terça-feira, 25 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Legalizar cassinos e jogos de azar é a melhor solução

O Globo

Não faltam exemplos no mundo para inspirar legisladores a mitigar os riscos associados à atividade

Desde 1946, quando cassinos e jogos de azar foram proibidos no Brasil, nada impediu que a jogatina se expandisse na clandestinidade — basta lembrar a popularidade do jogo do bicho. O Estado se tornou o único banqueiro autorizado com as loterias, mas o poder público deixou de exercer sua função de regulador. Com a internet, o brasileiro passou a apostar em sites no exterior, sem ter a quem reclamar caso enganado. Só com a recente regulamentação das apostas esportivas a situação começou a mudar. Um novo passo é o Projeto de Lei que legaliza cassinos, bingos e o jogo do bicho, aprovado na Câmara e na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Passados 78 anos da proibição, está claro que a melhor alternativa é legalizar o jogo. É preciso, é verdade, tomar cuidados para mitigar riscos como lavagem de dinheiro ou dependência dos apostadores. Mas há formas de punir responsáveis por manipulações criminosas. E sobram exemplos no mundo para inspirar a regulação de cassinos e outras modalidades de apostas. “Os indicadores econômicos e sociais dos países melhoraram, não houve aumento da violência nem da evasão fiscal”, diz o senador Irajá (PSD-TO), relator do projeto na CCJ do Senado.

Ao legalizar o jogo, o Brasil seguirá o exemplo de países como Estados Unidos, China, Índia, Alemanha, Japão, França, Itália, Reino Unido ou Austrália. Só em solo americano há mais de mil cassinos em 40 estados, empregando 1,7 milhão e movimentando US$ 240 bilhões anuais. Numa amostra de 200 países analisados pela revista médica britânica The Lancet, 164 permitem algum tipo de aposta. De 50 europeus, 48 convivem com jogos de azar. Nas Américas, o Brasil está em minoria: 33 de 37 países não proíbem o jogo, preferem regulá-lo e taxá-lo.

No estado americano de Nevada, onde fica Las Vegas, duas agências licenciam, regulam e fiscalizam o setor. Quem detém mais de 10% do capital das empresas de jogos passa por escrutínio rigoroso e tem de preencher 65 páginas de formulários. Também são avaliados produtores e distribuidores de equipamentos como caça-níqueis. A legislação contra lavagem de dinheiro equipara cassinos a instituições financeiras para efeito de fiscalização.

No Reino Unido, a Comissão de Jogos de Azar protege os interesses dos apostadores. No final de abril, multou uma operadora em £ 582 mil por falhar nos cuidados contra lavagem de dinheiro. Em Macau, a Direção de Inspeção e Coordenação de Jogos exige que o principal responsável por cassinos tenha residência permanente e detenha pelo menos 15% do negócio. Executivos são submetidos a testes de aptidão. A concessão vale por dez anos, mas há fiscalização e renovações a cada três.

No Brasil, o projeto limita a quantidade de cassinos por estado e tenta integrá-los a resorts e polos turísticos. Entre os cuidados, há medidas para evitar endividamento e lavagem de dinheiro. Não será permitido apostar em espécie. Cria-se também uma autoridade nacional, que precisa ter plenos poderes para coibir os abusos. A expectativa é uma movimentação inicial de R$ 14 bilhões anuais e, no futuro, arrecadação de R$ 20 bilhões em impostos.

Um mercado fortemente regulado com medidas inspiradas nas melhores práticas internacionais é preferível à situação atual. A proibição jamais funcionou na prática. Tomados os devidos cuidados, legalizar o jogo será melhor.

Paes tem obrigação de vetar projeto que legaliza construções irregulares

O Globo

Texto aprovado por vereadores anistia não só irregularidades do passado, mas também as futuras

Vereadores do Rio prestaram um desserviço ao aprovar, na última quinta-feira, o Projeto de Lei Complementar (PLP) que permite legalizar não só obras em imóveis em desacordo com a legislação (por meio do pagamento de uma taxa conhecida como “mais valia”), mas até as que ainda serão feitas (mediante o pagamento de outra taxa, chamada “mais valerá”). O novo projeto ressuscita o conceito “pagou, liberou”.

