O atual momento político propicia que, em ambientes universitários, se exercite uma atividade daquelas que melhor demonstram a razão de ser de instituições universitárias. Travar um debate de sentido político, portanto, opinativo, a partir de esforços intelectuais que adotem a isenção (embora não a neutralidade) como método para que debatedores se entendam sobre uma base factual comum, dando-se, a partir dela, a livre discussão das opiniões.
Em momentos críticos, essa situação amigável, em que possam fluir simultaneamente e sem peias a dignidade da ciência e da política, não se estabelece naturalmente apenas porque se está numa universidade. Elas, como todos os ambientes sociais, expõem-se a azares de uma situação em que a regra é assassinar fatos para promover narrativas. Essa prática, se prevalece, pode ser letal à vida universitária pelo seu potencial de converter aquela situação amigável em impossibilidade prática. Nessa hipótese torna-se duvidosa a própria razão de ser dessas instituições, pois fazer política às custas da ciência é algo tão obscurantista quanto querer anular a política através da ciência.
A natureza dos recursos intelectuais que, por ofício, se maneja nas universidades públicas, em condições de autonomia política e administrativa e de estabilidade funcional, faz com que ali as possibilidades extremas de se fazer de um dissenso fator de obscurantismo ou de iluminação sejam uma escolha. Em conjunturas críticas é prerrogativa de poucos. Componentes dessas instituições que escolhem buscar interlocução que ilumine o ambiente interno e contribua ao esclarecimento do ambiente social estão desafiados a praticar a tolerância desde a fixação de um tema para discussão. Podem ter de ir ao debate sem consenso inicial sobre uma base factual comum, tendo mesmo que discutir em público sobre realidades virtuais, havendo um virtual para cada qual. Isso porque o acesso da razão a alguma base factual comum encontra-se interditado por uma não razoabilidade, fera solta na conjuntura.
No último dia 9 de novembro aconteceu na UFBa uma mesa de discussão em torno de um tema – fascismo e democracia - que à maioria dos promotores e participantes parecia imperativo discutir nesse momento. O texto a seguir foi uma contribuição de alguém que não compartilha essa opinião, por achar que fascismo é um tema excêntrico para o entendimento do que se passa no Brasil atual. Mas reconhece que valeu a pena a discussão. O grande interesse que temas políticos felizmente despertam nesse momento permitiram um auditório lotado por um público mais diversificado do que professores e estudantes. Aliás, eram poucos os professores presentes e os estudantes muitos e atentos na escuta, alguns se arriscando a interpelar as falas. O resultado motiva congratulações aos promotores e homenagens a quem até ali se deslocou. Tornar mais público o texto que serviu de roteiro à fala é um modo de agradecer a oportunidade de ter participado daquele momento. Esse preâmbulo, ausente na apresentação oral, foi um esforço de descrição do contexto para leitores extra universitários. Segue agora o texto.
FASCISMO, UM TEMA FORA DO LUGAR
Fala-se de fascismo há semanas e resolveu-se falar hoje com mais vagar. Difícil considerar que seja tema pertinente a algo que sucede ou está em vias de suceder no Brasil. Mas tudo bem, a percepção contrária existe em nosso meio, daí porque, em vez de argumentar através de interpretação da conjuntura, encara-se aqui a discussão conceitual, avisando que fascismo é o assunto inicial, sem ser o centro da fala. O centro será uma reflexão sobre nossa democracia e as possibilidades abertas, no seu âmbito - agora com ainda mais sentido - ao exercício da política.
A referência usada aqui para tratar do tema fascismo e depois opinar sobre sua impertinência ao nosso momento é um livro do professor Robert Paxton, cujo título é “Anatomia do fascismo”. Trata-se de um estudo comparativo de processos transcorridos em muitos países, envolvendo movimentos políticos, estratégias eleitorais e institucionais, governos e regimes que, afinal, podem ser, de algum modo, associados a fascismo. A diversidade de situações leva o autor a se contrapor a boa parte da literatura especializada, que se concentra na ideologia para tentar definir o fenômeno fascista. Paxton examina a trajetória histórica do fascismo como “uma série de processos que se desenrolam ao longo do tempo, e não como expressões de uma essência fixa”. Resultam daí dois alertas.
