sábado, 11 de outubro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais /Opiniões

Guerra aberta

Por  Revista Será?

Na guerra aberta entre o Congresso (leia-se, Centrão) e o Executivo (leia-se, presidente Lula), a vítima é o Brasil. Enquanto eles brigam para ver quem gasta mais e onde apertam os calos, os brasileiros colherão os frutos podres de uma economia que se arrasta e de um Estado capenga.

A Câmara dos Deputados decidiu, ontem, retirar de pauta a Medida Provisória 1.303, que ampliava impostos para tapar um buraco no Orçamento de 2026, com o objetivo de cumprir as metas definidas pelo Arcabouço Fiscal. Sob o argumento de que “o Brasil não aguenta mais aumento de imposto” para financiar mais gastos do governo em ano eleitoral, a oposição se uniu para derrotar o projeto e fragilizar o presidente Lula da Silva diante das próximas eleições.

Em resposta, o governo defende a elevação da receita com “impostos sobre os ricos” para cobrir despesas voltadas aos pobres, retomando a velha polarização entre pobres e ricos. Nesta disputa, ambos os lados estão errados, e seus argumentos são falaciosos. Cada um utiliza o interesse da sociedade como biombo para esconder seus próprios interesses políticos — e os dos grupos que os sustentam.

Há uma percepção geral de que é necessário e urgente reduzir as despesas primárias, tanto para evitar uma crise fiscal aguda nos próximos anos quanto para preservar o próprio Arcabouço Fiscal. O ministro Fernando Haddad concorda com esse diagnóstico e tem feito um esforço sincero para rever gastos públicos e equilibrar as contas. Enfrenta, porém, duas dificuldades.

A primeira, e mais grave, é o apetite gastador do presidente da República e de sua base política, que não aceitam ajustes e ainda pretendem ampliar despesas e lançar novos programas sociais — uma generosidade que não cabe no orçamento e que, em última instância, tem propósito eleitoral.

A segunda é o obstáculo real da rigidez estrutural do orçamento, que restringe os espaços para cortes com resultados rápidos e sem desgaste político. A solução mais fácil e imediata é o aumento de impostos, embora o Brasil já suporte uma das maiores cargas tributárias do mundo.

Diante da derrota na Câmara dos Deputados, o governo Lula devolve a responsabilidade aos parlamentares, que controlam cerca de 50 bilhões de reais do orçamento da União (metade das despesas discricionárias do Executivo) por meio das emendas parlamentares. Como a Medida Provisória pretendia arrecadar 20,9 bilhões, os deputados e senadores poderiam, em tese, ceder metade de suas cotas. Mas não vão ceder — e o governo já antecipou que cortará parte dessas emendas, podendo chegar a 10 bilhões de reais.

A escalada do conflito entre o Centrão e o presidente Lula antecipa a polarização e as tensões que dominarão o cenário das próximas eleições. E, mais uma vez, a vítima será o Brasil.

Com derrota de MP do IOF, ajuste de gastos se impõe

Por O Globo 

Para equilibrar contas são necessários R$ 46 bilhões — mas Lula rejeita cortes estruturais

Em meio a uma leva de boas notícias para o governo — aprovação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, abertura de diálogo sobre o tarifaço com Donald Trump e recuperação da popularidade —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará digerir a dura derrota que lhe foi imposta pela Câmara na última quarta-feira, quando deputados retiraram da pauta a Medida Provisória (MP) que criava alternativas à elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Com o fim da validade da MP, o governo se viu desafiado a cobrir um rombo estimado em R$ 46 bilhões até o fim de 2026. Até agora, não tem proposta convincente para isso.

De nada adiantam as lamúrias e a busca por culpados externos. O maior responsável pelo abate da MP é o próprio governo. Errou desde o início, insistindo no aumento de impostos. A MP já era ruim, mas ficou pior quando deputados a desidrataram, reduzindo a tributação das bets e recuando na taxação de ativos financeiros como Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e do Agronegócio (LCAs).

