sábado, 23 de janeiro de 2021

Opinião do dia - Luiz Werneck Vianna*

 

As tragédias contemporâneas têm no lugar dos heróis clássicos a multidão dos homens comuns, como os das praças da primavera árabe e das ruas americanas das passeatas intermináveis do black lives matter. Essa a razão de fundo para que a luta pela democracia tenha seu ponto forte de partida na luta contra a atual pandemia, a fim de liberar, por meio de amplíssimas alianças, o acesso às nossas ruas e praças.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio. A longa tragédia brasileira, Blog, 5/1/2021

Marco Aurélio Nogueira* - O presidente caricato

- O Estado de S. Paulo

Democratas precisam evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo

Surpreende que o mundo político, em sentido estrito – Congresso, parlamentares, partidos –, somente agora comece a cogitar de um possível impeachment presidencial por crimes de responsabilidade.

Quando o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ativo militante do moderantismo, veio a público declarar (15/1) que o afastamento de Bolsonaro do cargo de presidente da República “será debatido de forma inevitável no futuro”, ele deu o tom de uma inflexão que se poderá consolidar nos próximos meses. Aproveitou para chamar às falas o Congresso, que inexplicavelmente se mantém em recesso enquanto o País pega fogo.

Bolsonaro não havia sido, até agora, atingido por uma ameaça desse tipo. A primeira etapa de seu mandato foi um período de desgoverno e tragédia, em que ele pintou e bordou, agindo com uma mistura patética de tiranete, chefe de gangue e godfather tropical. O escárnio diante do vírus, do povo, da vacina e dos cientistas foi constante, mastigado com indiferença e como prova de “autenticidade” por uma população em grande parte anestesiada. Com a pandemia, sua personalidade desequilibrada e narcisista ganhou plena manifestação. Os meses foram se passando e os estragos, aumentando. Seu prontuário engordou.

O presidente fez política contra a política, empenhado em criar confusão para camuflar sua incompetência e atiçar seus seguidores. Em nenhum momento, porém, pôde proclamar-se vitorioso.

O padrão oposicionista seguiu roteiro conciliador, que travou os planos maléficos do presidente. Fez o rei ficar nu. Meio que em silêncio, com muito jogo de bastidores, possibilitou que houvesse alguma governação no Brasil, paralisando a Presidência da República.

Merval Pereira – Reflexo da inépcia


Ascânio Seleme - De costas para o Brasil

- O Globo

Ao que parece, mais uma vez o Congresso vai dar as costas aos brasileiros. Os números apurados pelo GLOBO e pela Folha de S. Paulo indicam que o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco devem ser eleitos presidentes da Câmara e do Senado. Os dois, como se sabe, são os candidatos apoiados por Jair Bolsonaro. Pacheco em duas entrevistas disse que até agora não viu crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente e que “erros do governo na pandemia são escusáveis”. Lira não precisa dizer nada, todo mundo sabe o que ele pensa e como ele age.

O que se desenha com a eleição destes dois senhores é que os evidentes crimes praticados por Bolsonaro, contabilizados já na casa das duas dezenas, serão ignorados pelo Congresso. E obviamente também não tramitará qualquer outra denúncia por novos crimes que certamente o presidente perpetrará. Até o momento, 61 pedidos de impeachment de Bolsonaro foram encaminhados ao Congresso por partidos políticos e entidades civis. O presidente deveria ser julgado por apoiar o golpe de 1964, apoiar motim da PM, tentar interferir na PF, apoiar manifestações antidemocráticas, se calar diante de declarações antidemocráticas de ministros, ameaçar o STF, ameaçar procuradores, atentar contra a vida na pandemia, entre outros crimes.

Como se vê, o presidente do Brasil é um criminoso contumaz. E a maioria dos 594 deputados e senadores que vão eleger os novos chefes das duas casas do Congresso tende a se alinhar àqueles que já disseram publicamente que os erros de Bolsonaro são desculpáveis ou que ele não cometeu crime. Não precisa ser muito esperto para entender o que a constatação explica. E a sua compreensão depõe ainda mais contra o Congresso brasileiro. Deputados e senadores estão trocando votos por cargos, vantagens e benesses do poder executivo, como sempre. Em alguns casos, compreende-se. Em outros, não.