Entre outros absurdos, o PLP autoriza proprietários de imóveis residenciais e comerciais em toda a cidade a licenciar empreendimentos com um andar além do permitido. O atropelo da lei pode ser ainda maior, uma vez que, nos bairros de Catete e Glória, na Zona Sul, prédios serão autorizados a receber acréscimos de mais de um pavimento, até alcançar a altura do maior edifício da quadra.

Na versão final, os vereadores estabeleceram que pedidos de licenciamento para irregularidades futuras poderão ser apresentados somente até 1º de dezembro (no texto original, o prazo era indeterminado). No caso das já existentes, proprietários terão até três anos para legalizar. O recuo não torna o projeto menos nefasto. Primeiro, porque abre brecha para que construtoras licenciem agora e construam depois. Segundo, porque essas anistias infelizmente se tornaram corriqueiras. Não aproveitou a atual? É só esperar a próxima.

Projeto semelhante foi aprovado no governo Marcelo Crivella, embora tenha sido considerado inconstitucional pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça. Na gestão Eduardo Paes (PSD), uma lei parecida foi sancionada no ano passado, vigorando por cerca de dez meses.

Além de criar aberrações urbanísticas, o projeto é um contrassenso. Os vereadores acabaram de aprovar um novo Plano Diretor com diretrizes para balizar o crescimento da cidade pelos próximos dez anos. Meses depois, eles próprios o ignoram e criam novas normas. Se é para desrespeitar a legislação, por que criar regras urbanísticas?

Não se pode esquecer que a legislação urbana deve levar em conta fatores como densidade demográfica, fluxos de trânsito, impacto de vizinhança e interferência na paisagem. Não dá para desprezar tudo isso e autorizar, sem estudos técnicos robustos, que os prédios ganhem novos pavimentos só porque a Prefeitura quer aumentar a arrecadação em ano eleitoral.

O prefeito Eduardo Paes tem o dever de vetar esse projeto. Além dos muitos danos que ele pode trazer à qualidade de vida dos cariocas, é um incentivo à ilegalidade. Numa cidade em que o desrespeito a todo tipo de norma é um desafio histórico, a Prefeitura mostra ao cidadão que a irregularidade é perdoável — mas só para quem pode pagar. O município prevê arrecadar R$ 600 milhões com esse descalabro. Faltou estimar quanto será o prejuízo futuro para a cidade.

Incerteza regulatória trava o avanço do mercado de carbono

Valor Econômico

Legislação adequada é necessária não só para coibir fraudes como também para preparar o mercado local para as exigências internacionais

Apesar da hiperatividade das últimas semanas, o Congresso não concluiu o projeto de regulamentação do mercado de carbono. Diante do calendário legislativo esvaziado nesta semana pelas festas de São João, e que se voltará no segundo semestre para as eleições municipais, já há o receio de que a necessária e aguardada regulamentação não ficará pronta para a COP29, marcada para 11 de novembro, em Baku, no Azerbaijão. Na verdade, ela era esperada para a COP28, realizada de novembro a dezembro do ano passado, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

Enquanto isso, o Brasil perde tempo e espaço em um dos mais promissores mercados globais atuais, corre o risco de passar a ser importador de créditos de carbono e vê sua imagem prejudicada por fraudes nesses negócios.