Agora, o governo precisa se virar para obter novos recursos e promover cortes no Orçamento. O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP), aventou a possibilidade de contingenciar até R$ 10 bilhões em emendas parlamentares — uma ideia mais que oportuna. Lula deverá discutir o assunto com a equipe na próxima semana, depois de voltar de viagem a Roma, mas adiantou que uma proposta cogitada é taxar fintechs. “A gente vai propor que o sistema financeiro, sobretudo as fintechs, porque tem fintech hoje maior que banco, pague o imposto devido a este país”, disse.

O governo se vê sempre diante do mesmo problema: cobrir déficits no Orçamento gerados por uma gestão perdulária, que despreza o controle dos gastos públicos. Desde o início do mandato, essa nunca foi uma preocupação genuína. Quando a popularidade de Lula começou a despencar, cresceu o pacote de bondades do Palácio do Planalto, independentemente de haver recursos para sustentá-lo. A solução canônica tem sido o avanço sobre o bolso do contribuinte, apesar de os brasileiros já sofrerem com uma das maiores cargas tributárias do mundo.

Até aqui, Lula tem se recusado a fazer o que é necessário: promover ajustes estruturais nas despesas para equilibrar as contas. A política de aumento real do salário mínimo, que acarreta reajustes automáticos em todas as despesas a ele vinculadas (como aposentadorias, Benefício de Prestação Continuada, abono salarial ou seguro-desemprego), é um sorvedouro de recursos públicos. Assim como a vinculação obrigatória das despesas com saúde e educação à arrecadação (se a economia cresce, também cresce o gasto nessas duas áreas sem nenhuma avaliação de critério ou necessidade). Não surpreende que o Orçamento seja dominado por despesas obrigatórias, praticamente sem espaço para gastos livres.

É provável que nem o governo saiba qual será a saída para compensar o fracasso da MP do IOF. Petistas têm dito ser possível mexer em impostos sem aval do Congresso. O Supremo validou a competência do governo para elevar o IOF sem consultar o Parlamento. Mas esse caminho resultaria em mais crise e novos impasses. O Congresso já deixou claro que não está disposto a chancelar a sanha arrecadatória do Planalto. O governo não pode se furtar a implementar ajustes nas despesas.

Erro na privatização da Cedae serve de lição para futuras licitações

Por O Globo

Pelas discrepâncias no edital, estatal deverá indenizar concessionária Águas do Rio em R$ 900 milhões

Está em negociação um termo de conciliação entre a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), a empresa Águas do Rio — concessionária dos serviços de água e esgoto em parte do estado —, o governo fluminense e a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico (Agenersa). O acordo deverá prever indenização à concessionária por erros no edital de concessão, sintoma do descalabro que imperava no setor de saneamento do Rio antes de o serviço ser transferido à iniciativa privada.

Foram constatadas discrepâncias significativas entre os números informados no edital de concessão, com base nos dados da Cedae, e os apurados pela concessionária depois de assumir os serviços. Em Magé, município da Região Metropolitana do Rio no entorno da Baía de Guanabara, o estado informava haver 40% de cobertura de esgoto, mas técnicos da empresa perceberam que o percentual real era zero. Em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, o que deveria ser 39% caiu para 8%. Em Duque de Caxias, também na Baixada, de 43% para 10%. A Cedae simplesmente não fazia ideia da situação real do saneamento nos municípios fluminenses.

A estatal ainda tentou se eximir de responsabilidade, pedindo à Agenersa a rejeição do pleito da Águas do Rio. Alegou que inconsistências e lacunas haviam sido motivadas pela “natureza autodeclaratória do sistema”. O governo do estado também tentou se esquivar, argumentando que a concessionária não tinha elementos para pedir reequilíbrio do contrato. Mas ambos voltaram atrás e aceitaram a conciliação.

Estima-se que, pelo acordo — que ainda poderá ser revisto ao fim da checagem dos dados —, a Cedae terá de pagar cerca de R$ 900 milhões à Águas do Rio até o fim do contrato, em 2056 (o valor corrigido pode chegar a R$ 1,4 bilhão). A quantia será descontada dos pagamentos à Cedae, responsável pela captação e pelo tratamento da água fornecida à Águas do Rio. Atualmente, a concessionária paga R$ 150 milhões por mês.