Não surpreende, por exemplo, que mesmo alguns parlamentares do DEM de Rodrigo Maia, que apoia Baleia Rossi para dirigir a Câmara, votem em Arthur Lira. O Democratas é um partido de aglomeração. Reúnem-se nele políticos de centro, de centro-direita ou de direita. O partido não vota monoliticamente como orientação política, mas sempre apoia medidas de caráter liberal. Sucessor da Arena e do PDS, que dominaram o Congresso durante a ditadura, virou coadjuvante em todos os governos civis desde José Sarney. O DEM é conhecido pelo seu gosto de apoiar governos, não importa qual.

Míriam Leitão - Erro econômico na crise sanitária

- O Globo

O Ministério da Economia ficou ausente de questões decisivas para a economia no combate à pandemia. Na vacinação, os economistas poderiam ter induzido a estratégia de comprar mais vacinas e não menos, exatamente para não concentrar o risco. Em tempos de incerteza e de escassez, o certo a fazer é diversificar riscos e ampliar potenciais fornecedores. Em relação ao auxílio emergencial, era fundamental ter um plano para este momento em que as transferências vão secar.

Em conversa esta semana com o economista José Alexandre Scheinkman, ele me chamou a atenção para esse ponto:

— O Ministério da Economia deveria ter alertado o governo que precisava formar um portfólio diversificado. Nós economistas entendemos esse problema de risco e diversificação. O pessoal da saúde pode não pensar nessa estratégia de portfólio. O Canadá encomendou quatro vacinas para cada cidadão, de tipos diferentes. No programa americano também há várias vacinas encomendadas.

Esta semana o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou, numa entrevista na Globonews, como o governo errou nas negociações da Organização Pan-Americana de Saúde. Em vez de usar o fato de ser um país grande para aumentar sua capacidade de negociação, o Brasil se apequenou. Primeiro, disse que não entraria no consórcio, depois, que só compraria 10% da sua necessidade. Neste momento está havendo um choque na capacidade de oferta. Mas a equipe econômica se deixou convencer pela ideia de Bolsonaro, de que, por sermos grandes, somos um mercado desejado. Em momento de escassez de oferta e muita demanda, é o oposto.

Ricardo Noblat - Acendeu a luz vermelha para a reeleição de Bolsonaro

- Blog do Noblat / Veja

Se tiver impeachment ainda vai demorar

Uma notícia boa para o presidente Jair Bolsonaro: a Câmara dos Deputados não deveria abrir um processo de impeachment contra ele. É o que pensam 53% das 2.030 pessoas em todo o Brasil entrevistadas por telefone pelo Datafolha nos últimos dias 20 e 21. O percentual era de 50% no início de dezembro. Os que defendiam o impeachment caíram de 46% para 42%. Parabéns, presidente!

Quanto ao mais descoberto pelo Datafolha, só tem notícia ruim – com efeito, em linha com pesquisas divulgadas nesta semana pelos institutos Paraná, Ipespe e IDEIA. Subiu de 32% para 40% os que avaliam o desempenho de Bolsonaro como ruim ou péssimo. Os que avaliam como ótimo e bom diminuíram de 37% para 31%. É a maior queda desde o começo do seu governo há dois anos.

Metade dos brasileiros considera que ele não tem capacidade para governar e não merece confiança. Nunca confiam em sua palavra 41% (eram 37% em dezembro) dos entrevistados, enquanto 38% o fazem às vezes (eram 39%) e 19%, sempre (eram 21%). Também pudera. Bolsonaro, hoje, diz uma coisa e amanhã o seu oposto. Fala mal das vacinas, depois as compra e fala mal outra vez.

As pessoas que têm medo de pegar o novo coronavírus estão entre as que mais rejeitam o presidente. A rejeição a ele entre os que têm muito medo de ser infectados pelo vírus saltou de 41% em dezembro para 51%. A aprovação caiu de 27% para 20%. Entre quem tem um pouco de medo de infectar-se, a rejeição subiu de 30% para 37%. A parceria com o vírus fez mal a ele.