A regulamentação do mercado de carbono é discutida no Congresso pelo menos desde 2015, data do Acordo de Paris, que saiu da COP21, quando os 195 países signatários se comprometerem a controlar as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera para limitar a temperatura global a 1,5 grau acima dos níveis pré-industriais e mitigar os efeitos drásticos das mudanças climáticas. Alguns projetos foram discutidos, mas não foram adiante. Em 2023, com a volta do presidente Lula ao governo, o assunto foi retomado no Senado, que aprovou o PL 412/2022, em outubro, com a relatoria de Leila Barros (PDT-DF)

O projeto foi então para a Câmara dos Deputados, cujo presidente, Arthur Lira, quis assumir o protagonismo de um pacote verde para a COP28. O texto do Senado foi então incluído em um antigo projeto da casa sobre o mesmo tema, o PL 2.148/2015, com a relatoria de Aliel Machado (PV-PR). Como se temia, acabou sendo aprovado somente em dezembro, após o fim da COP28. E voltou ao Senado no início deste ano.

Em meio à discussão surda a respeito do comando do assunto, o PL ainda aguarda a definição de relator e o encaminhamento às comissões, informou a Agência Senado na semana passada. O tema do mercado de carbono chegou a ser discutido na Subcomissão de Ativos Ambientais na segunda semana do mês, mas de modo bastante conceitual e genérico.

Há divergências a respeito da regulamentação, que demandarão debate. Um dos pontos é a controvertida exclusão da agropecuária das obrigações de reduzir as emissões, como terão que fazer outros setores, uma vez que o Brasil adotou o mecanismo de “cap and trade”. A agropecuária é um dos principais originadores dos gases de efeito estufa, mas também ficou de fora na regulamentação de outros países pela alegada dificuldade de se calcular seu impacto. Outra divergência é em relação à definição do mecanismo de Redução das Emissões pelo Desmatamento e Degradação (REDD+).

Enquanto o projeto não avança, surgem denúncias de fraudes no mercado voluntário de crédito de carbono. No início do mês, a Polícia Federal deflagrou a Operação Greenwashing, para desarticular organização criminosa suspeita de vender cerca de R$ 180 milhões em créditos de carbono de áreas da União invadidas ilegalmente há uma década, que passou pela emissão de títulos falsos de propriedade, no Amazonas. O episódio evaporou os ganhos do Fundo de Investimento em Cadeias Agroindustriais (Fiagro) da gestora AZ Quest, que havia investido em certificados de recebíveis e notas comerciais de empresa envolvida na denúncia de fraude. Prejudicado em outra operação foi o Banco do Brasil, que comprou, em maio de 2023, 23,3 mil créditos de carbono, em um contrato de R$ 1,2 milhão, de um empreendimento suspeito de grilagem e fraudes no Amapá e no Pará. A compra serviu para compensações de emissões de CO2 da instituição pública, relacionadas, por exemplo, a geração de lixo e combustão de veículos.

Os casos não são suficientes para prejudicar a avaliação de que o Brasil tem condições para ser um grande player desse mercado, com vários casos positivos como o do Pará, que está vendendo 2 milhões de toneladas de carbono, cada uma por US$ 15, dos 156 milhões de toneladas de carbono que possui para serem comercializadas até 2026. Os recursos serão distribuídos a povos tradicionais. A Timberland Investment Group (TIG), do grupo do BTG, acertou a venda de 8 milhões de créditos de carbono para a Microsoft até 2043, por valores não revelados.

No entanto, a legislação adequada é necessária não só para coibir fraudes como também para preparar o mercado local para as exigências internacionais. O especialista Marcos da Costa Cintra alerta que as regras do Acordo de Paris e da União Europeia restringem o potencial do Brasil no mercado global de carbono uma vez que exigem que os créditos a serem vendidos sejam provenientes de reduções de emissões adicionais, ou seja, que não teriam ocorrido caso o projeto ou evento específico não existisse (Valor, 13/6). Por esse critério, a Floresta Amazônica e a produção de biocombustíveis não são elegíveis para gerar crédito porque as reduções de emissões que promovem já são realizadas. Cintra e outros especialistas chegam a dizer que o Brasil pode ter que importar créditos de carbono se não reduzir o desmatamento para conseguir atingir suas metas climáticas.

