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O Globo
Nada
mais ignominioso do que as notícias que pipocam dando conta de que em diversos
estados brasileiros está havendo fraude na vacinação contra a COVID-19. Pessoas
que não fazem parte da primeira leva dos grupos de risco furam a fila para
garantirem para si ou familiares o privilégio de serem vacinadas, numa pandemia
que testa a nossa solidariedade como humanos e que depende da atitude de cada
um para que o conjunto dos cidadãos possa sobreviver à crise sanitária.
No Brasil fragilizado pela desorganização de um governo incompetente, que
deveria ser responsabilizado pelo retardamento do programa de imunização
nacional, há alguns muitos mais iguais que os outros. O atraso na chegada das
vacinas e dos insumos, devido a problemas causados por uma política externa
nula, e uma ação descoordenada do ministério da Saúde entregue a um General que
nem sabia o que era o SUS quando assumiu, cada dia cobra o pedágio em
mais de mil vidas, e é esse número alarmante de mais de 200 mil mortes que
deveria fazer com que o governo fosse culpado pela negligência no trato da
pandemia e os “espertos” de sempre fossem punidos vigorosamente.
O Ministério Público está investigando casos acontecidos em pelo menos sete
estados, em que o privilégio foi concedido a filhos, amigos, parentes de
autoridades locais, sem falar nos prefeitos que furam a fila afirmando que
estão dando o exemplo. Com o número ínfimo de doses de vacina enviado para
cada município, a valorização do imunizante fez com que se criasse um
criminoso mercado paralelo de prestígio, e logo veremos denúncias de pessoas
que subornaram para serem vacinadas à frente das que estão na lista de
prioridades.
Uma lista, aliás, que terá que ser refeita, pois não há vacinas para todo o
grupo, e alguns municípios estão distribuindo literalmente meia dúzia de doses
para os postos de vacinação. Centro da crise humanitária mais grave dessa
pandemia, Manaus teve que suspender a vacinação para reorganizar as
prioridades. As doses de Coronavac que chegaram ao estado nesta semana são
suficientes para vacinar somente 34% dos profissionais de saúde que atuam no
estado, que sofre há dias com a falta de oxigênio e de insumos para vacinação.
Mas as filhas do dono de uma das maiores universidades privadas de Manaus, no
Amazonas, já estão protegidas pela primeira dose, pois não apenas furaram a
fila, como exibiram seus troféus nas redes sociais. Médicas, foram contratadas
pela Secretaria de Saúde na véspera da vacinação começar.
Não foi nem preciso investigar, elas, como várias outras pessoas em diversos
estados, foram reveladas pelo próprio narcisismo, pois publicaram suas fotos
nos “Insta” da vida sem nem mesmo notar que estavam se autodenunciando por um
crime que deveria ser duramente castigado, assim como os responsáveis pela
liberação de tal privilégio.
A perda da noção de pertencimento a uma comunidade, que deveria vir sempre
antes da escolha individual, é um fenômeno da pós-modernidade, segundo o
sociólogo Zygmunt Bauman, e no Brasil ela é exacerbada pela síndrome do “você
sabe com quem está falando”, sobre o que escreve com maestria outro sociólogo,
o brasileiro Roberto DaMatta, que se espanta até hoje como os sinais de
trânsito não são respeitados nas ruas do país.
DaMatta escreve ensaios sobre nossas autoridades e celebridades que promovem
“um espetáculo deprimente de racismo, machismo, ignorância, arrogância e
injustiça por se considerarem superiores aos demais e, portanto, dispensados de
obedecer às leis e às normas da boa convivência social”. O livro, ampliado e
reeditado, continua contemporâneo, prova de nossa falência como sociedade.
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