Folha de S. Paulo
Ampliação de direitos básicos à população
criou consciência sobre democracia, mas anistia perpetuaria impunidade
Em voto decisivo no julgamento da trama
golpista, a ministra
Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal), recordou os sucessivos
golpes de Estado no Brasil, citando a ruptura democrática de 1964 que instaurou
a ditadura
militar. Se já é clichê ver um marco histórico na condenação do ex-presidente
Jair Bolsonaro (PL) a 27 anos de prisão, também é verdade que a punição aos
oito integrantes da conspirata não pode ser compreendida sem a clareza dos
motivos que levaram ao tão alardeado ineditismo.
Afinal, excedidos movimentos regionais, como a Revolta Paulista de 1924, é de fato a primeira vez que militares são punidos no Brasil por atentados contra o poder constituído. Historiadores identificam três razões que viabilizaram, enfim, a responsabilização dos militares: a Constituição de 1988, que expandiu e legitimou direitos da sociedade, construindo um consenso sobre a preservação da democracia, a diminuição da desigualdade social e a falta de apoio da elite econômica à impunidade dos golpistas.
"A Constituição de
1988, o fortalecimento do Ministério Público, da Polícia Federal e do
próprio STF permitiram
ao país enfrentar graves crises políticas", diz o historiador Carlos Fico,
professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Entre os
condenados, estão os generais Walter
Braga Netto, Augusto
Heleno e Paulo
Sérgio Nogueira, o
almirante Almir Garnier e o tenente-coronel
Mauro Cid.
Nos últimos dias, Fico postou em suas redes
sociais uma tabela que montou durante a pesquisa para o seu livro
recém-lançado, "Utopia
Autoritária Brasileira". Nela, contabilizam-se 14 tentativas de golpe
no Brasil só no período republicano. Observa-se uma repetição com
características de sintoma: todos os golpes fracassados foram seguidos de
anistias.
Na visão do historiador, o perdão reiterado
só gerou impunidade e autorizou as mesmas pessoas —quase sempre integrantes das
Forças Armadas, instituições que detêm o monopólio da violência— a praticar
novos golpes. Ele lembra, por exemplo, a anistia dada, em 1956, pelo ex-presidente
Juscelino Kubitschek a oficiais da Aeronáutica que, quatro anos depois,
tentaram destituir o próprio JK do poder. Para sanar de vez o sintoma,
Fico se diz contra os projetos de anistia, agora pleiteados pela oposição no
Congresso.
O historiador Thiago Krause, da Unirio
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), afirma que a desigualdade
social é o elemento estrutural do ciclo golpista. Numa sociedade desigual,
conta ele, torna-se mais fácil romper as estruturas políticas sem que haja
consequências para os usurpadores do poder. Krause diz não se tratar de uma
herança colonial, mas de uma reprodução consciente da desigualdade.
"Agora é o primeiro momento que você
tem, no limite, o mínimo consenso social para condenar golpistas", afirma
Krause. "Isso se deve aos direitos assegurados pela Constituição
de 1988 e pela expansão de assistências sociais e serviços básicos. Só
assim o Estado conseguiu enfrentar a resistência das elites, construindo uma
legitimidade social para a condenação dos réus."
Em diálogo com a tabela de Carlos Fico, o
também historiador Rodrigo Goyena, da USP (Universidade de São Paulo),
identifica a Proclamação da República como o pecado original do golpismo.
Afinal, a forma de governo hoje constituída no Brasil originou-se de um golpe
civil-militar. Liderados por Marechal Deodoro da Fonseca, militares, vencedores
da Guerra do Paraguai, associaram-se a elites escravistas para destituir
Dom Pedro 2º. Na ocasião, diz Goyena, inaugurou-se a ideia de que os militares
seriam uma força política ilustrada, em contraste com a massa ignara e os
próprios políticos, vistos como demagógicos.
"Em geral, a reiteração golpista
acontece no Brasil quando há um desalinhamento entre governo, capital produtivo
e setor financeiro. Quando as três unidades se desalinham, os
militares entram em cena", afirma Goyena, concordando que a
desigualdade contribui para o ciclo de golpes e anistias. "É um padrão que
diz respeito à forma como o país se comporta em transições históricas, com uma
articulação para preservar o status quo, em que a classe dirigente preserva
interesses. Anistia sugere preservação e reacomodação."
Goyena, porém, é mais cético quanto atribuir
à Constituição o julgamento inédito de militares. Em sua visão, o que
possibilitou a resposta aos golpistas foi uma divisão de militares, governo e
as unidades do poder econômico. Ao menos até agora, diz ele, não houve consenso
na elite para sustentar a impunidade.
Ponto de inflexão na história, a condenação
dos réus da trama golpista produz dúvidas em relação ao passado e ao futuro. Os
historiadores divergem, por exemplo, sobre a capacidade do julgamento de ampliar
o interesse da sociedade pela memória do golpe de 1964.
De um lado, Fico diz ser irônico um governo
como o de Bolsonaro, tão militarista, servir para iluminar os horrores da
ditadura, em um momento de intensa produção cultural sobre o período, com os
sucessos do filme "Ainda
Estou Aqui", de Walter Salles, e da
peça teatral "Lady Tempestade", de Sílvia Gómez. Do outro, Krause
afirma que os setores progressistas não têm força necessária para disputar a
memória do golpe.
Do mesmo modo, o Brasil abrigou, ao longo do
século 20, o maior movimento de inspiração fascista fora da Europa, a Ação
Integralista Brasileira, cujo lema era "Deus, Pátria, Família", o
mesmo adotado pelo bolsonarismo. "Nunca deixou de haver uma direita
extremada no Brasil", diz Krause. "O que faltou por algum tempo foi
um partido organizado que assumisse suas bandeiras."
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