quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Merval Pereira - Política apequenada

O Globo

A obsessiva relutância do presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Davi Alcolumbre, contra a nomeação do ex-ministro de Bolsonaro André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF), mesmo quando revestida de ares de “grande política”, não passa de uma ação isolada de um político que, mesmo presidindo a comissão mais importante da Casa, voltou ao baixo clero de onde proveio e tenta ganhar alguma relevância no cenário nacional.

Diz-se que Alcolumbre se espelha no caso do então presidente americano Barack Obama, que indicou à Suprema Corte o presidente do Tribunal de Recursos de Washington, Merrick Garland, para a vaga do conservador Antonin Scalia, e sua decisão foi barrada pela bancada dos republicanos, que se recusou a sabatiná-lo. Faltavam 11 meses para a eleição em que Trump foi vencedor, e a ação deu certo.

Malu Gaspar - Garantismo em causa própria

O Globo

Em Brasília, alguns termos adquirem significado ímpar. Um deles é urgência. O outro é garantismo. O dicionário diz que uma coisa é urgente quando não pode ser retardada, é imprescindível, indispensável.

Garantismo é o nome que o Direito dá à defesa dos instrumentos legais que protegem os cidadãos de eventuais abusos do Estado. O primeiro “teste do Aurélio” ocorreu quando a Câmara dos Deputados aprovou uma nova Lei de Improbidade Administrativa, desfigurando a que estava em vigor.

Na sessão que já ficou na História, o texto que vinha sendo discutido havia meses com a sociedade foi substituído por outro e votado em oito minutos pelo plenário, sem qualquer discussão extra. A versão final foi aprovada no Senado há duas semanas e tramitou num ritmo igualmente veloz.

nova lei diz que, para punir um gestor público por um malfeito, seria necessário comprovar o dolo, a intenção de cometer uma irregularidade. Dependendo do nível hierárquico da autoridade envolvida — digamos, um presidente que posterga deliberadamente a compra de vacinas —, os novos critérios podem tornar essa “intenção” bem difícil de provar.

Míriam Leitão - O Brasil está pior do que o mundo

O Globo

O mundo inteiro está crescendo este ano e o Brasil também, mas menos do que o mundo. A recuperação continuará no ano que vem e o Brasil crescerá menos até do que o Japão. Todos os países enfrentam pressão inflacionária, mas os nossos índices estão em patamar muito mais elevado. Pelo relatório do FMI, estamos em situação pior do que a de outros países. Os erros que o governo cometeu estão cobrando a sua conta.

Pelos números do World Economic Outlook, o mundo cresce 5,9%, este ano, os países emergentes, 6,4%, e a América Latina, 6,3%. O Brasil, por essa previsão, vai terminar o ano crescendo 5,2%. No ano que vem, esse descompasso fica mais patente. O mundo crescerá 4,9%, os países emergentes, 5,1%, a América Latina, 3%, e o Brasil, apenas 1,5%.

Legendas avaliam se juntar em federações para fazer frente ao novo União Brasil

Partidos podem usar nova regra para atuar de forma conjunta por quatro anos, inclusive nos processos de escolha e registro de candidatos

Naira Trindade e Julia Lindner / O Globo

BRASÍLIA — Duas semanas após o Congresso derrubar o veto presidencial e manter a possibilidade de os partidos se organizarem em federações, algumas das maiores legendas do país iniciam negociações: PP, PL e Republicanos abriram conversas nesse sentido, assim como o MDB com o Avante e o Solidariedade. Os movimentos ocorrem logo após a criação do União Brasil, resultado da fusão entre DEM e PSL, que deverá ser a maior agremiação da Câmara assim que for oficializada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o que deve ocorrer no início de 2022. Também há negociações envolvendo Cidadania, Rede e PV, e, na esquerda, do PCdoB com o PSB.