França e Reino Unido desenham nova Europa

Folha de S. Paulo

Com líderes sob pressão, eleições parlamentares nos dois países sugerem soluções distintas para problemas em comum

Convocados de forma antecipada por líderes com mais de 70% de desaprovação popular, os pleitos parlamentares na França e no Reino Unido embutem semelhanças no diagnóstico dos problemas, mas cenários distintos para o que o eleitorado vê como solução.

Os franceses irão às urnas no próximo domingo (30), com um segundo turno em 7 de julho, munidos de razoável certeza de que legarão ao presidente Emmanuel Macron um Parlamento dividido.

Nele, a principal força tende a ser a da ultradireitista Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen. O grupo de Macron deve ficar em terceiro, atrás de um bloco esquerdista.

Isso significa não só a necessidade da chamada coabitação, em que o presidente terá um premiê opositor, mas também instabilidade para a montagem de um gabinete.

Macron pode apostar no desgaste da RN até o fim de seu segundo e derradeiro mandato, em 2027. Mas também se arrisca a fortalecer Le Pen como sua sucessora.

O líder convocou as eleições após ver o domínio da extrema direita na parcela francesa das eleições parlamentares da União Europeia. Ocorre que, no bloco continental, as instituições conseguem refrear apetites populistas de modo mais eficaz que os sistemas nacionais.

Isso dito, a RN adapta sua imagem. Le Pen buscou afastar-se dos elementos mais radicais que a orbitam. O líder nominal do partido, Jordan Bardella, disse que limitaria os termos da ajuda à Ucrânia contra a Rússia, mas fez críticas a Moscou após anos de proximidade da sigla com Vladimir Putin.

Pode ser oportunismo, mas é uma guinada. O que não muda são os problemas que trouxeram os direitistas ao palco: a economia e a percepção popular de que a imigração, uma solução para países com declínio de população ativa, é a raiz de todos os problemas.

Compartilha tal visão o britânico médio, que votará no dia 4 de julho. Sondagens colocam imigração ao lado de saúde e economia como questões centrais no pleito.

O primeiro-ministro, Rishi Sunak, também apelou ao voto antecipado para tentar sobreviver. Diferentemente de Macron, que tem mandato, ele deve presidir a retirada do poder de seu Partido Conservador, após 14 anos.

Agora, o país deve voltar às mãos da esquerda trabalhista, numa versão que se vende pragmática na economia. Na questão migratória, ela refuta o esdrúxulo plano de Sunak de deportar ilegais para Ruanda, mas também promete controles. Quais? Ninguém diz.

Em favor de Londres, há previsibilidade à vista, ante a balbúrdia parisiense. O denominador comum é que o desgaste dos governantes levará à mudança, ajudando a redesenhar o continente.

Cerrado vulnerável

Folha de S. Paulo

Contenção do desmate nesse bioma tem se mostrado mais difícil do que na Amazônia

Passou da hora de dar ao cerrado a mesma atenção que mata atlântica e Amazônia conheceram a partir da década de 1980. A savana com maior biodiversidade no planeta, segundo a ONG WWF, é hoje o bioma mais ameaçado do Brasil.

Tal situação fica evidente na série de reportagens Cerrado Loteado, publicada pela Folha. Destaca-se o fato de menos de um décimo do bioma estar protegido por unidades de conservação (UCs).

É brutal o contraste com a floresta amazônica, que abarca 4,2 milhões de km² do território nacional. Com 29% de área protegida, ainda ostenta 80% da mata em pé. Na média, cada uma de suas 381 UCs abrange 3.200 km² .

O cerrado, segundo maior bioma do país, cobria originalmente cerca de 2 milhões de km², mas metade dele já foi destruído. Conta 560 UCs de porte bem menor, de 327 km² cada uma, em média.

Em 2023, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mediu por satélite 11 mil km² de desmate no cerrado, alta de 3% sobre 2022. Na Amazônia, que tem o dobro do tamanho, foram 9 mil km², com uma queda de 22%.