Cuidado com imagens sintetizadoras: em vez de síntese, o fascismo pede análise. Em vez de se ater ao “demagogo chauvinista discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase”; “fileiras disciplinadas de jovens desfilando em paradas militares”; “militantes vestindo camisas coloridas e espancando membros de alguma minoria demonizada”, ou - poderíamos dizer hoje e aqui – a homens brancos, machistas, homofóbicos, rascistas, sejam “coxinhas” arrogantes ou “gorilas” ameaçadores, é preciso verificar as relações entre líder e Nação; entre o partido e a sociedade civil. O exame dessas relações pelo método empírico e analítico é que pode nos dizer se está presente o ovo da serpente ou ela mesma, em pessoa. Ou se fatos concretos que se atribui ideologicamente a fascismo devem ser vistos como situações genéricas de autoritarismo, discriminação e violência praticados, reacionariamente, por pessoas e grupos insatisfeitos com a realidade da democracia numa sociedade que a valoriza mais que no passado.
O que os fascistas fizeram é no mínimo tão informativo do que o que eles disseram: é preciso considerar ambas as dimensões, pois são bastante ambíguas as relações entre:
a) fascismo e modernidade, cabendo duvidar da oposição binária entre fascismo como reação anti modernista e fascismo como ditadura da modernização. Promotor em vários casos de racionalização tecnológica, difusão propagandística de uma estética hi tec e forte desenvolvimento industrial, não obstante cultiva uma utopia agrária e a crítica ao desenraizamento, conflitos e imoralidade da vida urbana;
b) fascismo e capitalismo: cabendo evitar as simplificações de considerá-lo ditadura reacionária anti capitalista ou uma estratégia do capitalismo. Sua retórica anti capitalista é seletiva, contra o apego a valores materiais, eventualmente contra a especulação, mas não contra a exploração; do mesmo modo demoniza e mimetiza o socialismo, sem que se saiba até onde compete com partidos socialistas pela simpatia das massas trabalhadoras ou até onde pretende antagonizá-las a partir da direita;
c) Fascismo, esquerda e direita: Negando em geral o sentido dessa oposição e flertando ambiguamente com signos de ambos os polos enquanto, na política, extrapola pela direita, o que é certo no fascismo é a recusa do centro. Nas palavras de Paxton, desprezo absoluto pela suavidade, pela complacência e por soluções de compromisso; desdém pelo parlamentarismo liberal e seu individualismo cosmopolita e displicente, assumindo um tom radical ao preconizar remédios contra a desunião nacional que atribui ao liberalismo, como ao socialismo. Tudo isso contrasta com a facilidade com que, sendo arauto de uma violência que considera revolucionária, celebra alianças pragmáticas com conservadores. Como também as celebra com nostálgicos, embora vendam-se também como demiurgos de uma nova ordem;
d) fascismo e democracia: Para Paxton, fascismo é, sobretudo, movimento político, inconcebível sem a precondição da política de massas. Assim, é fenômeno tardio, que desfere um ataque a esquerdas integradas à democracia, como a esquerda que Engels via crescendo no terreno eleitoral europeu no final do século XIX. Uma ditadura que provoca entusiasmo popular de modo inédito, imprevisto, apenas intuído por poucos, como Tocqueville, citado pelo autor: “o tipo de opressão com o qual são ameaçados os povos democráticos não se parecerá com nada antes visto no mundo...busco em vão uma expressão que reproduza com exatidão a ideia que formo dele e que o contenha. As velhas palavras despotismo e tirania não são adequadas”
Paxton não parte de uma definição, mínima que seja, de fascismo. Por outro lado não cede a uma indeterminação que faça a ideia parecer “o que ocorrer” para permitir acionar o termo contra quem se quer desqualificar. Descreve e analisa o fascismo, do ponto de vista histórico, como uma estratégia cumprida em cinco estágios: 1) a criação dos movimentos fascistas; 2) seu enraizamento no sistema político; 3) a tomada do poder; 4) o exercício do poder; 5) a radicalização do regime. O fascismo é a resultante do processo que cumpre essas etapas em dinâmica cumulativa.
Argumenta o autor que não é possível, em meio à variedade de situações nacionais, encontrar-se o fascismo pronto no primeiro estágio, da sua criação e organização como movimento: “A compreensão dos primeiros movimentos nos fornece apenas uma visão parcial e incompleta do fenômeno como um todo”. Por assim dizer, a anatomia do macaco não permitiria ver o homem. Mas a criação dos movimentos é o ponto de partida. Se o primeiro estágio não pode revelar, sem ele não haverá o que ser revelado depois. A pergunta agora é: a empiria brasileira atualmente serve para um teste de validação de uma hipótese de fascismo, em curso, ou mesmo em gestação?