Na semana passada, o ministro-chefe da Casa Civil e presidente licenciado do PP, Ciro Nogueira, trabalhou em duas frentes. Ele conversou com o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, e enviou mensagem ao presidente do Republicanos, Marcos Pereira, sugerindo que as três legendas se unam numa federação, com o objetivo de eleger uma bancada expressiva no Congresso nas eleições de 2022. A ideia é assinar uma “união estável” entre os três partidos que já compõem a base do governo e normalmente votam juntos em boa parte dos temas, como, por exemplo, em pautas econômicas.

O eventual nascimento dessa tríade é uma tentativa de reequilibrar as forças no Congresso e, com isso, fazer frente ao recém-formado União Brasil, que só depende da chancela do TSE para existir, de fato. Uma vez oficializada, a nova legenda deverá contar com 81 deputados federais. Somados, PP, PL e Republicanos teriam 116 deputados federais (42 do PP, 43 do PL e 31 do Republicanos), mais 12 senadores (7 do PP, 4 do PL e um do Republicanos), além de aumentar o tempo de propaganda na TV. Essa última alteração pode abrir caminho para o presidente Jair Bolsonaro ingressar no PP, com o qual tem negociado, para disputar a reeleição em 2022.

Luiz Carlos Azedo - Escorregão na pauta ética

Correio Braziliense

Reduzir o poder dos procuradores e contingenciar a autonomia do Ministério Público é um sonho de consumo dos políticos enrolados na Justiça.

Autor da Proposta de Emenda à Constituição 005-a, de 2021, que trata da composição do Conselho Nacional do Ministério Público, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) atravessou a rua para escorregar numa casca de banana. O pior é que pode arrastar na queda o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar da zona de conforto em que se encontra nas pesquisas de opinião. Se tem uma coisa que ainda pode atrapalhar a volta do PT ao poder, na garupa de Lula, é a pauta ética, um cavalo encilhado para levar ao segundo turno um candidato de centro, uma vez que essa bandeira saiu das mãos do presidente Jair Bolsonaro e está ao léu.

O CNMP é o órgão responsável por julgar procuradores e promotores. Nos últimos anos, por causa da Operação Lava-Jato, foi cenário de embates entre os procuradores da força-tarefa de Curitiba e os “garantistas” do mundo jurídico, uma ampla frente de advogados, juristas, magistrados e até procuradores preocupados com os dribles a mais dos chamados “tenentes de toga”, na expressão do cientista político Luiz Werneck Vianna. Chefe da força-tarefa de Curitiba e líder lavajatista, ao lado do então juiz federal Sergio Moro, Deltan Dallagnol chegou a ser punido com pena de censura por ter feito um post dizendo, antes das eleições para a Presidência do Senado, em 2019, que se Renan Calheiros vencesse a disputa, dificilmente o Brasil veria a aprovação de uma reforma contra a corrupção.

Maria Hermínia Tavares - Para além do Bolsa Família

Folha de S. Paulo

Debate sobre o que substituirá o auxílio emergencial não pode se limitar ao destino do Bolsa Família

Impiedosa lente de aumento, a pandemia escancarou, agravada, a tragédia social do país. Segundo o Centro de Políticas Sociais da FGV (Fundação Getúlio Vargas), a atual renda média dos brasileiros caiu 9,4% a contar do final de 2019 —quando era já significativamente menor do que em 2014. Claro que nem todos perderam por igual: o tombo na metade mais pobre da população bateu em 21,5%, o triplo do que no décimo mais rico. Com isso, disparou o desnível de renda medido pelo índice de Gini --que varia de 0 (igualdade absoluta) a 1 (total desigualdade).

Estatísticas são uma forma fria de tratar do desastre humano revelado na feiúra das nossas cidades e na degradação de suas áreas centrais onde circula e vive —em número crescente— o povo da base da escada. O horror embrutece a todos: os que ele engolfa e os que dele podem se proteger ou até se beneficiar. Sem falar que a catástrofe torna irremediavelmente frágeis os alicerces sociais da democracia.

Bruno Boghossian - Um ministro pendurado

Folha de S. Paulo

Tribunal tem cadeira vazia porque presidente criou aliança defeituosa e pratica vandalismo institucional

Pendurada há 92 dias, a indicação de André Mendonça ao STF é um produto acabado da anomalia política que Jair Bolsonaro instalou no país. O tribunal tem uma cadeira vazia porque o presidente escolheu governar para falanges ideológicas, contratou a proteção de uma coalizão de aluguel e recorreu ao vandalismo institucional para exercer o poder.

