“As tragédias contemporâneas têm no lugar dos heróis clássicos a multidão dos homens comuns, como os das praças da primavera árabe e das ruas americanas das passeatas intermináveis do black lives matter. Essa a razão de fundo para que a luta pela democracia tenha seu ponto forte de partida na luta contra a atual pandemia, a fim de liberar, por meio de amplíssimas alianças, o acesso às nossas ruas e praças.”
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
sábado, 23 de janeiro de 2021
Opinião do dia - Luiz Werneck Vianna*
Marco Aurélio Nogueira* - O presidente caricato
Democratas
precisam evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo
Surpreende
que o mundo político, em sentido estrito – Congresso, parlamentares, partidos
–, somente agora comece a cogitar de um possível impeachment presidencial por
crimes de responsabilidade.
Quando
o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ativo militante do moderantismo, veio a
público declarar (15/1) que o afastamento de Bolsonaro do cargo de presidente
da República “será debatido de forma inevitável no futuro”, ele deu o tom de
uma inflexão que se poderá consolidar nos próximos meses. Aproveitou para chamar
às falas o Congresso, que inexplicavelmente se mantém em recesso enquanto o
País pega fogo.
Bolsonaro
não havia sido, até agora, atingido por uma ameaça desse tipo. A primeira etapa
de seu mandato foi um período de desgoverno e tragédia, em que ele pintou e
bordou, agindo com uma mistura patética de tiranete, chefe de gangue e
godfather tropical. O escárnio diante do vírus, do povo, da vacina e dos
cientistas foi constante, mastigado com indiferença e como prova de
“autenticidade” por uma população em grande parte anestesiada. Com a pandemia,
sua personalidade desequilibrada e narcisista ganhou plena manifestação. Os
meses foram se passando e os estragos, aumentando. Seu prontuário engordou.
O
presidente fez política contra a política, empenhado em criar confusão para
camuflar sua incompetência e atiçar seus seguidores. Em nenhum momento, porém,
pôde proclamar-se vitorioso.
O padrão oposicionista seguiu roteiro conciliador, que travou os planos maléficos do presidente. Fez o rei ficar nu. Meio que em silêncio, com muito jogo de bastidores, possibilitou que houvesse alguma governação no Brasil, paralisando a Presidência da República.
Ascânio Seleme - De costas para o Brasil
Ao que parece, mais uma vez o
Congresso vai dar as costas aos brasileiros. Os números apurados pelo GLOBO e
pela Folha de S. Paulo indicam que o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo
Pacheco devem ser eleitos presidentes da Câmara e do Senado. Os dois, como se
sabe, são os candidatos apoiados por Jair Bolsonaro. Pacheco em duas
entrevistas disse que até agora não viu crimes de responsabilidade cometidos
pelo presidente e que “erros do governo na pandemia são escusáveis”. Lira não
precisa dizer nada, todo mundo sabe o que ele pensa e como ele age.
O que se
desenha com
a eleição destes dois senhores é que os evidentes crimes praticados por
Bolsonaro, contabilizados já na casa das duas dezenas, serão ignorados pelo
Congresso. E obviamente também não tramitará qualquer outra denúncia por novos
crimes que certamente o presidente perpetrará. Até o momento, 61 pedidos de
impeachment de Bolsonaro foram encaminhados ao Congresso por partidos políticos
e entidades civis. O presidente deveria ser julgado por apoiar o golpe de 1964,
apoiar motim da PM, tentar interferir na PF, apoiar manifestações
antidemocráticas, se calar diante de declarações antidemocráticas de ministros,
ameaçar o STF, ameaçar procuradores, atentar contra a vida na pandemia, entre
outros crimes.
Como se
vê,
o presidente do Brasil é um criminoso contumaz. E a maioria dos 594 deputados e
senadores que vão eleger os novos chefes das duas casas do Congresso tende a se
alinhar àqueles que já disseram publicamente que os erros de Bolsonaro são
desculpáveis ou que ele não cometeu crime. Não precisa ser muito esperto para
entender o que a constatação explica. E a sua compreensão depõe ainda mais
contra o Congresso brasileiro. Deputados e senadores estão trocando votos por
cargos, vantagens e benesses do poder executivo, como sempre. Em alguns casos,
compreende-se. Em outros, não.