O governo do Rio garantiu que o acordo impedirá que haja aumento de tarifa para os consumidores e disse que o contrato de concessão já previa medidas de ajuste. “O ajuste contratual de tarifa será compensado pelo desconto no valor da água vendida pela Cedae à concessionária”, afirmou em nota. É positivo que o contribuinte seja poupado. Só faltava ele ter de pagar a conta da inépcia da estatal.

Municípios fluminenses costumam ocupar posições vexatórias em rankings de saneamento. Felizmente parte do serviço foi transferida à iniciativa privada em 2021, de modo a garantir investimentos e serviço melhor. O episódio deixa claro, porém, que a melhoria nas regiões onde há discrepância nos dados demorará mais, porque a situação encontrada é pior do que a informada pela estatal. As autoridades deveriam ter mais cuidado com os editais de licitação, para que o mercado obtenha informações confiáveis na hora de tomar suas decisões de negócio. É uma lição para futuras licitações — e não só no setor de saneamento básico.

Primeiros gestos entre Israel e Hamas são promissores

Por Folha de S. Paulo

Anúncio de cessar-fogo abre janela para libertação dos reféns em troca de concessões de Netanyahu

Trump encontrou oportunidade para emplacar o acordo entre um país que asfixia Gaza e um grupo terrorista com poucas opções disponíveis

Progride bem a primeira fase do plano de distensão entre Israel e o Hamas patrocinado pelos Estados UnidosAs duas partes concordaram com o cessar-fogo que abre janela de três dias para o grupo terrorista libertar os 48 reféns —dos quais se estima que 20 estejam vivos— que ainda mantém desde os ataques de 7 de outubro de 2023.

O governo israelense se comprometeu com um discreto recuo no cerco da faixa de Gaza e também com a soltura de cerca de 2.000 prisioneiros palestinos. Cautela nunca é pouca com prognósticos sobre esse conflito, mas os gestos até aqui são os mais promissores nos dois anos da guerra.

A aprovação da etapa inicial do projeto anunciado pelo presidente Donald Trump causou trepidações no gabinete do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, com a ala extremista ameaçando implodir o governo caso o processo não assegure o completo desarmamento do Hamas, tema que ficou para uma segunda fase.

Já os terroristas do lado palestino parecem ter ficado sem muitas opções diante da avassaladora e desproporcional operação militar israelense, que foi muito além de incursões anteriores e deixou um saldo de dezenas de milhares de mortes e de aniquilação da infraestrutura daquele território.

Aliados tradicionais do Hamas, como o Hezbollah e o regime iraniano, desta vez também foram duramente castigados pelas Forças Armadas e pela inteligência de Israel, perdendo condições de apoiar os extremistas palestinos.

Diante da crescente crítica internacional à asfixia promovida por Israel contra a população civil de Gaza, o "pacifismo" de Trump —cujo ego ilimitado talvez esperasse ser ele o agraciado com o Nobel da Paz de 2025— encontrou a oportunidade de frutificar. Às diplomacias responsáveis não havia alternativa que não aderir à iniciativa dos EUA, como fez corretamente o Itamaraty.

O pacifismo leva aspas porque Trump supõe, e louva, que a paz só pode ser obtida depois de um lado colocar-se perto de trucidar o outro pela força. Para o presidente americano, pacificação seria decorrência obrigatória do exercício da supremacia militar —uma capitulação.

Essa doutrina peculiar poderá ganhar asas na esteira do desfecho do plano para Gaza, pelas características específicas de como o conflito entre Israel e o Hamas se desenvolveu. Mas a sua extrapolação para a esfera global e outros contenciosos traria péssimas repercussões e expectativas.

Seria a aceitação de que a lei do mais forte deveria prevalecer na relação entre os povos. Intervenções armadas se tornariam cada vez mais estimuladas, em especial pelo comportamento da maior potência militar do planeta.

Por ora a esperança de achar o caminho para pôr fim à carnificina na Palestina supera os temores sobre o que a doutrina Trump da pacificação poderá acarretar para o mundo. E os próximos dias serão cruciais para avaliar a hipótese de uma trégua duradoura entre israelenses e palestinos.