O nome de Mendonça ficou travado porque só interessa a um dos lados da aliança disfuncional que mantém Bolsonaro no cargo. O presidente nunca escondeu que a indicação do ministro era o pagamento de uma dívida com líderes evangélicos.

O problema de Bolsonaro é que ele precisa de Silas Malafaia, que endossa manobras golpistas da porta do Planalto para fora, mas também depende de Ciro Nogueira, que protege o governo com base no que é dito a portas fechadas. O centrão conhece o tamanho de seu poder e tenta forçar a troca do nome escolhido.

Ruy Castro - Vem aí o Relatório da CPI

Folha de S. Paulo

Pazuello e Queiroga provocarão vômito; talvez os crimes de Bolsonaro exijam um volume à parte

O mundo existe para resultar num livro, disse o poeta Mallarmé. Resumido ao que se passou entre as nossas fronteiras nos últimos 20 meses, ele resultará no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid, cujos trabalhos estão se encerrando. Se seus autores concentrarem nele uma fração do que se apurou a partir dos depoimentos, investigações, testemunhos, mensagens e gravações, teremos um dos documentos mais importantes da história do país —não fosse a pandemia sob Jair Bolsonaro um episódio a fazer companhia ao genocídio da população indígena, ainda em curso, e aos 300 anos de escravidão.

Vinicius Torres Freire - O mensageiro da morte ataca de novo

Folha de S. Paulo

Bolsonaro faz nova campanha contra a vacina; taxa de vacinação em vários estados é baixa

No Mato Grosso do Sul, mais de 81% da população com 18 anos de idade foi totalmente vacinada. Em São Paulo, 78,5%. Há estados em que não chegam à metade disso, como Roraima e Amapá (menos de 38%) ou em que se vacinou menos da metade de seus habitantes (Pará, Tocantins, Piauí).

Ainda é difícil entender tamanhas disparidades e diferenças quase tão grandes na eficiência da aplicação das doses de vacinas recebidas. Mesmo em estados eficientes, como em São Paulo, 4,1 milhões de pessoas estão com a segunda dose atrasada. No estado, 72,4% das pessoas com 12 anos ou mais já completaram sua vacinação. Se as atrasadas tivessem tomado a segunda injeção, esse percentual subiria para cerca de 83% (podem tomar no sábado, dia especial de imunização no estado).

O número de mortes mais e mais se concentra em quem não tomou a injeção. Jair Bolsonaro, o amante da morte, parece se sentir traído ao ver que tanta gente preferiu a vacina. Mas ainda tenta seduzir vulneráveis e matar quantos puder, em um “sprint” final da sua corrida para o inferno.

William Waack - Falta um sonho

O Estado de S. Paulo

O problema da terceira via não é a quantidade de eleitores, mas o que dizer a eles

Não se sabe se a questão está suficientemente clara para os postulantes ao posto de candidato da terceira via, mas o problema é muito mais de conteúdo do que de espaço eleitoral. As pesquisas indicam claramente a existência de um grande “buraco” entre os blocos consolidados a favor, respectivamente, de Bolsonaro e de Lula. Contudo, esses números enganam.

Na conta simples o “centro” abarca no mínimo um terço do eleitorado. Bastaria então ampliar esse “meio entre os extremos” para tirar Bolsonaro do segundo turno e formar uma “união nacional” para derrotar o hoje favorito Lula. Que o “centro” esteja fortemente dividido entre vários postulantes é normal neste momento da corrida eleitoral. A popularidade ou rejeição de cada um deles parece oscilar em função do “recall” de eleições recentes ou do fato de alguns serem relativamente desconhecidos.

José Serra* - Nos trilhos do crescimento

O Estado de S. Paulo

Marco Legal das Ferrovias será um divisor de águas para a nossa infraestrutura

Após três anos e meio de tramitação, o Senado Federal aprovou por unanimidade o Marco Legal das Ferrovias. Projeto de minha autoria (PL 261/2018), o texto regulamenta o dispositivo constitucional que prevê a exploração de ferrovias por autorização da União. A matéria ainda vai à Câmara dos Deputados, mas, diante do elevado consenso construído no Senado, deverá ser aprovada ainda neste ano.

O PL resultou de uma preocupação com o baixo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) dos anos anteriores à sua apresentação (2018). Em 2015, a soma de todas as nossas riquezas havia recuado 3,5%, com nova queda (-3,3%) em 2016. No ano seguinte, um avanço de apenas 1,3%. O contexto não deixava dúvidas: passava da hora de apresentarmos uma alternativa aos gargalos logísticos do País.

Ainda no recesso de janeiro de 2018, nos debruçamos numa agenda fundada na revisão periódica de gastos e limite da dívida como âncora fiscal, além de medidas para aumentar a produtividade da economia. Nesse contexto, apresentei projetos para melhorar a regulação de setores estratégicos para atrair investimentos em petróleo, gás, saneamento básico e ferrovias.

Adriana Fernandes - Fome de emendas

O Estado de S. Paulo

Fome por mais emendas parlamentares retarda solução para novo programa social

A fome de deputados e senadores por emendas parlamentares contrasta com a fome real dos brasileiros. Cerca de 20 milhões de pessoas passam fome no Brasil, mas Brasília vive o Dia da Marmota repetindo o que aconteceu nessa mesma época no ano passado.

Durante o processo de retomada da economia depois do abalo da pandemia da covid-19, governo e aliados no Congresso decidiram lançar, no segundo semestre de 2020, as bases de um novo programa social com a marca Bolsonaro, o famigerado Renda Brasil.

Em coro, os governistas cantaram a necessidade de desenhar um novo programa robusto para enfrentar o aumento da miséria que chegou junto com a pandemia.

Nada aconteceu a não ser uma briga por emendas parlamentares. O ano de 2020 terminou junto com o auxílio emergencial. A pandemia se agravou, e o benefício foi prorrogado em escala menor a partir de abril desse ano, com cortes mensais dos beneficiários sem transparência do Ministério da Cidadania, como denuncia a Rede Brasileira de Renda Básica.

Maria Cristina Fernandes - Vingança é um prato que dá indigestão

Valor Econômico

Mais do que uma decorrência do arranjo vigente, o que está em curso no controle do MP é um novo pacto institucional do qual o próximo presidente pode vir a ser a principal vítima

Duas das iniciativas mais vistosas do Supremo e do Congresso desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o inquérito das “fake news” e a CPI da Covid, se deram, em grande parte, no exercício de funções inerentes ao Ministério Público. Talvez por isso a desidratação do MP hoje em curso no Congresso apareceu como uma adaptação da espécie ao seu habitat. Mais do que uma decorrência do arranjo vigente, porém, o que está em curso é um novo pacto institucional do qual o próximo presidente a ser eleito pode vir a ser a principal vítima.

Basta ver a força adquirida pelo STF e pelo Congresso no relatório final do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA). Ganham vagas na composição de um Conselho Nacional do Ministério Público que passa a ter o completo controle sobre os atos dos integrantes da corporação. Se a inexistência de controle franqueou a politização da corporação, aquele que agora lhe é proposto tampouco lhe permite cumprir suas funções constitucionais.

A politização do MP foi, até muito recentemente, um processo que teve a anuência das duas instituições que agora se arvoram a controlá-lo. O Supremo anuiu ao validar, por exemplo, o impedimento da nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Casa Civil. Foi decorrência da quebra de sigilo telefônico da ex-presidente Dilma Rousseff pedida por um procurador da República e decidida por um juiz federal. E o Congresso também deu anuência aos desmandos da Lava-Jato ao cassar o mandato daquela presidente.