Não surpreende, por exemplo, que mesmo alguns parlamentares do DEM de Rodrigo Maia, que apoia Baleia Rossi para dirigir a Câmara, votem em Arthur Lira. O Democratas é um partido de aglomeração. Reúnem-se nele políticos de centro, de centro-direita ou de direita. O partido não vota monoliticamente como orientação política, mas sempre apoia medidas de caráter liberal. Sucessor da Arena e do PDS, que dominaram o Congresso durante a ditadura, virou coadjuvante em todos os governos civis desde José Sarney. O DEM é conhecido pelo seu gosto de apoiar governos, não importa qual.
Míriam Leitão - Erro econômico na crise sanitária
O
Ministério da Economia ficou ausente de questões decisivas para a economia no
combate à pandemia. Na vacinação, os economistas poderiam ter induzido a
estratégia de comprar mais vacinas e não menos, exatamente para não concentrar
o risco. Em tempos de incerteza e de escassez, o certo a fazer é diversificar
riscos e ampliar potenciais fornecedores. Em relação ao auxílio emergencial,
era fundamental ter um plano para este momento em que as transferências vão secar.
Em
conversa esta semana com o economista José Alexandre Scheinkman, ele me chamou
a atenção para esse ponto:
—
O Ministério da Economia deveria ter alertado o governo que precisava formar um
portfólio diversificado. Nós economistas entendemos esse problema de risco e
diversificação. O pessoal da saúde pode não pensar nessa estratégia de
portfólio. O Canadá encomendou quatro vacinas para cada cidadão, de tipos
diferentes. No programa americano também há várias vacinas encomendadas.
Ricardo Noblat - Acendeu a luz vermelha para a reeleição de Bolsonaro
Se
tiver impeachment ainda vai demorar
Uma
notícia boa para o presidente Jair Bolsonaro: a Câmara dos Deputados não
deveria abrir um processo de impeachment contra ele. É o que pensam 53% das
2.030 pessoas em todo o Brasil entrevistadas por telefone pelo Datafolha nos
últimos dias 20 e 21. O percentual era de 50% no início de dezembro. Os que
defendiam o impeachment caíram de 46% para 42%. Parabéns, presidente!
Quanto
ao mais descoberto pelo Datafolha, só tem notícia ruim – com efeito, em linha
com pesquisas divulgadas nesta semana pelos institutos Paraná, Ipespe e IDEIA.
Subiu de 32% para 40% os que avaliam o desempenho de Bolsonaro como ruim ou péssimo.
Os que avaliam como ótimo e bom diminuíram de 37% para 31%. É a maior queda
desde o começo do seu governo há dois anos.
Metade
dos brasileiros considera que ele não tem capacidade para governar e não merece
confiança. Nunca confiam em sua palavra 41% (eram 37% em dezembro) dos
entrevistados, enquanto 38% o fazem às vezes (eram 39%) e 19%, sempre (eram
21%). Também pudera. Bolsonaro, hoje, diz uma coisa e amanhã o seu oposto. Fala
mal das vacinas, depois as compra e fala mal outra vez.
As pessoas que têm medo de pegar o novo coronavírus estão entre as que mais rejeitam o presidente. A rejeição a ele entre os que têm muito medo de ser infectados pelo vírus saltou de 41% em dezembro para 51%. A aprovação caiu de 27% para 20%. Entre quem tem um pouco de medo de infectar-se, a rejeição subiu de 30% para 37%. A parceria com o vírus fez mal a ele.
Hélio Schwartsman - Cuidado com a caça às bruxas
A
vacinação será um processo longo, difícil e sujeito a falhas
Como
era previsível, multiplicam-se os relatos de casos de pessoas que
estariam furando
a fila da vacina. Não há dúvida de que desrespeitar a ordem de
prioridades constitui grave violação ética e, em algumas situações, se houver a
participação de autoridades, pode caracterizar também irregularidade
administrativa e até delito, mas é preciso cuidado para não transformar o justo
sentimento de indignação numa caça às bruxas.
Demétrio Magnoli* - Raphaela ph
Na
nossa fila de privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar
Raphaela
dos Santos, 5, de Paraisópolis,
esqueceu como escrever seu nome e os números. Ana Júlia, 5, quase vizinha,
ainda escreve seu primeiro nome, mas não o segundo. A Prefeitura de São Paulo
não definiu data para reabertura das escolas, mas garante que aplicará medidas
de recuperação de conteúdos que “eventualmente foram perdidos” (Folha, 27/12). 2020 ficará na memória
como o ano em que o Brasil tirou a máscara, evidenciando que, na nossa fila de
privilégios e direitos, as crianças ocupam o último lugar.