Claro que se pode responder a isso pelos caminhos da ideologia, da fé, da adivinhação ou do desejo. Ainda no campo das premissas não demonstráveis, pode-se também supor que o fascismo resulte do DNA nacional presente nesse ou naquele país ou, num polo de convicção oposto, achar que esse ou aquele DNA nacional esteja vacinado desde sempre contra a incidência do fenômeno. Mas nem a análise histórica e política, se considerada a dinâmica cumulativa do fascismo - estudada por Paxton em dezenas de casos nacionais - nem uma eventual “sociologia do bolsonarismo” nos deixará ir longe nessa conjectura. O fato de ser ele um cavaleiro solitário, até ontem folclórico, que monta um cavalo selado por uma crise não basta para que se veja nele caso exemplar de fascismo. O fato de não ter havido entre nós a formação prévia de um movimento político dotado de ideologia específica, organização disciplinada e programa objetivo, do qual o líder é produto e expressão, deve ser considerado a sério. A menos que se imagine ser o “bolso-fascismo” uma jabuticaba, ou o Brasil um caso pioneiro que nega a dimensão cumulativa, caso em que o fascismo adentra o sistema político e chega a posição de maior destaque antes de se constituir em movimento político digno desse nome. O bom senso manda percorrer outras trilhas para entender o que está ocorrendo. Proponho revisitar o tema do autoritarismo no Brasil. Por aí talvez haja pistas mais transitáveis.
BRASIL: AUTORITARISMO E DEMOCRACIA (COOPTAÇÃO E REPRESENTAÇÃO)
É farta a literatura sobre o assunto. Impossível, mesmo minimamente, dar conta dela aqui. A escolha é de um autor e de uma obra que gozam de reconhecimento na ciência política brasileira, ainda que estejam longe de obter também o assentimento que se dedica a autores e obras canônicos. Trata-se de Simon Schwartzman e o livro é “Bases do autoritarismo brasileiro”. São escolhidos até pelo potencial de controvérsia. A apropriação do repertório teórico metodológico de Max Weber é feita de modo a conjugá-lo e fazê-lo alimentar um horizonte normativo social democrático, numa versão conectada, não com o campo socialista, mas com o campo liberal. Desnecessário concordar com suas premissas normativas e/ou com sua interpretação do Brasil para reconhecer a acuidade da sua análise e o diálogo vivo que ela mantém com a empiria brasileira.
O cenário a que o autor se reporta, no sexto capítulo do livro, é o da democracia da Constituição de 1946, que de muitos recebe o adjetivo de populista. A remissão àquele contexto nessa exposição não é uma escolha. Se dependesse do expositor ele já seria tratado só como história. Mas discursos vigentes na cena pública atual, à direita e à esquerda, tem insistido no viés anacrônico e encontrado audiência. De modo que para dialogar, assim como foi aceito o tema fascismo, aceita-se aqui também revisitar o passado. Para isso recorrendo a Schwartzman, pois de sua obra surgem pontes para se chegar à bem diversa realidade, que é o nosso presente.
Pedindo desculpas a quem já o conhece, será brevemente apresentado o argumento geral de Schwartzman, com base num resumo que dele faz Bolivar Lamounier. Recurso, portanto, a um liberal que, no campo ideológico, afina-se, mais que o expositor, com o texto comentado. Isso diminui o risco de uma interpretação distorcer o argumento.
Pelas lentes de Lamounier, lemos em Schwartzman que no Brasil uma polaridade estado x sociedade ganhou vida numa “macro estrutura patrimonialista” contraposta a uma “base social pobre e amorfa na maior parte do país”. Já em São Paulo teria germinado um subsistema político nitidamente diferenciado. O contraste justifica, ainda conforme Lamounier, a chave analítica de Schwartzman, centrada na contraposição entre as noções de cooptação e representação, as quais expressam e nomeiam dois subsistemas diferenciados, coetâneos durante a democracia vigente de 1946 a 1964, com dominância do primeiro. A partir daqui prossegue-se já sem a guia de Lamounier.
O livro de Schwartzman é de 1975, atualizado no final da transição democrática. O autor assinala a excepcionalidade do regime de 46 a 64 em termos de participação política de massas. Essa excepcionalidade, em alguns momentos aparece de modo a que o período possa ser encarado como parênteses numa história cujo fio condutor é o autoritarismo. O autor não salienta ter o Brasil uma experiência histórica de construção do Estado através não só de uma monarquia em linha de continuidade com Portugal mas também através, como salienta José Murilo de Carvalho, de poder civil e governo representativo, em contraste com o militarismo e o caudilhismo de nosso vizinhos colonizados pela Espanha. Mas de todo o modo ele reconhece que a memória do período 46/64 fez da participação um tema central: apesar da excepcionalidade, a experiência deixou marcas e não pode ser esquecida.