Cristiano Romero - 2014-2020: a mais longa crise

Valor Econômico

País sofre consequências da polarização política

Nunca a economia brasileira teve tanta dificuldade para se recuperar de uma crise. Há longos sete anos não sabemos o que é crescer, somos uma espécie de "país caranguejo": só andamos para trás. Apesar da gravidade do momento, nunca a sociedade esteve tão dividida e, politicamente, dominada pelos pólos do espectro político, contrariando a velha tradição nacional de se caminhar pelo centro, onde, em tese, está representada a maioria dos brasileiros.

Até a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), asseverávamos que extremistas jamais chegariam à Presidência da República. Atribuíamos a um certo conservadorismo - ou a uma cordialidade “inata” - dos brasileiros a garantia de rejeição à direita e à esquerda radicais. Lembrávamo-nos de que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disputou quatro três eleições antes de chegar lá com imagem e discurso despojados de “radicalismo”.

Ainda há quem acredite na tese de que a inacreditável ascensão de Bolsonaro ao poder máximo da República resultou da facada que o candidato sofreu há menos de um mês do pleito de 2018. Ao apostar nisso, embarcamos num tipo de negacionismo ainda mais tolo que o explorado pelo presidente, que nega a verdade indubitável de um fato (a gravidade da covid-19) para fazer uso político disso (jogar a população contra governadores e prefeitos).

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

É hora de voltar à sala de aula

O Estado de S. Paulo

Tanto alunos como professores, principalmente estes, devem superar resistências desarrazoadas e voltar às escolas na data marcada. É o melhor para a sociedade.

Por determinação do governo de São Paulo, os alunos das escolas públicas e privadas em todo o Estado terão de voltar às aulas presenciais, obrigatoriamente, a partir da próxima segunda-feira. Não era sem tempo. Muitos especialistas em saúde pública e educação vêm defendendo a reabertura das escolas antes de outros estabelecimentos, seja porque são ambientes onde é plenamente possível cumprir à risca as medidas preconizadas pelas autoridades sanitárias, como distanciamento social, aferição de temperatura e higienização local e pessoal, seja porque a função social das escolas ganhou importância ainda maior em meio à tragédia que aprofundou a perversa desigualdade entre os brasileiros.

A bem da verdade, a esmagadora maioria dos alunos da rede particular de ensino já frequenta as aulas presenciais há algum tempo. Na rede pública, no entanto, cerca de 30% dos alunos ainda não voltaram à sala de aula desde fevereiro, quando o retorno foi autorizado. As explicações para a ausência são muito particulares, mas, em geral, estão baseadas no medo de pais e responsáveis em expor as crianças e adolescentes ao coronavírus e na necessidade de muitos desses jovens em permanecer assistindo às aulas online, seja por comodidade, seja pela necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar perdida no curso da pandemia.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - A Joaquim Cardozo

Com teus sapatos de borracha
seguramente
é que os seres pisam
no fundo das águas.

Encontraste algum dia
sobre a terra
o fundo do mar,
o tempo marinho e calmo?

Tuas refeições de peixe;
teus nomes
femininos: Mariana; teu verso
medido pelas ondas;

a cidade que não consegues
esquecer
aflorada no mar: Recife,
arrecifes, marés, maresias;

e marinha ainda a arquitetura
que calculaste:
tantos sinais da marítima nostalgia
que te fez lento e longo

Música | Casuarina e Joyce Moreno - Opinião (Zé Kéti)

 

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Vera Magalhães - Depois do feriadão, só aborrecimento

O Globo

Jair Bolsonaro curtiu a vida adoidado no feriado. Esteve em Aparecida, no Vale do Paraíba, já no último dia da intensa programação, mas seu espírito estava mais para Dia das Crianças que para louvar a Padroeira.

Hospedado no Forte dos Andradas, no Guarujá, litoral de São Paulo, andou de motoca pelas outras cidades litorâneas, lamentou não ter podido curtir a partida entre Santos e Grêmio pelo Campeonato Brasileiro — só porque, vejam só que absurdo, não quis se vacinar contra a Covid-19 — e ainda reclamou quando cobrado a respeito das 600 mil mortes pelo novo coronavírus no país que por acaso governa. “Não vim aqui para me aborrecer”, disse Jair num de seus animados rolés do feriadão.