“Não
venha comparar as nossas escolas com as da Europa!” Benin, Chade, Burkina Faso,
Guiné Equatorial, República do Congo, Serra Leoa e Cabo Verde —anote esses
nomes, professor. São alguns dos países africanos que, em outubro, já
tinham retomado aulas presenciais. Sugiro uma atividade para o dia distante
da volta à escola: colori-los no mapa. Título: onde sobrevive o direito à
educação.
“A vida primeiro! As crianças infectarão os professores e seus próprios familiares.” A ciência diz coisa diferente. Crianças não são grupo de risco e não participam significativamente da cadeia de transmissão. Mas, ao que parece, o consenso científico vale apenas quando não colide com os interesses corporativos. E, de mais a mais, sempre haverá algum “especialista” de rede social disponível para afirmar o que se quer ouvir.
Monica de Bolle* - A posse e seus símbolos
Joe
Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi
radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos
Foram
quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo
real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que
não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma
realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a
insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias
para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente
dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som
de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e
uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o
início do dia.
Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.
João Gabriel de Lima - A Terra volta a ser redonda. Hora de o Brasil embarcar
Foi
semana de benditas obviedades. Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do
planeta
Stefani
Germanotta,
a Lady Gaga, cantou o hino dos Estados Unidos; Jennifer Lopez deu um twist
latino à sua interpretação de God Bless America; e, no encerramento, a
poeta Amanda Gorman,
de 22 anos, declamou versos que resumem o sentimento da nova geração. Na posse
do presidente Joe Biden,
as três mulheres nos lembraram que os Estados Unidos são um país
ítalo-americano, hispano-americano, afro-americano – sem contar outras etnias e
misturas. Muito de sua força e riqueza se deve à bênção de ser uma nação de
imigrantes.
Parece
óbvio. É como dizer que a Terra é redonda.
No momento-chave de seu discurso, Biden disse: “Nós devemos tratar os outros com dignidade e respeito. Juntar forças, parar o tiroteio e baixar a temperatura. Sem unidade não há paz – só amargor e fúria. Não há progresso – só ultraje exasperante. Não há nação – só um estado de caos”.
Dignidade
e respeito. Condições óbvias para o debate inteligente nas democracias. A Terra
é redonda.
No
mesmo dia da posse de Biden, Portugal assumiu a presidência rotativa do
Conselho da União Europeia. Em Bruxelas, o primeiro-ministro António Costa
traçou as linhas gerais dos próximos seis meses: foco no social, na economia
digital e no combate às alterações no clima. “Temos um planeta para proteger, e
não podemos perder mais tempo,” disse Costa em seu discurso.
A Terra é redonda, e temos que cuidar dela.
Adriana Fernandes - Jacaré econômico
Placar
parcial no Congresso: 100% de apoio ao auxílio emergencial, 0% para o
Ministério da Economia
É
uma roda de ciranda a coleção de compromissos assumidos na área econômica pelos
candidatos à presidência da Câmara e
do Senado.
Quatro dos quatro principais candidatos (os senadores Rodrigo Pacheco e Simone Tebet e os deputados Baleia Rossi e Arthur Lira) deram declarações de
apoio à nova rodada do auxílio emergencial, que o ministro Paulo Guedes resiste em aceitar.
Resultado até agora: 100% de apoio para o auxílio contra 0% para o Ministério da
Economia.
Guedes,
por sua vez, quer uma nova CPMF para
financiar a desoneração da folha e aposta na vitória de Lira, que, no ano
passado, indicou essa possibilidade “desde que com alíquota baixa” para criar
empregos.
Contrário
ao novo imposto, Baleia Rossi, que é autor da PEC 45 de reforma tributária,
sai a campo e marca posição depois que reportagem do Estadão mostrou que
o plano de Guedes para a recriação do imposto não morreu. “Meu adversário é
pura metamorfose ambulante. Ele já quis CPMF. Depois, disse que não é bem
assim.”