Hélio Schwartsman - Cuidado com a caça às bruxas

- Folha de S. Paulo

A vacinação será um processo longo, difícil e sujeito a falhas

Como era previsível, multiplicam-se os relatos de casos de pessoas que estariam furando a fila da vacina. Não há dúvida de que desrespeitar a ordem de prioridades constitui grave violação ética e, em algumas situações, se houver a participação de autoridades, pode caracterizar também irregularidade administrativa e até delito, mas é preciso cuidado para não transformar o justo sentimento de indignação numa caça às bruxas.

Uma parte considerável das "furadas" que vêm sendo descritas se deve mais à falta de detalhamento dos grupos prioritários do que a uma intenção deliberada de passar outros para trás.

"Profissionais de saúde que atuam na linha de frente" pode parecer uma descrição precisa, mas ainda deixa muita margem a dúvidas. O dermatologista que trabalha em consultório particular e passa visita uma vez por semana na UTI está ou não na linha de frente?

Demétrio Magnoli* - Raphaela ph

- Folha de S. Paulo

Na nossa fila de privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar

Raphaela dos Santos, 5, de Paraisópolis, esqueceu como escrever seu nome e os números. Ana Júlia, 5, quase vizinha, ainda escreve seu primeiro nome, mas não o segundo. A Prefeitura de São Paulo não definiu data para reabertura das escolas, mas garante que aplicará medidas de recuperação de conteúdos que “eventualmente foram perdidos” (Folha, 27/12). 2020 ficará na memória como o ano em que o Brasil tirou a máscara, evidenciando que, na nossa fila de privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar.

“Não venha comparar as nossas escolas com as da Europa!” Benin, Chade, Burkina Faso, Guiné Equatorial, República do Congo, Serra Leoa e Cabo Verde —anote esses nomes, professor. São alguns dos países africanos que, em outubro, já tinham retomado aulas presenciais. Sugiro uma atividade para o dia distante da volta à escola: colori-los no mapa. Título: onde sobrevive o direito à educação.

 “A vida primeiro! As crianças infectarão os professores e seus próprios familiares.” A ciência diz coisa diferente. Crianças não são grupo de risco e não participam significativamente da cadeia de transmissão. Mas, ao que parece, o consenso científico vale apenas quando não colide com os interesses corporativos. E, de mais a mais, sempre haverá algum “especialista” de rede social disponível para afirmar o que se quer ouvir.

Monica de Bolle* - A posse e seus símbolos

- Revista Época

Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos

Foram quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o início do dia.

Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.

João Gabriel de Lima - A Terra volta a ser redonda. Hora de o Brasil embarcar

- O Estado de S. Paulo

Foi semana de benditas obviedades. Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta

Stefani Germanotta, a Lady Gaga, cantou o hino dos Estados UnidosJennifer Lopez deu um twist latino à sua interpretação de God Bless America; e, no encerramento, a poeta Amanda Gorman, de 22 anos, declamou versos que resumem o sentimento da nova geração. Na posse do presidente Joe Biden, as três mulheres nos lembraram que os Estados Unidos são um país ítalo-americano, hispano-americano, afro-americano – sem contar outras etnias e misturas. Muito de sua força e riqueza se deve à bênção de ser uma nação de imigrantes.

Parece óbvio. É como dizer que a Terra é redonda.

No momento-chave de seu discurso, Biden disse: “Nós devemos tratar os outros com dignidade e respeito. Juntar forças, parar o tiroteio e baixar a temperatura. Sem unidade não há paz – só amargor e fúria. Não há progresso – só ultraje exasperante. Não há nação – só um estado de caos”.

Dignidade e respeito. Condições óbvias para o debate inteligente nas democracias. A Terra é redonda.

No mesmo dia da posse de Biden, Portugal assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Em Bruxelas, o primeiro-ministro António Costa traçou as linhas gerais dos próximos seis meses: foco no social, na economia digital e no combate às alterações no clima. “Temos um planeta para proteger, e não podemos perder mais tempo,” disse Costa em seu discurso.

A Terra é redonda, e temos que cuidar dela.

Adriana Fernandes - Jacaré econômico

- O Estado de S. Paulo

Placar parcial no Congresso: 100% de apoio ao auxílio emergencial, 0% para o Ministério da Economia

É uma roda de ciranda a coleção de compromissos assumidos na área econômica pelos candidatos à presidência da Câmara e do Senado. Quatro dos quatro principais candidatos (os senadores Rodrigo Pacheco e Simone Tebet e os deputados Baleia Rossi e Arthur Lira) deram declarações de apoio à nova rodada do auxílio emergencial, que o ministro Paulo Guedes resiste em aceitar. Resultado até agora: 100% de apoio para o auxílio contra 0% para o Ministério da Economia.

Guedes, por sua vez, quer uma nova CPMF para financiar a desoneração da folha e aposta na vitória de Lira, que, no ano passado, indicou essa possibilidade “desde que com alíquota baixa” para criar empregos.

Contrário ao novo imposto, Baleia Rossi, que é autor da PEC 45 de reforma tributária, sai a campo e marca posição depois que reportagem do Estadão mostrou que o plano de Guedes para a recriação do imposto não morreu. “Meu adversário é pura metamorfose ambulante. Ele já quis CPMF. Depois, disse que não é bem assim.”

Pisando em ovos e com as redes sociais repercutindo negativamente o risco da volta da CPMF, Lira desconversa, finge esquecer o apoio dado há poucos meses, liga para Guedes e cobra explicações do ministro. O Ministério da Economia diz que “não tem nada disso” e tenta abafar o assunto. A recomendação é ninguém falar nada agora para não atrapalhar a eleição. Mas o tema volta com Pacheco, que afirma que “pode se discutir, criar a CPMF e desonerar a folha, é até aceitável desde que haja desoneração na outra ponta”.

Os desafios do multilateralismo

Joe Biden reaviva expectativas de que os EUA liderem esforços de colaboração internacional

Por Laura Greenhalgh  - Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Os dias que antecederam a troca de comando na Casa Branca serão lembrados pelas manobras antidemocráticas de Donald Trump, inconformado com a derrota nas urnas e nos colégios eleitorais. Já o novo presidente, Joe Biden, no meio da confusão armada pelo presidente em fim de mandato, preferiu tuitar: “Mask up, folks”. Insistia no mantra para que os americanos ficassem de máscara, sem baixar a guarda para o vírus. Esse estilo meio zen e meio econômico nas palavras, numa transição de poder não só tumultuada, como sui generis, diz algo sobre o novo presidente dos Estados Unidos.

“Mask up” talvez não seja só uma mensagem para o público interno. Pode ser uma sinalização para fora, um apresentar-se para o jogo no mundo impactado pela covid-19. Biden torna-se o 46º presidente americano num cenário global repleto de incertezas: há um ano correu a notícia de um vírus ameaçador na China, que rapidamente se espalhou por todos os continentes, desafiando a ciência e a medicina, destruindo economias e sistemas de saúde, escancarando desigualdades e impondo, a toque de caixa, novas formas de vida para a população mundial. Para certos observadores, o século XXI pode ter começado, de fato, na atual pandemia. Assim corre o tempo histórico.

No entanto, o estilo contido de Biden acaba deixando perguntas no ar. Entre elas: até que ponto ele assume o enfrentamento da atual crise sanitária como um desafio global, e não americano? Até que ponto está consciente de que falar de pandemia não é só falar de saúde e recuperação econômica? Até que ponto deverá recompor a política externa americana, adotando uma agenda de prioridades para o planeta em estado de emergência? Até que ponto deve liderar a retomada do multilateralismo?

Respostas ainda se confundem com apostas. Para Joseph Stiglitz, Nobel de Economia e autor de “Povo, Poder e Lucros: Capitalismo Progressista para uma Era de Descontentamento” (Record), livro de 2019 que trata justamente da importância dos governos, Biden terá de assumir compromissos tão decisivos e demarcatórios quanto os do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945): “Ele deveria ir na direção do verdadeiro multilateralismo, no qual o excepcionalismo americano se subordina, genuinamente, aos interesses comuns, a valores compartilhados e ao respeito às instituições internacionais”.