Um vídeo que viralizou também no feriado das crianças, feito por um grupo de ativistas e replicado à exaustão, mostra um Jair com faixa presidencial e num gabinete-brinquedoteca. Arminhas de brinquedo, heróis que atacam o Congresso e, claro, uma motoquinha compõem a cena enquanto ele se irrita com a primeira-dama, Michelle, que insiste em chamá-lo enquanto ele “trabalha”. O vídeo termina com uma mensagem dura: “Lugar de criança não é na Presidência; o Brasil não é brinquedo”.

A pouca disposição do presidente ao trabalho pesado, à coordenação da equipe e a uma agenda estrita de deliberações vai ganhando espaço justamente no terreno em que o bolsonarismo pratica a narrativa política: as redes sociais e os aplicativos de mensagens.

Bernardo Mello Franco - O teatro do astronauta

O Globo

Em 2006, o governo Lula gastou US$ 10 milhões para que um tenente-coronel da Aeronáutica pegasse carona na nave russa Soyuz. O passeio foi mais lucrativo para o astronauta do que para o país. De volta à Terra, ele abandonou a carreira militar e passou a faturar com a venda de chaveiros, canecas e bonequinhos.

A fama instantânea abriria novos negócios. Marcos Pontes virou palestrante, “master coach” e garoto-propaganda de um tal “travesseiro da Nasa”. Apesar da sigla, o produto não tinha nada a ver com a agência espacial americana. Em letras miúdas, informava ser um “Nobre e Autêntico Suporte Anatômico”.

Aposentado aos 43 anos, o astronauta se candidatou a deputado pelo Partido Socialista Brasileiro. Não foi eleito. Depois girou à direita e tentou emplacar como vice de Jair Bolsonaro. Fracassou de novo. Como prêmio de consolação, virou ministro da Ciência e Tecnologia.

Rosângela Bittar - Com otimismo

O Estado de S. Paulo

Dificuldades e desgraças costumam ocorrer às vésperas de grandes mudanças

O fim dos trabalhos da CPI da Covid demonstra a vitalidade do poder Legislativo e coincide, acidentalmente, com a despedida desta colunista dos leitores do Estadão, o que faço agora. Os dois registros são apenas coincidência. Comecemos pelo importante resultado das investigações dos senadores. Estão apontando, com clareza, a culpa original pela proporção do desastre brasileiro no enfrentamento da pandemia: uma combinação de ignorância e perversidade do presidente Jair Bolsonaro.

Tal comportamento teria custado mais do que as 600 mil vidas perdidas até agora não fosse a reação firme de duas instituições. Primeiro, e desde sempre, o Supremo Tribunal Federal, que com suas decisões impôs limites ao desvario do presidente da República. Segundo, a entrada em cena da CPI do Senado, que utilizou os seus instrumentos especiais para localizar, medir e denunciar o responsável.

A ignorância, mais que tudo – e nesse tudo há, além da perversidade, o voluntarismo e o reacionarismo –, foi o fator determinante nas ações e omissões do presidente. Em Bolsonaro a CPI identificou a autoria de dezenas de crimes a serem denunciados e processados. A culpa política, no entanto, persistirá, impune, até que falem as urnas.

O presidente jamais recorreu à inteligência universitária ou à elite científica, como fizeram todos os países devastados pela pandemia. Bolsonaro contribuiu para aumentar a letalidade da doença. A pretexto de privilegiar a economia, boicotou medidas de proteção, ironizando quem se preservou e quem morreu. Sem planos para se contrapor aos que tentou anular, apenas buscou aplausos dos que aceitam suas doses diárias de grosserias. A crueldade, nele, assumiu diferentes formas. A ignorância, no entanto, se sobrepôs a tudo. Transcendeu.

Fernando Exman - O trunfo de Bolsonaro para a campanha

Valor Econômico

Governo finaliza regulamentação da polícia penal

Adversários do presidente Jair Bolsonaro consideram a segurança pública um trunfo para a sua campanha à reeleição, em 2022. Até agora, acreditam, a principal bandeira. E a depender do desempenho do governo até lá, talvez a única.

