quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Tordesilhas no Alasca? Por Roberto DaMatta

O Estado de S. Paulo

É o que temos porque ninguém escapa da condição humana cuja história – como revela a grande anistilândia brasileira, os bíblicos tarifaços americanos e o projeto putinesco de reunir a União Soviética – repetimos vivendo seus episódios como novidades – ou “avanços”.

Na história humana, o denominador comum não é a serenidade, mas o angustiante desconcerto diante da divergência nas concepções de vida e morte, da rotina e do inesperado, do dado e do fabricado – essas dimensões que permeiam todos os sistemas culturais conhecidos.

O denominador comum para lidar com as diferenças sempre foi o confronto, jamais a compreensão que, nos sistemas religiosos, surge com perdão e amor.

Poderio militar faz parte do berço do Ocidente. Escravidão, desobediência, preconceito, agressividade e, simultaneamente, perdão, compaixão, altruísmo e esperança são características fundacionais na nossa história. Um caminho marcado pela expulsão do Eden, esse marco de nossa consciência do bem e do mal; e da carga que veio com a liberdade.

Essa visão distanciada talvez ajude a entender esses arrebatamentos das duas maiores potências mundiais. Sobretudo se pensarmos que o ponto de partida para toda essa tecnologia é ocidental e, no fundo, demonstra a capacidade de ser transplantada e dominada no Oriente, apesar do racismo e dos preconceitos culturais. A base do conflito entre EUA e China é, justamente, a recorrente surpresa de ver os bonecos falando mais e melhor do que o ventríloquo.

O progresso pelo infinito progressismo, que weberianamente desencanta o mundo, consolida o poderio militar que tem sido a escolha preferencial dos EUA e da Rússia.

Dissidências entre estados nacionais, interligados por um mercado autorregulado e por um hipercapitalismo comandado pelo brutal poder de uma plutocracia, conduzem a esse filme no qual dois autocratas decidem decidir não decidindo. Em pleno frio do Alasca os dois potentados congelam esperanças. Um alto e o outro baixo, eles reinstituem os dualismos com os quais vivemos desde a origem do mundo. O alto é narcisista, o baixinho, onipotente – ambos são agentes do caos.

Vejam a recorrência. O encontro Trump& Putin no Alasca espelha o tratado celebrado em Tordesilhas, Espanha, em 7 de junho de 1494, quando o mundo foi dividido entre Portugal e Espanha com o aval indiscutível do papa.

Hoje, desencantados e sem mediadores, assistimos ao que parece ser o aval dado a Putin para continuar seu projeto e a Trump para permanecer na sua incoerente opressão tarifária e permeada de ataques à soberania nacional.

Vejam a ironia: o Alasca é uma variante de Tordesilhas, um tratado que viabilizou o Brasil. •

 

 

Nenhum comentário: