O Globo
Imortalizadas nos computadores dos acusados,
expressões transformaram-se em provas quando confrontadas com a realidade.
Sem saber que adentrava um campo filosófico
delicado que marcaria para sempre sua atuação na tentativa de golpe de Estado
ocorrida em janeiro de 2023, o general da reserva Mário Fernandes, ex-número 2
da Secretaria-Geral da Presidência de Jair Bolsonaro, afirmou em depoimento no
Supremo Tribunal Federal que o plano Punhal Verde e Amarelo feito por ele — que
previa o assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do
vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), do ministro Alexandre de Moraes e a
vigilância de outros ministros do STF — era apenas um “pensamento
digitalizado”.
O coronel Flávio Peregrino, assessor do
general Braga Netto, candidato a vice de Bolsonaro e um dos autores
intelectuais do golpe, diz em documento escrito encontrado pela Polícia Federal:
— Tudo isso para ajudar o Presidente B
[Bolsonaro] a se manter no governo, pois sempre foi a intenção dele.
Peregrino alegou que foram “ideias formuladas com base na liberdade de expressão”.
Imortalizadas nos computadores dos acusados,
essas expressões transformaram-se em provas quando confrontadas com a
realidade. O desejo permanente de Bolsonaro de permanecer na Presidência, mesmo
depois de derrotado por Lula nas eleições, é comprovado por reuniões,
documentos, depoimentos e atos de terrorismo que refletem a busca de uma
solução, alegadamente “dentro das quatro linhas da Constituição”, para a
permanência no poder de Bolsonaro e sua turma.
O “pensamento digitalizado” do coronel Mário
Fernandes foi colocado em ação quando integrantes dos “kids pretos”, tropa de
elite do Exército, foram deslocados para vigiar a movimentação dos alvos do
plano Punhal Verde e Amarelo, havendo até fotos no aeroporto de Lisboa do
ministro do Supremo Gilmar Mendes na fila de embarque, demonstração de que era
seguido.
A tentativa patética de tentar fugir das
consequências de seus atos com uma desculpa esfarrapada lembrou-me uma passagem
do livro “Imortalidades”, do filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras
Eduardo Giannetti. Os “pensamentos” desses dois e de outros que, apanhados com
a mão na massa, alegaram que suas anotações eram pessoais, fruto de
elucubrações — pelo visto tínhamos um grupo com hábitos semelhantes, escrever
seus desejos secretos sem sequer tentar atingi-los —, são uma antecipação
espontânea e algo grotesca que confirma, de maneira precária, a possibilidade
de transformar o pensamento em dados de computadores que guardem os
“sentimentos” humanos depois que o corpo se decompôs.
“Imortalidigitalização” é uma palavra
inventada por Eduardo Giannetti em seu livro, que trata dessa ambição humana
ancestral de vida eterna. Para azar dos acusados da tentativa de golpe, seus
“pensamentos digitalizados” garantem a perenidade da culpa, neste momento pela
simples reprodução do que digitalizaram. Mais adiante, como veremos, estariam
registrados seus pensamentos mais obscuros em máquinas, que substituiriam o
corpo humano.
O transumanismo, corrente tecnocientífica
nascida na Califórnia, tem o objetivo de superar as limitações da vida
biológica por meio de um arsenal tecnocientífico que permita “carregar o eu
digital” com os pensamentos e desejos pessoais em algumas linhas de
programação. Giannetti não compra essa teoria, e argumenta: “De que modo seriam
traduzidos e preservados em código-fonte os seus vínculos de amor e amizade, o
fluxo sensório, o calor do sol na pele, a delícia de um banho de mar, o olhar
apaixonado e tudo enfim que significa estar vivo entre os vivos?”. O novo livro
de Giannetti aborda esse e outros itens dentro da temática geral da busca pela
imortalidade.
— O tema central não é a morte, mas a
afirmação da vida, o desejo de ser para além de si.
Enquanto o futuro não chega, os sentimentos
digitalizados dos golpistas de janeiro de 2023 estarão à disposição de nós,
humanos, para que sejam punidos devidamente por seus pensamentos, palavras e
obras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário