segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Constituição cidadã gerou punição a militares por golpe, dizem historiadores. Por Gustavo Zeitel

Folha de S. Paulo

Ampliação de direitos básicos à população criou consciência sobre democracia, mas anistia perpetuaria impunidade

Em voto decisivo no julgamento da trama golpista, a ministra Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal), recordou os sucessivos golpes de Estado no Brasil, citando a ruptura democrática de 1964 que instaurou a ditadura militar. Se já é clichê ver um marco histórico na condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a 27 anos de prisão, também é verdade que a punição aos oito integrantes da conspirata não pode ser compreendida sem a clareza dos motivos que levaram ao tão alardeado ineditismo.

Afinal, excedidos movimentos regionais, como a Revolta Paulista de 1924, é de fato a primeira vez que militares são punidos no Brasil por atentados contra o poder constituído. Historiadores identificam três razões que viabilizaram, enfim, a responsabilização dos militares: a Constituição de 1988, que expandiu e legitimou direitos da sociedade, construindo um consenso sobre a preservação da democracia, a diminuição da desigualdade social e a falta de apoio da elite econômica à impunidade dos golpistas.

"A Constituição de 1988, o fortalecimento do Ministério Público, da Polícia Federal e do próprio STF permitiram ao país enfrentar graves crises políticas", diz o historiador Carlos Fico, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Entre os condenados, estão os generais Walter Braga NettoAugusto Heleno Paulo Sérgio Nogueirao almirante Almir Garnier e o tenente-coronel Mauro Cid.

Nos últimos dias, Fico postou em suas redes sociais uma tabela que montou durante a pesquisa para o seu livro recém-lançado, "Utopia Autoritária Brasileira". Nela, contabilizam-se 14 tentativas de golpe no Brasil só no período republicano. Observa-se uma repetição com características de sintoma: todos os golpes fracassados foram seguidos de anistias.

Na visão do historiador, o perdão reiterado só gerou impunidade e autorizou as mesmas pessoas —quase sempre integrantes das Forças Armadas, instituições que detêm o monopólio da violência— a praticar novos golpes. Ele lembra, por exemplo, a anistia dada, em 1956, pelo ex-presidente Juscelino Kubitschek a oficiais da Aeronáutica que, quatro anos depois, tentaram destituir o próprio JK do poder. Para sanar de vez o sintoma, Fico se diz contra os projetos de anistia, agora pleiteados pela oposição no Congresso.

O historiador Thiago Krause, da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), afirma que a desigualdade social é o elemento estrutural do ciclo golpista. Numa sociedade desigual, conta ele, torna-se mais fácil romper as estruturas políticas sem que haja consequências para os usurpadores do poder. Krause diz não se tratar de uma herança colonial, mas de uma reprodução consciente da desigualdade.

"Agora é o primeiro momento que você tem, no limite, o mínimo consenso social para condenar golpistas", afirma Krause. "Isso se deve aos direitos assegurados pela Constituição de 1988 e pela expansão de assistências sociais e serviços básicos. Só assim o Estado conseguiu enfrentar a resistência das elites, construindo uma legitimidade social para a condenação dos réus."

Em diálogo com a tabela de Carlos Fico, o também historiador Rodrigo Goyena, da USP (Universidade de São Paulo), identifica a Proclamação da República como o pecado original do golpismo. Afinal, a forma de governo hoje constituída no Brasil originou-se de um golpe civil-militar. Liderados por Marechal Deodoro da Fonseca, militares, vencedores da Guerra do Paraguai, associaram-se a elites escravistas para destituir Dom Pedro 2º. Na ocasião, diz Goyena, inaugurou-se a ideia de que os militares seriam uma força política ilustrada, em contraste com a massa ignara e os próprios políticos, vistos como demagógicos.

"Em geral, a reiteração golpista acontece no Brasil quando há um desalinhamento entre governo, capital produtivo e setor financeiro. Quando as três unidades se desalinham, os militares entram em cena", afirma Goyena, concordando que a desigualdade contribui para o ciclo de golpes e anistias. "É um padrão que diz respeito à forma como o país se comporta em transições históricas, com uma articulação para preservar o status quo, em que a classe dirigente preserva interesses. Anistia sugere preservação e reacomodação."

Goyena, porém, é mais cético quanto atribuir à Constituição o julgamento inédito de militares. Em sua visão, o que possibilitou a resposta aos golpistas foi uma divisão de militares, governo e as unidades do poder econômico. Ao menos até agora, diz ele, não houve consenso na elite para sustentar a impunidade.

Ponto de inflexão na história, a condenação dos réus da trama golpista produz dúvidas em relação ao passado e ao futuro. Os historiadores divergem, por exemplo, sobre a capacidade do julgamento de ampliar o interesse da sociedade pela memória do golpe de 1964.

De um lado, Fico diz ser irônico um governo como o de Bolsonaro, tão militarista, servir para iluminar os horrores da ditadura, em um momento de intensa produção cultural sobre o período, com os sucessos do filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, da peça teatral "Lady Tempestade", de Sílvia Gómez. Do outro, Krause afirma que os setores progressistas não têm força necessária para disputar a memória do golpe.

Do mesmo modo, o Brasil abrigou, ao longo do século 20, o maior movimento de inspiração fascista fora da Europa, a Ação Integralista Brasileira, cujo lema era "Deus, Pátria, Família", o mesmo adotado pelo bolsonarismo. "Nunca deixou de haver uma direita extremada no Brasil", diz Krause. "O que faltou por algum tempo foi um partido organizado que assumisse suas bandeiras."

 

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