Dois experientes diplomatas brasileiros foram ouvidos pelo Valor sobre as mesmas questões. Para o ex-ministro e ex-embaixador Rubens Ricupero, Biden, quando vice-presidente, sentiu de perto as tensões e os riscos trazidos pela epidemia por ebola. Corria o ano de 2014, e a Organização Mundial de Saúde (OMS), aturdida com a gravidade do vírus, precisou se valer da experiência de campo dos Médicos Sem Fronteiras para começar a entender o que se passava em regiões africanas.

Naquele momento, Biden acompanhou os esforços da Casa Branca para ativar, rapidamente, uma estrutura governamental de biossegurança que respondesse ao novo patógeno - aliás, estrutura herdada de George W. Bush, reforçada por Obama e, mais tarde, destruída por Trump. “Biden sabe que, se o ebola não se espalhou pelo mundo, isso se deve a Barack Obama”, afirma Ricupero. “Portanto, agora ele terá de ser ainda mais audacioso. Se há uma lição a tirar da atual pandemia, é a de que precisamos nos preparar para a próxima. Que virá.”

Marcus Pestana* - Vacina, estupidez e desenvolvimento

As redes sociais vieram para ficar. Todos nós, ou quase todos, somos usuários ou até mesmo escravos do Facebook, do Instagram, do Youtube, do WhatsApp, do Tik Tok e do Google. Nas redes sociais, é possível assistir belíssimos shows, interessantes debates, a fantástica entrevista de Muhammad Ali sobre racismo ou rememorar jogadas geniais de Pelé, Zico ou Ronaldinho Gaúcho. Por outro lado, é possível também ser vítima da mais radical estupidez e da mais profunda ignorância.

Confesso que não sou especialista nas tramas e nos segredos da internet. E que também não tenho paciência para responder, um a um, cada comentário provocado. Mas as tempestades de sandices, como a da última semana, sobre a posse de Joe Biden, o livro de Chico Buarque, “Essa Gente”, e a vacina do Butantã, me fazem publicar, vez ou outra, frases de pensadores de várias épocas, que traduzem meu espírito diante de afirmações assertivas de que Biden é comunista, que a vacina de Dória é ineficaz, só marketing e uma trama diabólica da China, e que Chico é terrorista e deveria estar preso, além de centenas de postagens impublicáveis.    

Cláudio de Oliveira* - Frente ampla na Câmara e no Senado

Os partidos democráticos e progressistas deveriam se unir todos aos candidatos da Frente Ampla às presidências da Câmara e do Senado, respectivamente o deputado Baleia Rossi e a senadora Simone Tebet, ambos do MDB.

Os candidatos governistas Arthur Lira, deputado do PP, e Rodrigo Pacheco, senador do DEM, certamente assumiram compromissos para receber o apoio do presidente Jair Bolsonaro e da máquina federal. E presumo que um deles seja não colocar em votação os muitos pedidos de impeachment.

Ainda que o senador Rodrigo Pacheco possa não endossar as tentativas de golpe aberto ou de minar por dentro as instituições democráticas, sua vitória fortalecerá o bolsonarismo e o seu projeto autoritário e retrógrado, cujas consequências dramáticas estamos vivendo com o negacionismo na pandemia do coronavírus, a interrupção do auxílio emergencial e a inação para estimular a economia.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O custo de ser pária – Opinião | O Estado de S. Paulo

A permanência de Jair Bolsonaro na Presidência inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as nações.

O constrangedor isolamento do Brasil entre as nações civilizadas, resultado de uma política externa amalucada e irresponsável, deveria ser motivo mais que suficiente para que o chanceler Ernesto Araújo fosse demitido sem mais delongas. A pressão para que isso ocorra, aliás, nunca esteve tão forte. 

Parece estar se constituindo um consenso, inclusive em alguns setores do próprio governo, que a manutenção do sr. Araújo à frente do Itamaraty representa enorme risco para a imagem do Brasil, já tão desgastada, e justamente no momento em que o País, mergulhado numa pandemia mortal e numa crise econômica desafiadora, mais precisa da cooperação internacional.