A floresta no Norte também enfrenta pressão da fronteira agrícola, que é mais antiga e muito mais devastadora no cerrado —como se constata na região conhecida como Matopiba. No primeiro bioma, fazendeiros são obrigados a preservar 80% da propriedade como reserva legal; no segundo, só 20%.

Para tentar conter a destruição, o Ministério do Meio Ambiente, chefiado por Marina Silva, lançou a quarta fase do PPCerrado, um plano de prevenção e controle do desmate inspirado nas políticas que, em sua primeira passagem pela pasta, derrubaram as taxas de devastação na Amazônia.

A criação de UCs ajudaria a proteger espécies e recursos hídricos. O ministério estima haver 71 mil km² de terras públicas no cerrado que poderiam dar origem a UCs.

É fundamental que poder público e sociedade percebam que não há contradição entre preservação do meio ambiente e desenvolvimento. A economia verde já é uma realidade global e, com o potencial agroecológico brasileiro, o país não pode ficar para trás.

O avanço da jogatina

O Estado de S. Paulo

Projeto aprovado na CCJ do Senado legaliza até o jogo do bicho, notória lavanderia de dinheiro de criminosos sanguinários, o que deixa claro seu caráter absolutamente deletério para o País

Alheia à realidade do País, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, tendo o senador Davi Alcolumbre (União-AP) à frente, aprovou há poucos dias o projeto de lei (PL) que autoriza a exploração de jogos de azar em todo o território nacional. Inclusive, e sobretudo, o jogo do bicho, que é explorado há muitas décadas, como se sabe, por alguns dos criminosos mais sanguinários do Brasil – ainda que sobre eles se projete uma aura fajuta de “benfeitores sociais”, “agitadores culturais” ou coisa que o valha.

A bem da verdade, houve resistência no colegiado ao fortíssimo lobby pela aprovação do PL da Jogatina. O apertado placar de votação na CCJ – 14 votos favoráveis e 12 contrários – indica que o tema não é consensual entre os senadores e que a tramitação do texto, aprovado pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022, não deverá ter vida fácil no plenário do Senado. É o que este jornal espera que aconteça.

Poucas propostas legislativas se apresentam tão frontalmente contrárias ao melhor interesse público do que a legalização dos jogos de azar no País, principalmente nessa quadra histórica em que o poder do Estado tem sido ainda mais confrontado por organizações criminosas cada vez mais poderosas – bélica e financeiramente –, ousadas e diversificadas.

Recentemente, o jornal O Globo mostrou como o Comando Vermelho (CV), o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro, liderada pelo notório bicheiro Rogério Andrade, têm usado as plataformas de apostas esportivas, as chamadas “bets”, para lavar dinheiro oriundo de suas atividades delitivas e ainda maximizar seus lucros espúrios. Convenhamos: era evidente que essas organizações criminosas, mais cedo ou mais tarde, avançariam sobre as tais “bets” – uma excrescência por si sós num país onde a jogatina, convém lembrar, ainda é ilegal.

Ora, se isso já acontece com o bilionário, porém circunscrito, mercado das “bets”, qualquer cidadão de bom senso haverá de supor que a legalização dos jogos de azar, com a instalação de cassinos País afora, só ampliará de forma exponencial as possibilidades de ação daquelas verdadeiras máfias. Ou a alguém ocorre que empresários legítimos e honestos do setor de turismo e entretenimento terão desejo e coragem de “concorrer”, por assim dizer, na exploração da jogatina com empresas de fachada controladas pelo PCC, pelo CV ou pela cúpula do jogo do bicho do Rio, por exemplo? Haja ingenuidade.

No melhor cenário para a sociedade brasileira, o PL da Jogatina seguirá como uma espécie de fantasma a vagar pelos escaninhos do Congresso, como sói acontecer há três décadas, sempre à espreita para ameaçar, de tempos em tempos, colocar o País à beira de um abismo moral, social e institucional.