Caos peruano

Por Folha de S. Paulo

Instabilidade política derruba Dina Boluarte; corrupção e interferência entre Poderes minam governabilidade

Há dispositivos capazes de destituir o presidente facilmente, como o artigo da Constituição que trata da incapacidade moral do mandatário

Nos últimos 9 anos, o Peru teve nada menos que 7 presidentes. O mais recente, José Jeri, que presidia o Congresso, foi empossado nesta sexta (10), após Dina Boluarte ser deposta pelo Legislativo no mesmo dia —um dos mandatários, Manuel Arturo Merino, chegou a ficar só 5 dias no cargo, em 2020.

O cenário político caótico não está associado a uma profunda crise econômica, como se poderia imaginar. O Produto Interno Bruto peruano tem tido expansão razoável, e a inflação está sob controle desde 2023.

Na América Latina, o país teve a maior alta de investimentos estrangeiros diretos em 2024, com 57%, seguido por México (48%) e Brasil (14%), de acordo com dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe.

O fenômeno já foi chamado de paradoxo peruano. Alejandro Toledo (2001-2006), por exemplo, deu início a um ciclo de crescimento da atividade, mas sua taxa de popularidade chegou a 8%.

Com Alan García (2006-2011) e Ollanta Humala (2011-2016), o último a cumprir todo o mandato, deu-se algo parecido: popularidade baixa com desenvolvimento bem acima da média regional.

A ingovernabilidade recente no país se deve principalmente a escândalos de corrupção e a um desenho institucional que permite interferência recíproca excessiva entre o Executivo e o Legislativo, que conta com dispositivos capazes de destituir o presidente com bastante facilidade.

Boluarte chegou ao poder porque era vice do esquerdista Pedro Castilho, que, em dezembro de 2022, dissolveu o Congresso e instituiu governo de exceção. Em poucas horas, contudo, a tentativa de golpe de Estado foi dissolvida, e Castilho, destituído.

Boluarte enfrentava taxas de aprovação em torno de 3%, piora da criminalidade e acusações de enriquecimento ilícito e de reprimir com violência protestos a favor de seu antecessor. O fato de ter feito alianças com a direita também contribuiu para a insatisfação de sua base.

Foi o que bastou para que partidos de todo o espectro, inclusive os conservadores que antes a apoiavam, aprovassem sua destituição com base no artigo 113 da Constituição do país, que permite impeachment no caso de incapacidade moral do mandatário —interpretada como comportamento incompatível com o cargo ou perda de confiança popular.

O dispositivo, vago em demasia, é criticado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por ensejar arbitrariedades. Em tais condições, não parece promissor o futuro do conservador Jeri na Casa de Pizarro.

Um Nobel para a coragem

Por O Estado de S. Paulo

Nobel da Paz homenageia com justiça a luta de María Corina Machado para dar aos venezuelanos a esperança de recobrar a democracia – luta esta que Lula, infelizmente, nunca reconheceu

A concessão do Nobel da Paz de 2025 à líder da oposição venezuelana, María Corina Machado, é mais do que uma distinção pessoal: é a reafirmação do compromisso do mundo civilizado com os valores da democracia liberal, os direitos humanos e o Estado de Direito. Laureada foi a coragem de todos os venezuelanos que, liderados por María Corina, unem forças contra a tirania de Nicolás Maduro à custa de sua liberdade ou da própria vida. O prêmio, nesse sentido, deveria ser ocioso. Independentemente de chancelas honorárias, qualquer democrata de corpo e alma há de reconhecer o valor dos esforços dessa corajosa mulher em prol da paz em seu país e além.

Em tempos de inquietante tolerância com autocratas que corroem por dentro os pilares da democracia por meio da desvirtuação do poder político, o Comitê Norueguês do Nobel lembrou a todos que a luta pelo regime das liberdades ainda exige firmeza de caráter e sacrifício pessoal. Como lembrou Jørgen Frydnes, presidente do comitê, “apesar das sérias ameaças à sua vida”, María Corina permaneceu na Venezuela, uma decisão que “inspirou milhões” em seu país a continuar acreditando que viver sob as garras de Maduro não era destino e que, por meio da resistência cívica, um futuro mais auspicioso para todos os venezuelanos haverá de chegar.