A questão é que a demissão do sr. Araújo não resolveria nada, pois o problema não é o chanceler, mas o chefe dele. É a permanência do sr. Jair Bolsonaro na Presidência que inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as nações, que sempre foi a marca da diplomacia do Brasil.

É claro que o sr. Araújo é o responsável direto pela formulação da estapafúrdia doutrina externa bolsonarista e deve ter seu nome marcado na história, em letras maiúsculas, como o chanceler que se empenhou em destruir o legado do Barão do Rio Branco. Deve ser lembrado para sempre como aquele que conduziu a diplomacia nacional sob inspiração de um obscuro ex-astrólogo que vive nos Estados Unidos, espécie de guru de Bolsonaro et caterva.

Música | Gal Costa e Silva - Só Louco

 

Poesia | Fernando Pessoa - Tenho tanto sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Fernando Gabeira - A realidade depois da festa

- O Estado de S. Paulo

Chegada simbólica da vacina é uma esperança num país onde se morre afogado no seco

Às vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.

Não creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…

Tudo indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com falta de ar.

A celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?

Parece-me que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a falta de alternativas do governo negacionista.

Dependemos hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.

China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?

Merval Pereira - O país do privilégio

- O Globo

Nada mais ignominioso do que as notícias que pipocam dando conta de que em diversos estados brasileiros está havendo fraude na vacinação contra a COVID-19. Pessoas que não fazem parte da primeira leva dos grupos de risco furam a fila para garantirem para si ou familiares o privilégio de serem vacinadas, numa pandemia que testa a nossa solidariedade como humanos e que depende da atitude de cada um para que o conjunto dos cidadãos possa sobreviver à crise sanitária.

No Brasil fragilizado pela desorganização de um governo incompetente, que deveria ser responsabilizado pelo retardamento do programa de imunização nacional, há alguns muitos mais iguais que os outros. O atraso na chegada das vacinas e dos insumos, devido a problemas causados por uma política externa nula, e uma ação descoordenada do ministério da Saúde entregue a um General que nem sabia o que era o SUS quando assumiu,  cada dia cobra o pedágio em mais de mil vidas, e é esse número alarmante de mais de 200 mil mortes que deveria fazer com que o governo fosse culpado pela negligência no trato da pandemia e os “espertos” de sempre fossem punidos vigorosamente.

O Ministério Público está investigando casos acontecidos em pelo menos sete estados, em que o privilégio foi concedido a filhos, amigos, parentes de autoridades locais, sem falar nos prefeitos que furam a fila afirmando que estão dando o exemplo. Com o número ínfimo de doses de vacina enviado para cada município, a valorização  do imunizante fez com que se criasse um criminoso mercado paralelo de prestígio, e logo veremos denúncias de pessoas que subornaram para serem vacinadas à frente das que estão na lista de prioridades.

Dora Kramer - A hora H

- Revista Veja

A situação de adversidade em todos os campos, com destaque para a saúde pública e o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias mãos

Junte-se o mal-estar do presidente da República na presença da vacina contra o vírus com a falta de auxílio de emergência aos pobres, acrescente-se a inépcia do poder público para atender à necessidade da população, adicione-se um robusto passivo de atos passíveis de enquadramento no rol dos crimes de responsabilidade e teremos a receita de um governo em apuros.

Se o dia D ocorrerá em outubro de 2022 ou se será antecipado por impedimento constitucional é uma questão em aberto. Certo, porém, é que a hora H chegou para Jair Bolsonaro como um momento de decisão definidor de seu destino. A situação de adversidade extrema em todos os campos, com destaque para a saúde pública e o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias mãos.

Sendo ele o engenheiro da obra, é também o responsável por decidir se investe na desconstrução da arapuca em que se enfiou ou se insiste na destruição de suas condições obje­ti­vas e subjetivas para governar. O presidente teve inúmeras oportunidades de se recompor, mas optou por queimar cartuchos de maneira inútil e, sobretudo, imprudente.