A lista de dificuldades enfrentadas pelo impopular mandatário é ampla, mas vale perpassá-la.

A economia passa pelo pior momento desde que Bolsonaro assumiu: a miséria é crescente, a inflação não para de acelerar, uma melhora das condições do mercado de trabalho parece algo distante e há pressões em várias frentes pela flexibilização das regras que tentam manter sob controle os gastos públicos. As perspectivas para o ano que vem não são das melhores, e as incertezas políticas decorrentes do jogo eleitoral ainda podem piorar o cenário.

Não há resultados positivos na área da educação. Em relação à saúde, é praticamente impossível o governo melhorar a sua imagem: os brasileiros não esquecerão os parentes e amigos que morreram devido à covid-19. Na área da segurança pública, contudo, a situação é distinta.

O tema é objeto de atenção no PT. As administrações da sigla erraram ao considerar a segurança pública um problema exclusivo dos Estados. O assunto é, também, tratado como crucial por aqueles que tentam personificar uma candidatura de terceira via competitiva.

Hélio Schwartsman - Direita rouba da esquerda o termo libertário

Folha de S. Paulo

A esquerda vem se afastando da ideia de liberdade porque esta é incompatível com a de igualdade

Assim como o bolsonarismo sequestrou as cores da bandeira do Brasil, a direita está sequestrando a ideia de liberdade, notadamente o adjetivo “libertário”. O confisco começou nos EUA, depois que Ron Paul e seus seguidores ganharam projeção e ocuparam uma posição de certa visibilidade no Partido Republicano nos primeiros anos deste século. Mais recentemente, tivemos o sucesso eleitoral dos libertários argentinos, liderados por Javier Milei. Mas, se Paul ainda se distingue um pouco das alas mais extremistas da direita americana, é difícil dizer o mesmo de Milei e seu grupo, que são contra o aborto, as “axilas peludas” das feministas, atraem a simpatia de neonazistas e ainda se congraçam com os Bolsonaros.

Bruno Boghossian - Excesso de bagagens

Folha de S. Paulo

Petista ajusta localização na arena eleitoral de temas como regulação da mídia e Lava Jato

No início de seu segundo mandato, Lula correu para esvaziar uma controvérsia criada no governo. O Ministério da Saúde havia enfurecido grupos conservadores ao anunciar uma consulta pública sobre a descriminalização do aborto. O presidente avisou que não proporia mudanças na legislação e disse que o debate era responsabilidade do Congresso.

A flexibilização da lei sobre a interrupção da gravidez era uma bandeira aprovada em discussões internas do PT, mas Lula fez uma manobra para evitar que o tema contaminasse a pauta política. Nas últimas semanas, o petista deu início a um movimento semelhante para reduzir o peso de outras bagagens que podem incomodá-lo na campanha de 2022.

Mariliz Pereira Jorge - O Bolsonaro mais perigoso

Folha de S. Paulo

Eduardo é quem tem costurado relações com líderes e estrategistas de extrema direita

Enquanto as redes sociais passaram esta terça (12) discutindo as declarações do deputado Eduardo Bolsonaro sobre a bissexualidade do Superman, outro assunto mais importante ficou de lado. Os encontros do 03 e do presidente com alvos no inquérito das milícias digitais nos EUA estariam na mira da Polícia Federal, segundo nota do Painel.

É mais um capítulo das relações nada republicanas que o filho do presidente cultiva. Eduardo não parece um sujeito muito inteligente, uma característica da família. No entanto, o deputado é ambicioso (muito), autoritário (muitíssimo), esperto (o suficiente) e entendeu onde precisa colar para levar adiante seus anseios por um estado totalitário.

Elio Gaspari - Um Posto Ipiranga em Saturno

Folha de S. Paulo / O Globo

Paulo Guedes sabia onde estava se metendo

Fugindo dos piratas privados e das criaturas do pântano que o aprisionaram, o ministro Paulo Guedes está em Washington. Se lhe sobrar tempo, bem que poderia dar um pulo na National Gallery e gastar uns minutos diante do "Autorretrato" de Rembrandt, pintado em 1659, quando ele faliu.