A Venezuela vive há mais de duas décadas submetida aos horrores de um regime que, nascido das urnas, destruiu paulatinamente o próprio instrumento que o legitimou. Eleições no país vizinho são uma farsa. A ditadura de Maduro, herdeira do projeto de poder de Hugo Chávez, obliterou a separação de Poderes, calou o jornalismo profissional, cooptou instituições e reduziu a política à lealdade ao caudilho. Milhões de venezuelanos foram forçados ao exílio, inclusive no Brasil, por fome, medo ou desesperança. É nesse cenário de ruína moral e material que María Corina se ergueu como símbolo da oposição a Maduro, enfrentando cassações, ameaças e prisões de aliados sem jamais desistir da via pacífica nem abdicar do respeito à legalidade.

O Nobel dá ampla visibilidade a uma tragédia humanitária que parte da comunidade internacional preferiu deixar de lado em meio a tantas outras fontes de preocupação. É um alerta dirigido especialmente a alguns países da América Latina onde a solidariedade com as vítimas do regime tem sido substituída por constrangedora condescendência com Maduro. Governos autoproclamados democráticos – inclusive o brasileiro – tratam o ditador com deferência e, não raro, hostilizam seus opositores. A convicção democrática, nesses casos, foi superada pelo cálculo político.

É dever do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais do que de qualquer outro líder da região, pôr a mão na consciência e refletir sobre o significado do Nobel concedido a María Corina. Quando o “companheiro” Maduro cassou a candidatura presidencial de María Corina, de forma escandalosamente ilegal, Lula reagiu com ironia. Na ocasião, o petista disse que também fora “impedido de concorrer” em 2018, mas que, “em vez de ficar chorando”, indicou outro candidato – sugerindo que a venezuelana fizesse o mesmo. Para além do preconceito, Lula igualou situações incomparáveis e desdenhou da força de uma mulher que arrisca a vida pelos mesmos princípios que o petista, aparentemente só da boca para fora, diz defender.

O Nobel da Paz concedido a María Corina é um lembrete de que a democracia não é um “conceito relativo”, como dissera Lula, em 2023, ao tratar da crise na Venezuela. Seus valores não podem ser moldados conforme arranjos geopolíticos. A Venezuela vive sob uma brutal ditadura. E o fato de ainda haver quem hesite em chamar as coisas pelo nome mostra o quanto a política regional se divorciou de princípios morais e humanitários que deveriam se sobrepor às divergências políticas.

Laurear María Corina é uma resposta, ainda que indireta, a esses democratas seletivos que sacrificam os valores democráticos sob o altar das afinidades ideológicas. O reconhecimento de sua luta, como já dito, independe de prêmios. Mas o Nobel da Paz tem o mérito de registrar para a História que, enquanto há líderes que se omitem diante do arbítrio, por cálculo ou tara ideológica, há quem o enfrente com coragem e dignidade.

O governo Lula e o antissemitismo

Por O Estado de S. Paulo

Retirada do Brasil da Aliança de Memória do Holocausto é ideológica e injustificável. Mais do que retrocesso diplomático, é perversão moral, com prejuízos duradouros para os judeus brasileiros

Há poucos dias, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse à Comissão de Relações Exteriores da Câmara que o Brasil se retirou da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês), em 18 de julho passado, porque o instrumento de adesão, em 2020, estava “eivado de erros de forma”.

Segundo o ministro Vieira, não houve consulta prévia ao Congresso, razão pela qual faltou previsão orçamentária para a contribuição à IHRA (10 mil euros anuais), “deixando o Executivo brasileiro vulnerável a justos questionamentos por parte dos órgãos de controle”. O discurso em defesa da prudência no uso do dinheiro público, contudo, mal esconde o que parece ser a verdadeira motivação da retirada do Brasil da IHRA: marcar posição contra Israel.