Uma ocasião em particular serviria para ele de exemplo de como uma atuação positiva em relação ao coletivo rende dividendos naquilo que o interessa, a boa vontade do eleitorado: a proposição do auxílio emergencial de 600 reais quando o Congresso contrapôs 500 reais à sugestão original de 200 reais.

Os beneficiários se esqueceram da iniciativa parlamentar, puseram a ajuda na conta do presidente, que viu sua avaliação positiva crescer substancialmente num eleitorado que não o havia levado ao Planalto. O resultado teria sido adverso se Bolsonaro tivesse cedido ao hábito de brigar com a realidade e decidido confrontar deputados e senadores.

Murillo de Aragão -A construção de nossa democracia

- Revista Veja

O consensualismo que nos guia é o airbag de nossos entreveros

O momento e as circunstâncias podem levar muitos a pensar que a nossa democracia talvez não resista aos permanentes desafios que a testam. Desde a redemocratização, em 1986, foram situações-limite em sequência: a Constituinte e seus embates; a eleição e o impeachment de Fernando Collor; o Plano Real e as reformas da era FHC; a eleição de Lula; o mensalão; o impeachment de Dilma Rousseff; a Operação Lava-Jato; a vitória de Jair Bolsonaro; e, por último, a pandemia de Covid-19. Apesar de não faltarem crises nem desafios, a democracia resiste como opção e alternativa iluminista e civilizatória para a construção do país.

Essas situações-limite revelam disfunções estruturais óbvias. Nossos desejos de cidadania não cabem nas contas públicas. Nossos direitos constitucionais não são exercidos na plenitude. Mas a construção da democracia mostra a vocação de nossas instituições para buscar o equilíbrio nos embates políticos. Embora dilua o impacto das mudanças, o consensualismo é o airbag de nossos entreveros institucionais.

O Brasil foi forjado no colonialismo, no patrimonialismo, no escravagismo, no paternalismo, no voluntarismo, no personalismo e, mais recentemente, no burocratismo e no corporativismo. Todos esses “ismos” somam-se a uma estrutura patriarcal, autoritária e intervencionista. Sem uma vocação democrática, poderíamos ser algo politicamente parecido com a Rússia ou a China, mas com a desorganização típica dos latinos.

Luiz Carlos Azedo - Esquenta a disputa no Congresso

- Correio Braziliense

Tanto na Câmara quanto no Senado, Bolsonaro aposta alto e joga pesado, para garantir a sua governabilidade e, também, para avançar na sua agenda de reeleição

O PSL deixou, ontem, o bloco de apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a presidente da Câmara, apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual ocupante do cargo, para adensar a candidatura do líder do Centrão, Arthur Lira (AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. A mudança se deu porque quatro parlamentares trocaram de lado, formando uma nova maioria na bancada, com 19 dos 36 deputados.

Foi a mais bem-sucedida manobra de Lira para fortalecer sua candidatura estimulando as dissidências internas nos partidos que apoiam Baleia, que, até agora, vinha sendo pautada por declarações públicas. O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), que apoia Rossi, mantém uma queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, que deixou a legenda logo após tomar posse. O grupo dissidente do PSL chegou a apresentar uma lista com 32 assinaturas pedindo a saída do bloco de Baleia, mas dela constavam as assinaturas de 17 deputados bolsonaristas suspensos pelo partido em razão de divergências com Bivar e que não poderiam ser contabilizados.

Ricardo Noblat - Bolsonaro tem o ministro da Saúde que merece e escolheu

- Blog do Noblat | Veja

Pazuello, sequer, domina bem a arte da desfaçatez

Sabe quantos testes de Covid-19 foram aplicados no Brasil desde o início da pandemia, em março fará um ano? E a quantidade de medicamentos para qualquer tipo de doença que tem estocado?

Não sabe e não saberá tão cedo. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) quis saber e valeu-se para isso da Lei de Acesso a tais informações que o governo Bolsonaro costuma desrespeitar.

O Ministério da Saúde respondeu ao pedido dizendo que as informações “se encontram em status reservado” porque poderiam “pôr em risco a vida, a segurança e a saúde da população”.

Outro argumento usado pelo ministério para dizer não a Valente: as informações requeridas por ele oferecem “elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país”.