O argumento do autor é que a participação política não deriva de forma simples do processo da transformação social. Condições para que de um processo de mobilização social derive demanda por participação da vida pública dependeriam de duas variáveis: A primeira é a natureza do processo de modernização e de desenvolvimento. Situações como a de vários países do ocidente em que desenvolvimento econômico precede a modernização tendem a gerar demandas específicas de classes e grupos sociais, com ampliação progressiva da autonomia e da participação. Já onde a modernização avança sem ser acompanhada no mesmo ritmo pelo desenvolvimento econômico, a permanência de entraves de desigualdade faz com que a ação política tenda a se fixar nos fins mais que nos meios e assim a encorpar o nível simbólico e principista da vida política. Esse segundo seria o nosso caso.
A segunda variável seriam as características mais próprias do sistema político. Maior ou menor institucionalização podem provocar permeabilidade ou rigidez perante novas demandas de participação. E nesse ponto a formação e a configuração das instituições brasileiras não favoreceria. Começando pela origem estatal de um sistema partidário hegemônico em que a coalizão PSD/PTB ancora-se centralmente na cooptação e não na representação. Essa coalizão sofria quatro tipos de oposição: a) oposição liberal a Vargas (UDN, setores médios urbanos, intelectuais, lideranças arredadas); b) setores militares impacientes com a ineficiência e o clientelismo, preços do sistema de cooptação; c) setores operários que pressionavam lideranças sindicais por mais militância e ideologia; d) setores militares, operários e intelectuais nacionalistas, críticos da política externa. Para o autor, todos eles, mesmo os mais inquietos, mantinham-se, até a crise terminal do regime, à portas de 1964, nos marcos do que está descrito, na literatura sobre o período, como um estado de compromisso, em que mudanças e avanços sociais eram possíveis desde que não ultrapassassem certos limites para além dos quais a democracia poderia abrir brechas à subversão da ordem.
A política de cooptação transitava, conforme Schwartzman, num continuum esquerda/direita, entre situação e oposições e focava em demandas voltadas ao Estado. Nova dimensão se mostra à medida em que se aproximam os anos de 1960. É a intensidade de processos de urbanização, educação, etc..., levando a mais demandas, maior clareza de objetivos e busca de representação de interesses por parte de movimentos de emergentes grupos sociais.
A política de cooptação, segue Schwartzman, centrada nessa nova dimensão, volta-se ao controle/manipulação das formas emergentes, em oposição a uma política de representação. O que se impõe não é um processo desde baixo, via demandas crescentes de participação, mas uma radicalização a partir de cima, fomentada por lideranças e partidos que já cogitavam a possibilidade de se desamarrarem do estado de compromisso e usavam as massas para manobrarem nessa direção. Conforme o autor, era possível vislumbrar ali, dentre outras possibilidades, também o espectro de fascismo. Ele derivaria, por hipótese, da conjunção, conjuntural e sem solução à vista, de uma mobilização induzida por cooptação e uma participação espontânea. Jogadores pressionavam por representação mas no jogo predominavam habilidades e recursos do sistema de cooptação sobre a capacidade de organização autônoma. A disputa intra elites teria assim transbordado os limites do compromisso dentro do sistema político, que entra em paralisia. A solução seria dada por quem detinha o controle do sistema de cooptação, ou por quem o pudesse desmontar pela coerção, como ocorreu. E não seria mais possível apenas repetir 37. Para reprimir a sociedade que se movimentava, a opção autoritária teria de ir mais longe, contingência que dava lugar ao espectro.
Mas São Paulo, como já dito, seria exceção. Ali a germinação limitada de uma política de representação assumia três formas: ideologias liberais intransigentes; movimentos sindicais de cunho “trade unionista”; movimentos populistas carismáticos com pouca estrutura e autonomia nas bases e pouco controle e manipulação de cima, como o janismo. Era limitada a experiência pela ausência de partidos representativos bem estruturados, capazes de mediar interesses regionalmente e estender/ampliar o processo até o nível nacional.
Então a “normalidade política” em São Paulo significava, no caso dos setores mais privilegiados, representação fraca, apatia e marginalidade política. No dos setores de baixo, radicalismo carismático ou esquerdismo independente. Em contextos de instabilidade do arranjo político nacional (como em 64) aumentava a participação via ideologias da lei e da ordem e/ou de um liberalismo anti político que via como corrupta e ineficiente a interferência governamental na sociedade. Era esse o caldo de cultura do janismo e foi o do golpe. O autoritarismo cortara o caminho da democracia para conter as massas, não se podendo saber se elas, uma vez não fossem contidas e estando submetidas ao rigor da crise econômica, iriam à rebelião ou adeririam a alguma forma de fascismo.