A IHRA foi formada em 1998 com o objetivo de reforçar a educação sobre o Holocausto, diante da ignorância generalizada dos jovens europeus sobre o extermínio dos judeus na 2.ª Guerra. Logo conseguiu a adesão de diversos países, dentro e fora da Europa. Em 2016, decidiu adotar uma definição de antissemitismo para orientar o acompanhamento de ataques a judeus no mundo.

Segundo essa definição, antissemitismo é “ódio aos judeus” a partir de uma “determinada percepção dos judeus” e que se manifesta por meio de violência retórica ou física contra “indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas”. A questão central aqui é que, entre os exemplos de antissemitismo citados pela IHRA, estão alguns que dizem respeito a Israel, e é isso o que o governo brasileiro não aceita.

O chanceler Mauro Vieira expressou essa contrariedade ao apontar o que chamou de “total falta de clareza” por parte da IHRA “quanto aos limites do discurso e da ação política legítima em relação ao sionismo, a Israel e à Palestina”. Em seguida, o ministro atacou a “instrumentalização do antissemitismo para inibir críticas contra as graves violações de direitos humanos e ao Direito Internacional humanitário na Faixa de Gaza e na Cisjordânia cometidas pelo atual governo israelense”.

Ocorre que a IHRA, ao contrário do que disse o ministro Vieira, deixa claro que “críticas a Israel semelhantes às dirigidas a qualquer outro país não podem ser consideradas antissemitas”. Para a IHRA, no entanto, é antissemita quem aplica a Israel “padrões duplos ao exigir um comportamento não esperado ou exigido de nenhuma outra nação democrática” e “estabelece comparações entre a política israelense contemporânea e a dos nazistas” – que é exatamente o que o governo Lula faz.

Mas o chanceler Mauro Vieira escolheu ignorar as nuances do conceito de antissemitismo formulado pela IHRA e partiu para uma interpretação ardilosa, ao dizer que “aceitar que a crítica às políticas adotadas por Israel seja equiparada a antissemitismo equivaleria a acusar milhares de cidadãos israelenses, judeus, que se opõem ao governo do primeiro-ministro israelense, também de serem antissemitas”. A má-fé da declaração é gritante: o conceito de antissemitismo da IHRA obviamente não se presta a condenar cidadãos israelenses que não gostam de seu governo, e sim pessoas ou governos que vilanizam Israel em qualquer circunstância, mesmo que Israel esteja exercendo seu direito de se defender, como faria qualquer país em situações semelhantes.

Isso tudo é muito coerente com a visão de esquerda, prevalecente no governo de Lula da Silva, segundo a qual Israel é um país criado pelo imperialismo ocidental para roubar terras e explorar os palestinos. Eis aí por que o chanceler Vieira se queixou dos supostos “limites” impostos pela IHRA à “ação política legítima em relação ao sionismo” – referência ao movimento de autodeterminação do povo judeu. Para a esquerda, como se sabe, sionismo é sinônimo de racismo e nazismo.

Que militantes de esquerda disfarcem seu antissemitismo dizendo-se “antissionistas”, é compreensível; que o governo brasileiro se preste a isso quase oficialmente, abandonando, sob argumentos burocráticos e ideológicos, uma organização dedicada a preservar a memória do Holocausto, é profundamente lamentável, pois manda aos antissemitas a mensagem de que sua hostilidade aos judeus brasileiros é não só aceitável, mas justa.

Encruzilhada no Japão

Por O Estado de S. Paulo

Establishment testa virada conservadora em meio a instabilidade política e estagnação econômica

A eleição de Sanae Takaichi como líder do Partido Liberal Democrata (PLD), que deve fazer dela a próxima premiê do Japão, marca uma inflexão, não só por razões simbólicas – será a primeira mulher a governar o país –, mas por romper a rotina de lideranças apagadas e gestões protocolares.

Resolutamente conservadora, Takaichi chega ao topo com um discurso voluntarista, um passado fora dos moldes convencionais e disposição a desafiar o status quo. Sua ascensão é um marco – mas um marco incerto. O sucesso de seu governo dependerá menos de sua biografia do que da capacidade de oferecer direção política em meio à erosão da velha ordem.