Pisando em ovos e com as redes sociais repercutindo negativamente o risco da volta da CPMF, Lira desconversa, finge esquecer o apoio dado há poucos meses, liga para Guedes e cobra explicações do ministro. O Ministério da Economia diz que “não tem nada disso” e tenta abafar o assunto. A recomendação é ninguém falar nada agora para não atrapalhar a eleição. Mas o tema volta com Pacheco, que afirma que “pode se discutir, criar a CPMF e desonerar a folha, é até aceitável desde que haja desoneração na outra ponta”.
Os desafios do multilateralismo
Por
Laura Greenhalgh - Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Os
dias que antecederam a troca de comando na Casa Branca serão lembrados pelas
manobras antidemocráticas de Donald Trump, inconformado com a derrota nas urnas
e nos colégios eleitorais. Já o novo presidente, Joe Biden, no meio da confusão
armada pelo presidente em fim de mandato, preferiu tuitar: “Mask up, folks”.
Insistia no mantra para que os americanos ficassem de máscara, sem baixar a
guarda para o vírus. Esse estilo meio zen e meio econômico nas palavras, numa
transição de poder não só tumultuada, como sui generis, diz algo sobre o novo
presidente dos Estados Unidos.
“Mask
up” talvez não seja só uma mensagem para o público interno. Pode ser uma
sinalização para fora, um apresentar-se para o jogo no mundo impactado pela
covid-19. Biden torna-se o 46º presidente americano num cenário global repleto
de incertezas: há um ano correu a notícia de um vírus ameaçador na China, que
rapidamente se espalhou por todos os continentes, desafiando a ciência e a
medicina, destruindo economias e sistemas de saúde, escancarando desigualdades
e impondo, a toque de caixa, novas formas de vida para a população mundial.
Para certos observadores, o século XXI pode ter começado, de fato, na atual
pandemia. Assim corre o tempo histórico.
No
entanto, o estilo contido de Biden acaba deixando perguntas no ar. Entre elas:
até que ponto ele assume o enfrentamento da atual crise sanitária como um
desafio global, e não americano? Até que ponto está consciente de que falar de
pandemia não é só falar de saúde e recuperação econômica? Até que ponto deverá
recompor a política externa americana, adotando uma agenda de prioridades para
o planeta em estado de emergência? Até que ponto deve liderar a retomada do
multilateralismo?
Respostas
ainda se confundem com apostas. Para Joseph Stiglitz, Nobel de Economia e autor
de “Povo, Poder e Lucros: Capitalismo Progressista para uma Era de
Descontentamento” (Record), livro de 2019 que trata justamente da importância
dos governos, Biden terá de assumir compromissos tão decisivos e demarcatórios
quanto os do final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945): “Ele deveria ir na
direção do verdadeiro multilateralismo, no qual o excepcionalismo americano se
subordina, genuinamente, aos interesses comuns, a valores compartilhados e ao
respeito às instituições internacionais”.
Dois
experientes diplomatas brasileiros foram ouvidos pelo Valor sobre as mesmas
questões. Para o ex-ministro e ex-embaixador Rubens Ricupero, Biden, quando
vice-presidente, sentiu de perto as tensões e os riscos trazidos pela epidemia
por ebola. Corria o ano de 2014, e a Organização Mundial de Saúde (OMS),
aturdida com a gravidade do vírus, precisou se valer da experiência de campo
dos Médicos Sem Fronteiras para começar a entender o que se passava em regiões
africanas.
Naquele momento, Biden acompanhou os esforços da Casa Branca para ativar, rapidamente, uma estrutura governamental de biossegurança que respondesse ao novo patógeno - aliás, estrutura herdada de George W. Bush, reforçada por Obama e, mais tarde, destruída por Trump. “Biden sabe que, se o ebola não se espalhou pelo mundo, isso se deve a Barack Obama”, afirma Ricupero. “Portanto, agora ele terá de ser ainda mais audacioso. Se há uma lição a tirar da atual pandemia, é a de que precisamos nos preparar para a próxima. Que virá.”
Marcus Pestana* - Vacina, estupidez e desenvolvimento
Confesso que não sou especialista nas tramas e nos segredos da internet. E que também não tenho paciência para responder, um a um, cada comentário provocado. Mas as tempestades de sandices, como a da última semana, sobre a posse de Joe Biden, o livro de Chico Buarque, “Essa Gente”, e a vacina do Butantã, me fazem publicar, vez ou outra, frases de pensadores de várias épocas, que traduzem meu espírito diante de afirmações assertivas de que Biden é comunista, que a vacina de Dória é ineficaz, só marketing e uma trama diabólica da China, e que Chico é terrorista e deveria estar preso, além de centenas de postagens impublicáveis.