Esperar o quê do ministério sob o comando de um general especialista em logística que já marcou e remarcou tantas vezes o que chamou de Dia D da vacinação em massa contra o vírus?

E que quando a vacinação começou havia poucas doses disponíveis que mal dariam para atender 4% da fatia dos brasileiros do grupo considerado prioritário?

O general Eduardo Pazuello sequer domina como Bolsonaro a arte da desfaçatez. Retirou, ontem, do ar o aplicativo que recomendava remédios sem eficácia contra a Covid, como a cloroquina.

Alegou que o sistema havia sido ativado “indevidamente” por um hacker e que a plataforma fora lançada como um projeto-piloto e não funcionava oficialmente, “apenas como um simulador”.

Mas como era assim, se foi ele, durante evento no último dia 13 em Manaus, quem lançou a plataforma em reunião com médicos e outras autoridades da área de saúde?

Claudia Safatle - Um país à deriva

- Valor Econômico

Como se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado

Há fortes indicações de que a recuperação em V foi curta, durou dois trimestres (terceiro e quarto trimestres de 2020) e perdeu fôlego. Um voo de galinha já bem conhecido dos brasileiros, animado pelo vigoroso programa de auxílio emergencial que beneficiou mais de 70 milhões de pessoas e que se encerrou em dezembro.

Segundo os prognósticos da economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, o cenário desenhado para este novo ano é ruim para o primeiro semestre, quando a atividade ainda estará em contração, mas melhora no segundo, de maneira que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) encerraria o exercício em 3,5% - percentual insuficiente para repor a recessão estimada de 4,5% no ano passado. Como o carregamento estatístico responde por cerca de 2,5%, o efetivo crescimento este ano, segundo as previsões do Ibre, deverá ser de apenas 1%.

Tudo vai depender, porém, do sucesso (ou fracasso?) da vacinação contra a covid-19. Quanto mais incerta e demorada for, maior será a perda de PIB (Produto Interno Bruto). Os dados acima foram calculados com base em um processo de vacinação que envolveria grande parte da população no primeiro semestre. A partir do meio do ano, a situação seria de normalidade. As informações de atraso na obtenção do insumo necessário para a preparação das vacinas coloca mais dúvidas sobre o que poderá acontecer com o nível de atividade.

José de Souza Martins* - O desafio social da vacina

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

No Brasil, o caso será muito mais complicado do que em outros lugares: o país está sem liderança política

Teremos que sobreviver até que a aplicação das vacinas atinja o patamar social de proteção eficaz da sociedade inteira. A direção da Anvisa e os cientistas que expuseram o resultado de suas análises dos protocolos apresentados pelo Butantan e pela Fiocruz, para obter a autorização de uso emergencial das vacinas, alertaram enfaticamente que o início da vacinação impõe uma mudança no comportamento da sociedade para assegurar a eficácia da imunização.

A autorização de uso das duas vacinas - a do Butantan e a da Fiocruz - foi uma grande vitória da ciência brasileira, uma demonstração de competência e de responsabilidade social dos nossos cientistas. Foi, também, uma grande vitória científica e moral contra um senso comum pobre e impregnado de crendices e voluntarismos, à margem dos grandes valores da civilização, da ciência e da liberdade.

O confinamento se prolongará pelo mesmo tanto que já dura. Os que o têm violado terão que se conformar com a reversão de conduta, com a mudança de hábitos. A covid-19 encerra o período da história social dominado pelos valores da sociedade de consumo, da minimização da sobriedade da prudência. Todos terão que mudar para sobreviver e garantir a sobrevivência dos demais.

É mudar ou morrer e matar. A pandemia não ataca apenas o corpo das pessoas. Ataca também e, talvez sobretudo, a sociabilidade que as faz seres sociais.

Mudanças sociais têm sido comuns em situações de crises econômicas, políticas, de guerras e revoluções. Os costumes são corroídos pelas adversidades, pelas carências quase súbitas, pela cessação da legitimidade de valores sociais, pela privação de sentido para as condutas e orientações do costume.

Fernando Abrucio* - Não verás país nenhum com Bolsonaro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos

O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.

Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.

A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.