PERGUNTAS SOBRE ONTEM E SOBRE HOJE, A PARTIR DO TEXTO DE SCHWARTZMAN:
O janismo, derivação da área paulista, foi uma refração eleitoral à pressão exercida pelo espectro do fascismo? Ou o populismo de direita vitorioso era só um biombo? Se era, não se sabe, nem se saberá. Sabemos é que houve muito mais que isso, depois. E o muito mais que houve teve a ver com escolhas políticas. Jânio ganhou com folga a eleição de 60 em aliança com os liberais. Sua renúncia foi o marco inicial da crise que levou ao golpe. A rápida saída de cena daquele populista “inorgânico” levou a um pacto parlamentarista. Durou um ano e meio. Sua revogação por plebiscito colocou frente a frente, a partir do fracasso - politicamente promovido, por governo e oposição - do Plano Trienal de San Tiago Dantas e Celso Furtado, dois campos indispostos ao entendimento político. Eram liberais cada vez mais descrentes em eleições como meio de “civilizar” a democracia populista e um populismo oficialista, “orgânico”, cada vez mais disposto a usar, até as últimas consequências, os meios de cooptação de que dispunha para fazer, com ou contra o Congresso, as reformas de base, pelas quais mobilizara, a partir de cima, massas urbanas e rurais. Tudo isso não ocorreu só porque Jânio renunciou. Mas sem a renúncia, os fatos (ignotos) seriam outros.
Fato dado é que o confronto terminou em duas décadas de ditadura. Custo não apenas para a esquerda negativa, mas para todo o país. Compareciam antes do golpe - e depois dele, ainda mais - práticas similares ao fascismo, mas não se chegou nem ao primeiro estágio do fascismo. Não houve movimento fascista, penetração fascista, governo fascista, nem regime fascista e a política não morreu. Mas perdemos uma democracia e isso não foi pouco.
Tanto o exercício conceitual, quanto a visita à história devem nos fazer pensar no atual momento. Entender, pela análise, a vitória eleitoral e política de Jair Bolsonaro nos marcos do regime democrático em que vivemos é mais útil do que saber como é, será ou seria um fascismo, ou um “neo fascismo”, à brasileira. Em artigo recente, Werneck Vianna afirmou que a hora é dos intelectuais. Vamos aproveitá-la para indagar ao Brasil real de hoje se ele tem mais ou menos condições e instrumentos para refratar o espectro que se tenta, mais uma vez, incluir na nossa pauta.
UMA RESPOSTA PRUDENTE E UMA CONFIÁVEL GRAMÁTICA
Olhar para a Constituição de 88 e compará-la com a de 46 ajuda a espantar fantasmas. Mais do que para a Carta, olhar para as instituições que ela deu à luz. Temos hoje um Poder Executivo que é bem maior que o Presidente, de modo diferente do que era, então, o Poder Executivo vis a vis o poder pessoal do Presidente. Mais que esse Executivo institucionalizado, no Brasil de hoje há, por via da representação política e também da participação social, mais poderes governantes além dos do Executivo, mais do que houve em outros tempos, de modo que freios e contrapesos são reais e mais efetivos dentro da própria atividade governamental. Além de exercício limitado de governo, temos hoje, mais do que em qualquer outro tempo da nossa República, mais Estado e instituições republicanas além das que diretamente governam. E não só governo e instituições políticas. Temos uma sociedade civil mais democrática, plural e secularizada do que em qualquer outro momento da nossa história. Não é razoável perder de vista que a explicitação agressiva do mal estar de quem não está contente com isso é o que é: um mal estar com uma dinâmica política, social e cultural que desfavorece delírios autoritários e/ ou nostálgicos.
O otimismo cede quando se vê que instituições e sociedade não operam no automático. Pessoas e grupos as operam e a experiência recente não anima. Reagindo à imperícia e à imprudência dos condutores habituais, o eleitorado colocou na Presidência um político sem compromisso anterior com o patrimônio político que acumulamos e mesmo adversário declarado de boa parte dele. Elegeu também mais autoritários e nostálgicos. Temos razões para ficar alertas, vigilantes e ativos, mas não inconformados, como ficam os ressentidos. A recusa ou mesmo resistência aos resultados das urnas, assim como a desqualificação das razões da maioria, não são atitudes democráticas. No mínimo são elitistas. E não ajudará o medo do espectro, a apatia ou o desespero que ele pode causar. É preciso bloquear com firmeza o caminho mental que faz a consciência de riscos converter-se em profecia e daí em paranoia.