Cláudio de Oliveira* - Frente ampla na Câmara e no Senado
Os
candidatos governistas Arthur Lira, deputado do PP, e Rodrigo Pacheco, senador
do DEM, certamente assumiram compromissos para receber o apoio do presidente
Jair Bolsonaro e da máquina federal. E presumo que um deles seja não colocar em
votação os muitos pedidos de impeachment.
Ainda que o senador Rodrigo Pacheco possa não endossar as tentativas de golpe aberto ou de minar por dentro as instituições democráticas, sua vitória fortalecerá o bolsonarismo e o seu projeto autoritário e retrógrado, cujas consequências dramáticas estamos vivendo com o negacionismo na pandemia do coronavírus, a interrupção do auxílio emergencial e a inação para estimular a economia.
O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais
A
permanência de Jair Bolsonaro na Presidência inviabiliza a recuperação da
imagem do País e a retomada dos contatos produtivos e pacíficos com todas as
nações.
O constrangedor isolamento do Brasil entre as nações civilizadas, resultado de uma política externa amalucada e irresponsável, deveria ser motivo mais que suficiente para que o chanceler Ernesto Araújo fosse demitido sem mais delongas. A pressão para que isso ocorra, aliás, nunca esteve tão forte.
Parece
estar se constituindo um consenso, inclusive em alguns setores do próprio
governo, que a manutenção do sr. Araújo à frente do Itamaraty representa enorme
risco para a imagem do Brasil, já tão desgastada, e justamente no momento em
que o País, mergulhado numa pandemia mortal e numa crise econômica desafiadora,
mais precisa da cooperação internacional.
A
questão é que a demissão do sr. Araújo não resolveria nada, pois o problema não
é o chanceler, mas o chefe dele. É a permanência do sr. Jair Bolsonaro na
Presidência que inviabiliza a recuperação da imagem do País e a retomada dos
contatos produtivos e pacíficos com todas as nações, que sempre foi a marca da
diplomacia do Brasil.
É claro que o sr. Araújo é o responsável direto pela formulação da estapafúrdia doutrina externa bolsonarista e deve ter seu nome marcado na história, em letras maiúsculas, como o chanceler que se empenhou em destruir o legado do Barão do Rio Branco. Deve ser lembrado para sempre como aquele que conduziu a diplomacia nacional sob inspiração de um obscuro ex-astrólogo que vive nos Estados Unidos, espécie de guru de Bolsonaro et caterva.
Poesia | Fernando Pessoa - Tenho tanto sentimento
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
sexta-feira, 22 de janeiro de 2021
Fernando Gabeira - A realidade depois da festa
Chegada
simbólica da vacina é uma esperança num país onde se morre afogado no seco
Às
vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no
Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.
Não
creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do
mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das
vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado
e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…
Tudo
indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos
de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade
de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com
falta de ar.
A
celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade
mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser
ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas
pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas
que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que
significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?
Parece-me
que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A
ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a
falta de alternativas do governo negacionista.
Dependemos
hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem
manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude
depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.
China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?
Merval Pereira - O país do privilégio
Dora Kramer - A hora H
A
situação de adversidade em todos os campos, com destaque para a saúde pública e
o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias mãos
Junte-se
o mal-estar do presidente da República na presença da vacina contra o vírus com
a falta de auxílio de emergência aos pobres, acrescente-se a inépcia do poder
público para atender à necessidade da população, adicione-se um robusto passivo
de atos passíveis de enquadramento no rol dos crimes de responsabilidade e
teremos a receita de um governo em apuros.
Se
o dia D ocorrerá em outubro de 2022 ou se será antecipado por impedimento
constitucional é uma questão em aberto. Certo, porém, é que a hora H chegou
para Jair Bolsonaro como um momento de decisão definidor de seu destino. A
situação de adversidade extrema em todos os campos, com destaque para a saúde
pública e o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias
mãos.
Sendo
ele o engenheiro da obra, é também o responsável por decidir se investe na
desconstrução da arapuca em que se enfiou ou se insiste na destruição de suas
condições objetivas e subjetivas para governar. O presidente teve
inúmeras oportunidades de se recompor, mas optou por queimar cartuchos de
maneira inútil e, sobretudo, imprudente.