São sobejamente conhecidos os terríveis danos que a jogatina provoca no seio familiar e, como consequência, na sociedade como um todo. Mas o óbice moral, por mais expressivo que seja, não é o único nem o mais premente interdito a esse projeto desestabilizador. Ao fim e ao cabo, está-se tratando de uma lei que abrirá uma avenida para o enriquecimento ilícito de alguns poucos à custa do bem-estar econômico e social da coletividade.

A ladainha que acompanha as discussões sobre a legalização dos jogos de azar no Brasil – o mesmo país em que metade da população não tem acesso a esgotamento sanitário em pleno século 21 – é tão velha quanto a tramitação do projeto. Seus defensores alegam que a instalação de cassinos estimularia o turismo e criaria milhares de empregos, abarrotando o Tesouro com os recursos advindos da tributação dos jogos. A ninguém ocorre ressaltar, por ignorância ou má-fé, o outro lado dessa moeda, qual seja, a abertura de inúmeras novas possibilidades de atuação do crime organizado.

O relator do PL da Jogatina na CCJ do Senado, Irajá Abreu (PSD-TO), alegou que “os jogos já são uma realidade” no País, de modo que seria esperado, e até inteligente, passar a taxar os exploradores e os explorados pelo vício a fim de gerar receitas para o Estado. Subjaz a essa ideia genial, ora vejam, a capitulação diante de um problema que há de ser corrigido, não agravado.

A chaga da violência na América Latina

O Estado de S. Paulo

Situações extremas podem exigir táticas extremas. Mas sem estratégia multifatorial, elas serão contraproducentes. Estado precisa reocupar os espaços dominados pelo crime organizado

A América Latina é a região mais violenta do mundo. Com 9% da população mundial, ela registra mais de um terço dos homicídios. Além das vidas ceifadas e traumas sociais, a violência implica perdas econômicas. Gastos que poderiam ser investidos em atividades produtivas ou assistência social são consumidos pela segurança. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a violência custa 3,6% do PIB dos países latino-americanos, duas vezes mais que nos países desenvolvidos e o equivalente aos gastos da região com infraestrutura ou à renda dos 30% mais pobres. Isso sem contar os custos colaterais: menos empregos, mais emigração, erosão das instituições e corrupção. O crime agrava a pobreza e a pobreza incentiva o crime. Uma série do Estadão investigou exemplos e contraexemplos de como reverter essa espiral viciosa.

Entre os últimos está El Salvador. Não se pode dizer que a política de mano dura do presidente Nayib Bukele seja ilusória, ao menos não a curto prazo. As taxas de homicídios caíram a níveis europeus. Mas ela é insustentável e não serve de modelo a outros países.

Constituições democráticas preveem estados de exceção e a suspensão de liberdades civis em meio a calamidades como a violência aguda. Mas, para serem justificadas e eficazes, essas medidas precisam ter um prazo curto, nunca violar direitos fundamentais, basearem-se nas evidências da ciência criminal, contar com uma mobilização nacional para restringir abusos e um plano robusto de retorno à normalidade.

Nada disso está sendo observado em El Salvador. O estado de emergência decretado em 2022 deveria durar 30 dias, mas é reeditado todo mês. A história mostra que a perpetuação de estados de exceção é contraproducente e reforça as dinâmicas que visam a combater. A deterioração do Estado de Direito afasta investidores e incentiva a corrupção e a organização das gangues. O superencarceramento transforma os presídios em quartéis-generais do crime. Franquear a segurança pública a militares não treinados para isso acarreta violações a direitos humanos, corrupção e infiltração do crime.

El Salvador já tentou políticas de mano dura antes e a recidiva foi pior. De resto, a violência lá é produto de gangues que extorquem comunidades locais. Mas as grandes alavancas da violência na América Latina são organizações criminosas transnacionais mais estruturadas, ricas e municiadas. Em Honduras, que ocupa uma posição-chave na rota do narcotráfico, a replicação do “método Bukele” nem sequer produziu um alívio momentâneo.