O PLD, que governou o país quase sem interrupção por sete décadas, perdeu a maioria nas duas casas do Parlamento, assombrado por escândalos de financiamento e pela desconfiança dos jovens. Eleitores desiludidos migram para legendas populistas de direita, como o Sanseito, ou insurgentes, como o Democrático para o Povo. A coalizão com o partido de centro-direita Komeito colapsou. Takaichi, se eleita, precisará engajar um partido fragmentado e formar alianças heterodoxas.

A economia patina entre a estagnação e o endividamento. A inflação incomoda o eleitorado, a dívida pública supera 200% do PIB, e o envelhecimento populacional pressiona os gastos sociais. Takaichi diz se inspirar em Margaret Thatcher, símbolo do liberalismo econômico, mas suas propostas lembram mais os enganos desenvolvimentistas do passado recente: aumento de gastos públicos, pressão sobre o banco central para reverter a normalização monetária, e políticas industriais sem garantias de produtividade. O mercado mostrou entusiasmo: ações em alta, iene em baixa. Mas os juros de longo prazo subiram, e analistas advertem para o risco de descontrole fiscal. Takaichi terá de escolher entre agradar sua base – que espera crescimento imediato – ou reequilibrar uma economia cansada de promessas.

Na arena internacional, Takaichi herda um arquipélago vulnerável em meio a um tabuleiro em combustão: Coreia do Norte armamentista, China beligerante, Rússia agressiva e EUA imprevisíveis sob Donald Trump. A aliança com Washington segue estratégica, mas a retórica nacionalista de Takaichi pode esgarçar laços com vizinhos essenciais. Sua proposta de combinar um necessário rearmamento militar com revitalização tecnológica pode estimular um ciclo de crescimento – um tipo de keynesianismo militar adaptado ao século 21. Mas requer execução competente, habilidade diplomática e moderação retórica. Nada disso é trivial.

Takaichi representa, enfim, uma promessa incerta. Sua eleição pode sinalizar o fim da política do piloto automático, mas também o risco de um novo voluntarismo fiscal e de tensões externas mal calibradas. Ela terá de escolher entre a retórica da ruptura e a disciplina da responsabilidade. Se conseguir conciliar ambição com prudência, poderá revitalizar não só o PLD, mas uma democracia funcional. Se fracassar, abrirá espaço a uma leva de aventureiros – mais barulhentos, menos preparados. A encruzilhada está posta.

Nobel de Corina expõe ambiguidade de Lula sobre Maduro

Por Correio Braziliense

Enquanto Corina se apoia em Washington, Lula mantém excesso de pragmatismo em relação à Venezuela.

A escolha de María Corina Machado como vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2025 é um marco político e moral de proporções continentais. Representa o reconhecimento internacional da resistência contra o autoritarismo de Nicolás Maduro e, ao mesmo tempo, um constrangimento direto ao governo brasileiro, que se manteve em posição ambígua diante da tragédia venezuelana. 

Ao premiar uma líder da oposição banida, perseguida e forçada à clandestinidade, o Comitê Norueguês expôs as contradições das democracias latino-americanas e deixa o presidente Luiz Inácio Lula da Silva numa saia-justa. Para além de possíveis desdobramentos regionais, há ainda o temor de que a premiação fortaleça a postura agressiva do secretário de Estado americano, Marco Rubio, em relação à política externa dos EUA justamente em um momento de reaproximação entre Estados Unidos e Brasil. Rubio defendeu que Corina fosse laureada em carta enviada ao Comitê Norueguês em agosto do ano passado.

O Nobel da Paz para a venezuelana é uma sentença ética contra um regime que destrói instituições, manipula eleições e reprime a dissidência há mais de uma década. María Corina encarna a esperança de um povo reduzido à fome, ao exílio e ao medo. Sua coragem civil, reconhecida pelo comitê como "chama da democracia em meio à escuridão", ilumina a falência moral do chavismo.

Seu discurso ao dedicar o Nobel "ao povo sofredor da Venezuela e ao presidente Donald Trump", revela também a natureza complexa da oposição venezuelana — liberal nos valores, mas dependente do poder norte-americano. É um gesto que desperta controvérsias e mostra a complexidade da realidade de um país abandonado pelos vizinhos. Enquanto Corina se apoia em Washington, Lula mantém excesso de pragmatismo em relação à Venezuela.