Além da serenidade e prudência no diagnóstico sobre um período de governo que ainda não começou; além de preferir a paciência da análise ao efeito retórico das sínteses apressadas, é preciso ressuscitar a gramática que construiu a democracia que temos, que trouxe vantagens democráticas ao nosso tempo em comparação a qualquer outro tempo histórico e que anda esquecida até nas melhores famílias, como é a nossa, da universidade pública. Os avanços que alcançamos não foram “naturais”, não derivam de uma lei inexorável da história. Resultam de escolhas políticas acertadas, adequadas aos momentos vividos. É evidente que se está aqui a valorizar e não a minimizar ou condenar a opção feita entre os anos de 70 e de 80, pela estratégia da ampla frente democrática para derrotar a ditadura e criar uma democracia moderna e pluralista e um estado democrático de direito, sob paciente combinação de conflito e negociação, construindo, durante o caminho, consensos possíveis entres as várias partes da sociedade e dos partidos que queriam a democracia. Consensos que balizavam a negociação com o adversário.
Essa gramática orienta a não desdenhar a democracia política. A valorizar a representação como meio de participação crescentemente ampliada, em vez de dar de ombros a ela, depositando expectativas de participação imediata em simulações mentais de democracia direta, cujo potencial opressivo fica claro agora, quando um demagogo de direita a aciona, no real, para manter seu eleitorado no ar. O legado político do mundo ao qual estamos historicamente ligados são instituições políticas representativas que nasceram aristocráticas, tornaram-se liberais (sem deixar de ser aristocráticas) e hoje são democráticas, mantendo-se liberais, porém não mais aristocraticamente. Elas têm sido no Brasil o terreno mais efetivo e, na atual conjuntura, são talvez o único em que uma ação política reformadora tem poder de iniciativa. No momento em que a mobilização de rua, as ações diretas e pautas identitárias específicas de grupos sociais discriminados entram, por força das circunstâncias, num andamento mais defensivo que afirmativo, articulá-los ao repertório do conjunto da sociedade civil progressista e pluralista, em sintonia com a política institucional, é um caminho para preservar e manter ativos os espaços civis de participação. A constituição de uma ampla oposição democrática não é questão de resistência. É questão de ocupar espaço político, moderar o governo eleito e unir democratas, pela reconstrução paciente do centro político do país.
Entra em terreno pantanoso quem se manifesta, num auditório como esse, em analogia e sintonia com recentes palavras de Fernando Henrique Cardoso. Mas o intuito de coerência com o que se acabou de afirmar manda ir além e recomendar leitura do seu artigo de domingo último no Estadão, no qual ele propõe a reconstrução de um centro democrático na política brasileira, tendo como mote a ideia de um “radicalismo de centro”. Ao fazer essa indicação não se espera aplauso do público, só se quer propor reflexão. Sem ilusões quanto à persistência inibidora, em nosso ambiente, da polarização tucano-petista, não mais existente, ao menos no entender do eleitorado, que introduziu uma nova polarização que estamos desafiados a aceitar, em respeito à maioria. Aceitação que é condição para que se exija mais adiante, do governo que essa maioria elegeu, o respeito às oposições, tanto àquela que corresponde à polarização consagrada nas urnas, quanto a terceiras possibilidades, que também estão no horizonte do soberano.
Assim como ocorreu ao trazer o Simon Schwartzman de 1975 para viajar do passado ao presente, Fernando Henrique em tempos pre Bolsonaro será comentado adiante para entender o presente com olhos no futuro. Mas antes vem um parênteses, que formaliza algumas razões para plenas sintonias e para aproximações cuidadosas das reflexões desses dois intelectuais com o que aqui se busca acolher como carta de navegação para o momento atual.
PARÊNTESES PARA ELUCIDAR O PENSAMENTO
Quem ainda não visita (ou quem, por opção intelectual legítima, não quer visitar) o pensamento político sobre o Brasil pode pular esse parênteses. Certamente ele não fará falta ao entendimento geral da mensagem. Trata-se de uma satisfação dada de bom grado aos viciados nesse bom vinho e também de um registro escrito contra eventuais investidas de patrulhas ideológicas ainda fixadas em polaridades mortas.
Uma das sintonias - certamente a mais sólida - com ambos os autores comentados, é a negação do autoritarismo, em suas variadas formas, por uma ética de convicção democrática. Outra sintonia, evidente no Fernando Henrique que escreve e no que faz política, é o manejo, em sentido positivo (e também por convicção), da dialética da ambiguidade. O possível recurso, como práxis, a essa chave de Guerreiro Ramos, usada com felicidade por José Murilo de Carvalho para retratar uma gramática política que se fez nossa tradição, é uma boa diagonal para reconectar tradição e projeto, nesse tempo presente de tantos elos partidos.