Uma vez que um vespeiro está formado, não é inteligente debelá-lo com uma pancada. Uma estratégia mais paciente, orgânica e multifatorial é necessária para enfrentar o crime organizado. A repressão ostensiva aos indivíduos mais brutais, uma tática conhecida como “dissuasão focada”, pode amainar situações de violência extrema. Mas só operações de inteligência e asfixia financeira logram um desmantelamento eficaz das organizações criminosas.

A Colômbia, por exemplo, ainda tem muito a fazer no combate ao crime. Mas em uma geração ela reduziu as taxas de homicídio de calamitosas para “normais”, ao menos para a América Latina. Medellín, em especial, considerada a cidade “mais violenta do mundo” na época de Pablo Escobar, alcançou o menor nível de violência em 40 anos, em parte por táticas de dissuasão focadas para desencorajar os chefes das facções a atos violentos e promover pacificações entre eles.

Essa estratégia tem limites. As tréguas reduzem a violência a curto prazo, mas, a longo, permitem às facções se consolidarem. Além de policiamento focado nas zonas mais perigosas e investimentos em capacidade investigativa, Medellín promoveu a reapropriação do espaço público pela população, programas sociais e educacionais para reduzir incentivos dos jovens ao crime e o fortalecimento do Judiciário.

No fim, o crime organizado prospera onde há um vácuo do Estado, e a solução definitiva para debelá-lo é o Estado reocupar esses espaços, com infraestrutura, serviços, um Judiciário eficiente e condições de crescimento econômico.

Lambança sindical

O Estado de S. Paulo

Greve nas universidades federais chegou ao fim com prejuízo às instituições e aos alunos

Após mais de dois meses de agonia, foi anunciado, enfim, o encerramento da greve nacional dos professores das universidades federais. O único sindicato que ainda resistia – Andes – comunicou no domingo que a maioria de suas instituições filiadas optou pelo término da paralisação, consumando um movimento que já se iniciara com a Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes). Os paredistas do Andes eram os mais inflexíveis, mas acabaram sucumbindo aos fatos: uma greve sem sentido, uma paralisação já rejeitada por parte considerável dos docentes, um governo que já havia chegado ao limite orçamentário para o atendimento às demandas salariais e um movimento sindical rachado e mais preocupado com a busca de hegemonia de sua representação do que com a efetiva reestruturação do ensino superior. O fim da greve, na prática, se deu bem antes de o Andes decretá-lo.

O movimento sindical reafirmou, assim, sua inépcia: o risco apontado antes pelo ex-sindicalista Lula – um experiente grevista, como se sabe – se consumou, isto é, o de que a greve acabaria por inanição. Enquanto isso, os sindicatos disputam a tapa o coração de filiados. Previsivelmente o comando sindical se apressou a definir o movimento como “vitorioso”, e creditou o fim da greve à “intransigência” do governo do presidente Lula da Silva. Também como de praxe, a extensa lista de reivindicações para justificar a greve acabou resumida a um só desejo: reajuste salarial. Por causa das evidentes limitações orçamentárias, o governo propôs reajuste zero em 2024 e uma elevação de reajuste linear, até 2026, de 9,2% para 12,8%, sendo 9% em janeiro de 2025 e 3,5% em maio de 2026. O Proifes topou, o Andes não e ainda levou um mês desde a definitiva oferta do governo, tornando mais penosa a vida de estudantes e professores. Com o calendário acadêmico jogado às favas, mais uma vez o cumprimento dos programas sairá prejudicado.