A diplomacia brasileira, ao evitar críticas abertas a Maduro e ao minimizar os sucessivos atropelos eleitorais, está diante de mais um dilema. O Itamaraty, defensor dos direitos humanos, não pode ser avalista de uma ditadura que destruiu a economia e expulsou milhões de cidadãos. O Brasil poderia ter liderado um movimento regional pela restauração da democracia venezuelana, mas optou por se calar, embora tenha colaborado com a oposição em momentos críticos para a vida dos opositores.

O Nobel não é apenas uma homenagem a Corina Machado. É um espelho diante de Lula, entre o princípio democrático e a lógica das suas alianças geopolíticas. É, em última instância, um chamado à coerência: ou se está com a democracia, ou com seus algozes.

Esse meio do caminho é exatamente o lugar que a história não perdoa. A venezuelana é uma das principais opositoras do presidente Nicolás Maduro e foi reconhecida como um dos "exemplos mais extraordinários de coragem civil na América Latina".

Gaza, uma chance à paz

Por O Povo (CE)

Em meio ao horror da guerra, um sentimento unificou os dois povos: palestinos e israelenses comemoram o acordo que pode pôr fim à guerra entre Israel e o Hamas, que já dura dois anos. Árabes e judeus anseiam por um pouco de paz, querem voltar a abraçar seus parentes e amigos sequestrados ou presos — e sonham novamente em reunir a família, sem o risco de serem atingidos por tiros ou bombas.

O governo israelense e o Hamas aceitaram os termos do acordo de 20 pontos apresentado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com alguns aspectos ainda em discussão. O mandatário americano disse que viajará neste domingo ao Egito, país que sediou as negociações, para acompanhar de perto o decorrer dos acontecimentos.

Já está acertada a libertação dos reféns israelenses em troca de prisioneiros palestinos e retirada parcial das Forças de Defesa de Israel, que ficariam limitadas a uma parte do território de Gaza.

Analistas internacionais avaliam que o acordo somente foi possível pela intensa pressão que Trump exerceu sobre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e sobre as Hamas, exigindo suspensão das hostilidades.

Pode ser que a pressa de Trump em fechar o acordo tivesse a ver com a campanha que ele faz para receber o Prêmio Nobel da Paz, o que acabou não acontecendo, pelo menos na versão deste ano. No entanto, pouco importam as motivações subjetivas do presidente americano, pois, objetivamente, sua intervenção foi decisiva para pôr fim ao conflito.

Ajudaram também manifestações populares ao redor do mundo, que deixaram Netanyahu cada vez mais isolado. Além disso, uma comissão independente da ONU registrou, em relatório, que Israel cometia genocídio contra os palestinos na Faixa de Gaza.

O secretário-geral da organização, António Guterres, classificou como "moral, política e legalmente intolerável" o conjunto de ações militares de Israel em Gaza. Dos 193 países que integram as Nações Unidas, 157 reconhecem a Palestina como um Estado. Após o início da guerra, outras nações ampliaram essa lista, como Reino Unido, Canadá, Austrália e Portugal.

É preciso lembrar que a guerra começou em outubro de 2023, quando militantes do Hamas, em um ato terrorista, invadiram o território israelense, matando cerca de 1.300 pessoas, entre elas mulheres e crianças. Aproximadamente 900 soldados israelenses morreram em combate.

Do lado palestino, segundo o Ministério de Saúde de Gaza, mais de 66 mil pessoas foram mortos no conflito, mais da metade mulheres e crianças. A Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que 42 mil pessoas em Gaza sofreram lesões graves, mais de cinco mil pessoas sofreram amputações. Crianças somam 25% dos feridos.

Que essa solução provisória seja o passo decisivo para abrir caminho a um acordo mais amplo e duradouro, para pôr fim à barbárie decorrente da guerra, permitindo a convivência respeitosa e pacífica entre esses dois povos, que tanto tem a oferecer à humanidade. 

 

 

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