No plano complexo das aproximações cuidadosas estão outros dois pontos de nossa tradição política, tal como ela se nos apresenta, como cultura política, em reflexões referenciais de Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho e Rubem Barboza Filho, lembradas pelo primeiro em artigo publicado no mesmo dia do de Fernando Henrique e no mesmo jornal. Um ponto é o que Faoro e Schwartzman, evocando Weber, batizaram de patrimonialismo. Outro, o que os outros citados viram, seguindo pistas de Richard Morse, como tempero comunitarista.
Vamos logo ao tempero. Suposto como capaz, ao contrário do individualismo “neo liberal”, de cadenciar o impacto da lógica de mercado de modo a acolhê-la como solução moderna, porém de modo atento a noções de bem comum reclamadas por nossa constituição mental e pela desigualdade social, ele não tem lugar na reflexão setentista de Schwartzman. Sua convicção ia na linha de proclamar a superação dessa tradição, o que o pôs em memorável controvérsia com Morse. Já com Fernando Henrique, por seu manejo politicamente responsável da dialética da ambiguidade, é mais fácil o diálogo, sobretudo no tempo de Bolsonaro, em que a busca de convergência social democrática volta a entrar em pauta. Em compensação, no campo do individualismo desponta, querendo também um espaço na pauta, a mensagem ainda enigmática do partido Novo e de tudo de novidade que ele traz consigo. Dentre elas a pergunta sobre se um “radicalismo de centro” acolhe um nova direita como parte ou interlocutora.
A pergunta se mantem no segundo ponto da pauta das aproximações cuidadosas, a crítica ao patrimonialismo e seus filhotes pleno (o clientelismo) e bastardos (o fisiologismo e a corrupção). É consenso merecerem crítica e combate por uma política democrática. Mas é controverso que seja possível, eficaz, ou mesmo conveniente, fazê-lo através de uma ética de convicção, como parece imaginar Schwartzman, em linha com uma longeva tradição do idealismo constitucional brasileiro. Essa conexão, como sabemos, está presente, ainda que não hegemonicamente, no DNA político do PSDB, especialmente do seu núcleo paulista e a essa influência não escapam o pensamento e ação de Fernando Henrique Cardoso, ainda que, outra vez, ele possa ir ao diálogo com o matiz da dialética da ambiguidade.
No caso do combate ao clientelismo, desde antes do precioso livro de Edson Nunes sabemos que essa gramática tradicional do Brasil não é resquício de uma sociedade tradicional mas uma tradição bem instalada em sociedades modernas. Depois do livro de Nunes ficamos lembrados de que sua combinação com (e não sua revogação por) gramáticas políticas modernas é sinônimo de êxito político e administrativo de governos e condição de sobrevivência da representação política, o recurso acessível ao cidadão comum. Os credos corporativos vigentes entre elites estatais - fossem burocráticas, técnicas ou de corporativismo societal - eram, até o regime militar, contra o sistema político, mormente o Congresso, menos pelo seu clientelismo (com o qual aqui a ali enlaçavam-se) e mais por seu caráter representativo. Na democracia o presidencialismo de coalizão equilibrou a contenda em favor do sistema político e da governabilidade também. Uma nova versão da fertilização cruzada das gramáticas a que Nunes se refere mostrou a superioridade da responsabilidade política sobre perspectivas de convicção. Até que a exorbitância na gramática tradicional mobilizou fortemente os filhos bastardos do patrimonialismo e o equilíbrio se foi.
Atualmente o problema repõe-se tendo como focos o fisiologismo e a corrupção, aos quais uma ética de convicção pretende destinar, após sua condenação e execução, uma vala comum. A contundência da ofensiva levou de roldão em direção à vala a própria prática da negociação política. Vencidas as eleições pela mensagem da faxina é chegada a hora da responsabilidade e do realismo. Que novo equilíbrio se estabelecerá? É nesse quadro que a aproximação cuidadosa com o Fernando Henrique do tempo pre Bolsonaro tem amplo campo para avançar. Aproximação no presente, mirando o futuro e com cuidados postos em tempo pretérito, relacionados a possíveis dependências de trajetória que possam se fazer sentir. Embora distantes do pensamento de Fernando Henrique e neutralizados enquanto duraram os tempos do pragmatismo governamental tucano, laços políticos do PSDB com o campo do idealismo constitucional fortaleceram-se durante anos de aliança cada vez mais simbiótica com o campo liberal, na oposição ao PT. E encontraram, nos tempos da Lava-Jato, um ponto de dispersão, mas também de ebulição, no qual evaporaram-se as chances do próprio partido reagir, enquanto parte da elite política, à operação de extermínio a ela dirigida pela reencarnação judiciária daquela histórica corrente do pensamento liberal brasileiro. Muitos políticos atuais que, conscientemente ou não, nela se referenciam, confiam a uma guardiania de procuradores e juízes a faxina que um dia a UDN confiou a militares. É intuitivo imaginar em que tipo de dilema enreda-se o PSDB, já em estado gasoso, quando se depara, entre outras realidades, com a integração de Sergio Moro ao governo eleito.