Objetivamente se contabilizaram alguns ganhos: aumento de benefícios para os servidores federais, como saúde e alimentação, suplementação no orçamento das instituições federais de ensino superior e um acordo de aumento salarial para o ciclo 2024-2026. Tais conquistas, no entanto, se deveram não ao sindicato que queria estender a greve, e sim ao Proifes e à Andifes, associação que representa os dirigentes das instituições federais de ensino superior. Sinal evidente de que os métodos de negociação precisam ser atualizados. Greves como essa não ajudam nem a carreira docente nem os técnicos administrativos, muito menos a universidade como um todo. Ao contrário, são geradoras de desgaste, confusão e perda de prestígio, um desserviço contra a universidade pública, alvo de crescente desconfiança (e, pior, indiferença) em parcela relevante da sociedade.

Enquanto isso, uma universidade como a UFRJ diz estar “respirando por aparelhos”, a Unifesp anuncia só ter dinheiro para funcionar até setembro, e instituições têm obras inacabadas enquanto o governo anuncia expansão com novos campi. Problemas cuja solução passa bastante longe de movimentos grevistas.

Ser pesquisador é uma árdua opção

Correio Braziliense

Condições, mesmo com o recente reajuste autorizado pelo governo federal, são desanimadoras para quem pretende fazer uma carreira nesse campo no Brasil

Ser pesquisador no Brasil, para muitos, significa abrir mão de benefícios trabalhistas e previdenciários. A legislação garante, em lugar de salários, bolsas e permissão ao cientista de ter outras fontes de renda. Essas condições, mesmo com o recente reajuste autorizado pelo governo federal, são desanimadoras para quem pretende fazer uma carreira na pesquisa, como mostrou a reportagem Vida de pesquisador longe do ideal (Correio Braziliense, 23/6). Em alguns casos, os mais persistentes podem se vítimas do fenômeno "burnout acadêmico", com sintomas de depressão e ansiedade decorrentes de estresse prolongado.

Na compreensão do cientista William Kaelin, Nobel de Medicina (2019), "a grande transformação e as descobertas, muitas vezes, vêm de observações inesperadas e de cientistas talentosos que recebem a liberdade e os recursos para seguirem a própria curiosidade".  Se o sistema não permite essas ações, no entendimento do Kaelin, seria o mesmo que "colocar vendas nos jovens cientistas e dizer que eles só serão financiados se estiverem fazendo algo que já está muito próximo de ser aplicado",  afirmou em entrevista ao Correio, em setembro do ano passado.

A competência dos pesquisadores brasileiros foi demonstrada durante a pandemia de covid-19. Eles participaram ativamente dos estudos e testes que levaram à descoberta da vacina contra o vírus Sars-Cov-2. Tanto no Brasil quanto em outras nações, o tempo recorde de formulação do imunizante suscitou dúvidas quanto à eficácia do medicamento. 

As normas brasileiras dificultam a execução de trabalhos dessa magnitude. Em alguns casos, o pesquisador fica dividido entre o estudo e o emprego formal, para suprir suas necessidades financeiras. Se esse aspecto não é o ponto frágil, há barreiras pela dificuldade de obtenção de insumos e equipamentos essenciais à conclusão do projeto.

Entre as opções, está a de migrar para outro país que ofereça condições adequadas às pesquisas pretendidas. Um estudo da Universidade de Campinas constatou que há um grande contingente de cientistas nacionais disperso por 42 países, com concentração mais acentuada em Estados Unidos, Canadá,  Alemanha, Reino Unido, Portugal, França e Espanha. Hoje, entre os 100 mil cientistas mais influentes do mundo, 1.294 são brasileiros, atuando dentro e fora do país. Trinta e um, por exemplo, são da Universidade de Brasília (UnB), segundo o ranking da Universidade Stanford (EUA), em parceria com a Elsevier, a maior editora científica do mundo.

Inovação, tecnologia, ciência, assim como melhorias em todas as etapas da educação, são bases essenciais ao desenvolvimento do Brasil, o que inclui remuneração justa aos profissionais. Mas não só isso: também é fundamental políticas públicas que garantam investimentos adequados nas instalações e nos insumos das unidades de ensino desde o ensino básico até o universitário, em todo país.

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