Uma
ocasião em particular serviria para ele de exemplo de como uma atuação positiva
em relação ao coletivo rende dividendos naquilo que o interessa, a boa vontade
do eleitorado: a proposição do auxílio emergencial de 600 reais quando o
Congresso contrapôs 500 reais à sugestão original de 200 reais.
Os beneficiários se esqueceram da iniciativa parlamentar, puseram a ajuda na conta do presidente, que viu sua avaliação positiva crescer substancialmente num eleitorado que não o havia levado ao Planalto. O resultado teria sido adverso se Bolsonaro tivesse cedido ao hábito de brigar com a realidade e decidido confrontar deputados e senadores.
Murillo de Aragão -A construção de nossa democracia
O
consensualismo que nos guia é o airbag de nossos entreveros
O momento e as circunstâncias podem levar muitos a pensar que a nossa democracia talvez não resista aos permanentes desafios que a testam. Desde a redemocratização, em 1986, foram situações-limite em sequência: a Constituinte e seus embates; a eleição e o impeachment de Fernando Collor; o Plano Real e as reformas da era FHC; a eleição de Lula; o mensalão; o impeachment de Dilma Rousseff; a Operação Lava-Jato; a vitória de Jair Bolsonaro; e, por último, a pandemia de Covid-19. Apesar de não faltarem crises nem desafios, a democracia resiste como opção e alternativa iluminista e civilizatória para a construção do país.
Essas
situações-limite revelam disfunções estruturais óbvias. Nossos desejos de
cidadania não cabem nas contas públicas. Nossos direitos constitucionais não
são exercidos na plenitude. Mas a construção da democracia mostra a vocação de
nossas instituições para buscar o equilíbrio nos embates políticos. Embora
dilua o impacto das mudanças, o consensualismo é o airbag de nossos entreveros
institucionais.
O Brasil foi forjado no colonialismo, no patrimonialismo, no escravagismo, no paternalismo, no voluntarismo, no personalismo e, mais recentemente, no burocratismo e no corporativismo. Todos esses “ismos” somam-se a uma estrutura patriarcal, autoritária e intervencionista. Sem uma vocação democrática, poderíamos ser algo politicamente parecido com a Rússia ou a China, mas com a desorganização típica dos latinos.
Luiz Carlos Azedo - Esquenta a disputa no Congresso
Tanto na
Câmara quanto no Senado, Bolsonaro aposta alto e joga pesado, para garantir a
sua governabilidade e, também, para avançar na sua agenda de reeleição
O
PSL deixou, ontem, o bloco de apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP),
candidato a presidente da Câmara, apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual
ocupante do cargo, para adensar a candidatura do líder do Centrão, Arthur Lira
(AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. A mudança se deu porque quatro
parlamentares trocaram de lado, formando uma nova maioria na bancada, com 19
dos 36 deputados.
Foi a mais bem-sucedida manobra de Lira para fortalecer sua candidatura estimulando as dissidências internas nos partidos que apoiam Baleia, que, até agora, vinha sendo pautada por declarações públicas. O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), que apoia Rossi, mantém uma queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, que deixou a legenda logo após tomar posse. O grupo dissidente do PSL chegou a apresentar uma lista com 32 assinaturas pedindo a saída do bloco de Baleia, mas dela constavam as assinaturas de 17 deputados bolsonaristas suspensos pelo partido em razão de divergências com Bivar e que não poderiam ser contabilizados.
Ricardo Noblat - Bolsonaro tem o ministro da Saúde que merece e escolheu
Pazuello,
sequer, domina bem a arte da desfaçatez
Sabe quantos testes de Covid-19 foram aplicados no Brasil desde o início da pandemia, em março fará um ano? E a quantidade de medicamentos para qualquer tipo de doença que tem estocado?
Não
sabe e não saberá tão cedo. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) quis saber e
valeu-se para isso da Lei de Acesso a tais informações que o governo Bolsonaro
costuma desrespeitar.
O
Ministério da Saúde respondeu ao pedido dizendo que as informações “se
encontram em status reservado” porque poderiam “pôr em risco a vida, a
segurança e a saúde da população”.
Outro
argumento usado pelo ministério para dizer não a Valente: as informações
requeridas por ele oferecem “elevado risco à estabilidade financeira, econômica
ou monetária do país”.
