou políticos que são adversários notórios dos réus. Quando apontei esses aspectos, a bizarra interferência de Trump ainda não havia ocorrido, o que exacerbou o nível de conflito em torno do julgamento em algumas ordens de magnitude. Aliás, a recepção do julgamento por analistas nos EUA faz tabula rasa dos aspectos apontados porque enfoca apenas a (necessária) resistência à Trump.
O resultado é avanço pírrico com potencial de retrocesso futuro.

 

 

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