- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Verdadeira responsabilidade não é a harmonia
orçamentária em todas as circunstâncias e a qualquer custo
A partir da segunda metade dos anos 1990, depois da
estabilização da inflação crônica brasileira, passou a haver uma sistemática
preocupação de evitar que as contas do setor público saíssem de controle. A
preocupação com o descontrole das contas públicas advém da vinculação entre o
déficit fiscal e a expansão monetária. Até o fim do século passado, a
macroeconomia hegemônica considerava que o descontrole dos gastos públicos e a
excessiva expansão da moeda estavam por trás de todo processo inflacionário.
Como gato escaldado tem medo de água fria, no Brasil depois da estabilização, a
preocupação com o equilíbrio das contas públicas passou a pautar a política
macroeconômica.
No momento em que se discute a suspensão do auxílio
emergencial à população em nome do equilíbrio fiscal, justamente quando a
epidemia de covid recrudesce, é fundamental entender que a verdadeira
responsabilidade fiscal não é o equilíbrio orçamentário em todas as
circunstâncias e a qualquer custo. Nas atuais circunstâncias, a insistência no
equilíbrio fiscal, além de macroeconomicamente equivocada, é moralmente
inaceitável. O objetivo deste artigo é examinar mais a fundo as raízes dos
equívocos da macroeconomia hegemônica. Apesar de revista, continua pautada pela
lógica da moeda metálica. É incapaz de incorporar em seu arcabouço analítico a
moeda fiduciária e o crédito sem lastro na poupança prévia.
Macroeconomia revista
A teoria monetária passou por uma profunda revisão
a partir da última década do século passado. Quando ficou claro que o
instrumento de política dos bancos centrais não é a base monetária, mas sim a
taxa de juros, a relação automática entre a moeda e a inflação foi abandonada.
O “quantitative easing”, QE, um inusitado
experimento de expansão monetária sem respaldo analítico prévio consolidado,
multiplicou o passivo dos bancos centrais por fatores superiores a dez vezes
num espaço de poucos meses, sem que houvesse qualquer sinal de pressão inflacionária.
Ficou então patente que não há relação entre a expansão da moeda e a inflação.
Todas as economias onde o QE foi posto em prática continuaram a flertar com a
deflação.
Abandonada na prática a relação de causalidade
entre expansão monetária e inflação, por tantas décadas sustentada pela
macroeconomia hegemônica, a restrição conceitual imposta à expansão do crédito
público foi reformulada como um limite superior para a relação dívida/PIB.
Em 2009, Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff2, dois
expoentes da macroeconomia hegemônica, publicaram trabalho influente
sustentando que o limite a partir do qual a economia se desorganizaria seria
90%. Mesmo sem considerar a totalidade do passivo consolidado do Estado, ou
seja, o passivo do Tesouro somado ao do Banco Central, antes mesmo da crise de
covid, inúmeros países, entre eles Japão, Itália, Grécia, EUA, já tinham
ultrapassado esse nível de endividamento.
A reação coordenada das políticas monetárias e
fiscais à pandemia durante 2020 voltou a elevar a relação dívida/PIB em todo o
mundo. Apesar dos altos níveis de endividamento público e da abundância de
crédito monetário, não há sinais da volta da inflação, nem de que as economias
avançadas estejam à beira de uma crise fiscal.
Está claro que não existe um limite fatídico para a
relação dívida/PIB, a partir do qual se abriria um “abismo fiscal”, na
expressão preferida dos analistas brasileiros, e o país entraria em colapso.
Diante de tão flagrante evidência, os principais
macroeconomistas americanos deram uma guinada conceitual. No início de dezembro
último, Jason Furman e Lawrence Summers3, renomados professores da Universidade
Harvard, argumentaram em favor de uma mudança de paradigma: a relação
dívida/PIB, ao contrário do que acreditavam, não é um indicador relevante da
sustentabilidade fiscal.
Ben Bernanke, ex-presidente do Fed, assim como
Olivier Blanchard e Kenneth Rogoff, ex-economistas chefes do FMI, concordaram
com eles. Como as taxas de juros praticamente nulas não foram capazes de
reativar as economias paralisadas pela pandemia, Furman e Summers agora
defendem uma política fiscal expansionista, baseada num programa de
investimentos públicos.
No Brasil, ao menos por enquanto, a esmagadora
maioria dos analistas continua a defender a imperiosa necessidade de equilibrar
as contas públicas. Optaram por se dissociar de seus mentores americanos para
sustentar seus dogmas. Apelam para a tese da jabuticaba, Brasil é diferente
porque o Estado e os políticos não são confiáveis. Sustentam que por aqui o
equilíbrio orçamentário é ao mesmo tempo condição necessária para evitar o
abismo e condição suficiente para que a economia volte a crescer.
Aparentemente, os únicos temas econômicos relevantes são o risco fiscal e as
reformas necessárias para garantir o equilíbrio das contas públicas. Tudo mais
seria secundário.
O ponto central da tese de Keynes na “Teoria Geral”
é que a política monetária precisa ser acompanhada do investimento público para
que a economia se recupere. A possibilidade de que, apesar do crédito abundante
e dos juros baixos, não haja recuperação do investimento e da atividade
econômica não deveria ser novidade.
A possibilidade do que Keynes chamou de uma
armadilha da liquidez tem sido efetivamente reivindicada para explicar por que,
apesar das taxas de juros muito próximas de zero, as economias contemporâneas
continuam estagnadas e sem inflação. No entanto, a solução proposta por Keynes,
uma política fiscal expansionista com o aumento do investimento público,
continua a ser vista com desconfiança pela grande maioria dos analistas.
Mesmo superado o dogma do equilíbrio fiscal e o
fetiche da relação dívida/PIB, a macroeconomia hegemônica continua a não
entender que a expansão do crédito prescinde da expansão da poupança. A tese de
que a taxa de juros baixa é consequência do excesso de poupança tem origem na
análise dos economistas clássicos que precederam Keynes. Segundo os clássicos,
a taxa de juros é resultado do equilíbrio entre a oferta e a demanda de fundos
para investimento. Conhecida como a teoria dos “loanable funds”, dos fundos
disponíveis para empréstimos, foi um dos pontos centrais da crítica de Keynes,
para quem a taxa de juros nada tem a ver com a poupança, é determinada no
mercado monetário. Para Keynes, a poupança é sobretudo função da renda e
investimento do otimismo dos empresários. São ambos pouco sensíveis à taxa de
juros. Se não há otimismo e perspectiva de crescimento, a economia pode ficar
estagnada, sem investimento, mesmo quando a taxa de juros está baixa e há
abundância de crédito.