É sob esse enquadramento, a um só tempo prudente e esperançoso, que se retorna agora ao artigo de FHC.
UMA TRILHA POSSÍVEL
O radicalismo de centro pregado no artigo não converte em centristas todos os que concordarem com o autor sobre a urgência de que esse centro se constitua. A ideia de um radicalismo de centro é certamente um achado capaz de orientar a formação de uma oposição democrática e moderada ao governo que se instalará em janeiro. O texto diferencia muito lucidamente essa ideia de centro radical das de um centro amorfo e um "centrão". A essa distinção poder-se-ia acrescentar outra: radicalismo de centro que não se imagina ser sinônimo de extremismo de centro, o qual, como todo extremismo, pretenderia a neutralização dos seus "outros", as esquerdas e as direitas, dando à posição de centro a pretensão de se tornar um pensamento único. Tal como, aliás, discursou Getúlio Vargas, em 1937, ao instituir uma ditadura em nome desse tipo de centro, quer dizer, do que ele afirmava ser um "projeto nacional", remetendo ao exílio político ideologias por ele proclamadas como "exóticas".
A razoabilidade do argumento do artigo é justamente propor radicalidade como algo diferente e até oposto a extremismos, inclusive os de centro. Demarca, pela crítica, diferenças em relação à direita que venceu as eleições e à esquerda que recebeu um mandato de oposição. Não nega esses polos, reconhece sua legitimidade mas cuida de construir um discurso nítido e positivo do que seja um centro despolarizador. Assim começa a dar substância à ideia genérica, que dias antes ele mesmo manifestara, de se conduzir diante do novo governo "sem adesismos nem negativismos". A vagueza dessa fórmula insinuava uma neutralidade, o que não seria útil nesse momento em que a construção de uma firme oposição democrática é artigo de primeira necessidade, política e social.
Por isso a proposta pode ser recebida com interesse também por reformistas teimosos que acreditam na possibilidade de uma outra esquerda vir a existir no Brasil e, ao mesmo tempo, têm o realismo de assumir isso só como um desejo, sem se verem no direito de fixar prazos para sua concretização, nem mesmo os mais longos. Teimosos assim não se sentirão plenamente satisfeitos com a eventual formação de um centro radical, mas reconhecem nele uma necessidade não transitória, permanente. Lugar de diálogo preferível a uma mera frente de esquerda, que ficará presa a uma metodologia política negativa, prorrogando uma polarização nociva, ademais terreno propício, hoje em dia, ao avanço da direita extrema, como acaba de mostrar o resultado eleitoral.
No diálogo com um centro radicalmente democrático será mais possível garimpar elementos para uma esquerda renovada e renovadora, missão para gente de uma faixa etária cuja maturidade provavelmente as pessoas que já são maduras hoje não testemunharão. Então nada a fazer senão esquecer o medo de, mais uma vez, trilhar caminhos longos, gravitando em torno desse centro. Sim, pois foi radical o centro tecido na transição democrática sob a liderança de Ulisses Guimarães, com suas imprescindíveis parcerias à direita e à esquerda. E valeu a pena.
Dessa vez a trilha não é necessária, como foi há 30 anos, para fundar uma democracia, posto que a democracia que temos vive com saúde bastante para refratar pressões que buscam enfraquecê-la. Tampouco ela persegue o signo puramente negativo da resistência em nome do já conquistado. A trilha pode ter, inclusive, o sentido - se for permitido aqui um lugar comum – de "democratizar a democracia". Sentido que é uma boa tradução política do valor da palavra paciência, um bem que se faz escasso nesses anos de crise e que precisamos reaver.
O nome desse contra espectro não é otimismo. São três os seus nomes: simpatia (pela obra já construída), confiança (em seu alicerce) e paciência, para retomar, na contramão do pathos profético, a construção permanente.
---------------------
{1}Com exceção do preâmbulo, o texto corresponde a uma exposição oral num debate no CRH/FFCH/UFBA, realizado em 09.11.2018
{2}Cientista político e professor da UFBa
Nenhum comentário:
Postar um comentário