Esperar
o quê do ministério sob o comando de um general especialista em logística que
já marcou e remarcou tantas vezes o que chamou de Dia D da vacinação em massa
contra o vírus?
E
que quando a vacinação começou havia poucas doses disponíveis que mal dariam
para atender 4% da fatia dos brasileiros do grupo considerado prioritário?
O
general Eduardo Pazuello sequer domina como Bolsonaro a arte da desfaçatez.
Retirou, ontem, do ar o aplicativo que recomendava remédios sem eficácia contra
a Covid, como a cloroquina.
Alegou
que o sistema havia sido ativado “indevidamente” por um hacker e que a
plataforma fora lançada como um projeto-piloto e não funcionava oficialmente,
“apenas como um simulador”.
Mas como era assim, se foi ele, durante evento no último dia 13 em Manaus, quem lançou a plataforma em reunião com médicos e outras autoridades da área de saúde?
Claudia Safatle - Um país à deriva
Como
se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado
Há
fortes indicações de que a recuperação em V foi curta, durou dois trimestres
(terceiro e quarto trimestres de 2020) e perdeu fôlego. Um voo de galinha já
bem conhecido dos brasileiros, animado pelo vigoroso programa de auxílio
emergencial que beneficiou mais de 70 milhões de pessoas e que se encerrou em
dezembro.
Segundo
os prognósticos da economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do
Ibre/FGV, o cenário desenhado para este novo ano é ruim para o primeiro
semestre, quando a atividade ainda estará em contração, mas melhora no segundo,
de maneira que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) encerraria o
exercício em 3,5% - percentual insuficiente para repor a recessão estimada de
4,5% no ano passado. Como o carregamento estatístico responde por cerca de
2,5%, o efetivo crescimento este ano, segundo as previsões do Ibre, deverá ser
de apenas 1%.
Tudo vai depender, porém, do sucesso (ou fracasso?) da vacinação contra a covid-19. Quanto mais incerta e demorada for, maior será a perda de PIB (Produto Interno Bruto). Os dados acima foram calculados com base em um processo de vacinação que envolveria grande parte da população no primeiro semestre. A partir do meio do ano, a situação seria de normalidade. As informações de atraso na obtenção do insumo necessário para a preparação das vacinas coloca mais dúvidas sobre o que poderá acontecer com o nível de atividade.
José de Souza Martins* - O desafio social da vacina
Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Teremos
que sobreviver até que a aplicação das vacinas atinja o patamar social de
proteção eficaz da sociedade inteira. A direção da Anvisa e os cientistas que
expuseram o resultado de suas análises dos protocolos apresentados pelo
Butantan e pela Fiocruz, para obter a autorização de uso emergencial das
vacinas, alertaram enfaticamente que o início da vacinação impõe uma mudança no
comportamento da sociedade para assegurar a eficácia da imunização.
A
autorização de uso das duas vacinas - a do Butantan e a da Fiocruz - foi uma
grande vitória da ciência brasileira, uma demonstração de competência e de
responsabilidade social dos nossos cientistas. Foi, também, uma grande vitória
científica e moral contra um senso comum pobre e impregnado de crendices e
voluntarismos, à margem dos grandes valores da civilização, da ciência e da
liberdade.
O
confinamento se prolongará pelo mesmo tanto que já dura. Os que o têm violado
terão que se conformar com a reversão de conduta, com a mudança de hábitos. A
covid-19 encerra o período da história social dominado pelos valores da
sociedade de consumo, da minimização da sobriedade da prudência. Todos terão
que mudar para sobreviver e garantir a sobrevivência dos demais.
É mudar ou morrer e matar. A pandemia não ataca apenas o corpo das pessoas. Ataca também e, talvez sobretudo, a sociabilidade que as faz seres sociais.
Mudanças sociais têm sido comuns em situações de crises econômicas, políticas, de guerras e revoluções. Os costumes são corroídos pelas adversidades, pelas carências quase súbitas, pela cessação da legitimidade de valores sociais, pela privação de sentido para as condutas e orientações do costume.
Fernando Abrucio* - Não verás país nenhum com Bolsonaro
Seguindo
essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia
de pelo menos dois anos
O
Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do
governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta
constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos
últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas
coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas,
trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E
aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para
combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele
modificar seu estilo de governar.
Esmiuçando
melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em
que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica,
aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos
cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse
processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não
só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação
geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui
a dois anos, no fim de seu mandato.
A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.