O olhar abatido e a tristeza do gênio são uma aula de modéstia. Durante anos, esse quadro (e seu olhar) ficaram diante da mesa do banqueiro americano Andrew Mellon, secretário do Tesouro de três presidentes e síndico da ruína da crise de 1929. Conta a lenda que Mellon ganhou muito dinheiro exercitando a própria frieza enquanto olhava para um artista genial que, confiando demais em si mesmo, arruinou-se. O doutor era meio neurastênico.

Ele teve uns dissabores com a Receita Federal, mas poliu sua biografia doando ao povo americano sua coleção de arte e cacifando a construção do prédio da National Gallery. Alguns quadros que Mellon doou valem mais que todo o ervanário que Guedes mandou para seu refúgio caribenho.

Ao tempo de Mellon não existiam paraísos fiscais e seus filhos ficaram conhecidos pelas fortunas que deram, não pelos tesouros que esconderam. Todos republicanos até a medula.

Andrew Mellon foi um conservador intransigente. A ideia de que ele pudesse se meter em aventuras políticas com um demagogo direitista (nos Estados Unidos eles abundam) é tão absurda quanto imaginá-lo tingindo o bigode branco.

Luiz Carlos Azedo - Sem chance de dar certo

Correio Braziliense

O salário vale menos e os mais pobres estão disputando ossos e sopas oferecidas por instituições de caridade. Como a economia desanda, a reeleição sobe no telhado.

Há três contingências do governo Bolsonaro que colocam em xeque sua continuidade. A primeira tem a ver com a política externa; a segunda, com a política propriamente dita; a terceira, com a economia. São situações criadas pelo próprio presidente da República, não por seus adversários. Decorrem de estratégias erradas. Vejamos: (1) a aposta na política ultraconservadora do presidente Donald Trump, com a eleição do democrata Joe Biden para a Presidência dos Estados Unidos, deixou o presidente Jair Bolsonaro sem um grande aliado no Ocidente e na contramão da política mundial, que é globalista; (2) a retórica golpista e a agenda ultraconservadora provocaram seu crescente isolamento político; (3) e a entrega do Orçamento da União ao Centrão inviabilizou a agenda econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes. O resto são consequências.

O isolamento internacional do Brasil, ao contrário do que gostaria Bolsonaro, somente serviu para tornar o Brasil ainda mais dependente da China, nosso principal parceiro comercial. Não seria um grande problema, se a economia chinesa não sofresse os sobressaltos de uma economia capitalista, embora seu regime político seja uma ditadura comunista. No momento, o mercado financeiro internacional vive a expectativa de uma implosão da bolha imobiliária chinesa, de consequências imprevisíveis. A Sinic Holdings Group é mais recente empresa imobiliária chinesa em vias de dar um grande calote, aumentando a tensão criada pela gigante Evergrande, que atravessa momentos difíceis e tem uma dívida de US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão).

Zeina Latif - Inflação em 10%, e sem trégua

O Globo

A inflação superou a barreira dos 10% ao ano em setembro, algo não visto desde o governo Dilma. O pior já passou? Não exatamente. Nas variações anuais é possível que sim, porque a base de comparação daqui para frente será maior (foi justamente em outubro de 2020 que a inflação começou a acelerar). Do ponto de vista do consumidor, porém, que sente a alta dos preços a cada mês, o quadro preocupa.

Analistas costumam destrinchar a inflação para identificar os principais condicionantes da alta e, assim, traçar cenários. Os vilões seriam vários: a falta de insumos encarecendo produtos industrializados; choques climáticos tornando a alimentação mais cara; a crise de energia majorando a conta de luz; a alta de derivados de petróleo no mercado internacional elevando os preços nas bombas; o menor isolamento social pressionando os serviços; e a alta do dólar pressionando tudo.

Em breve, a lista poderá ser acrescida com outros itens, como a alta de aluguéis, cujos contratos deverão voltar a ser corrigidos pelo IGP-M passada a pandemia.

Fábio Alves - As surpresas do PIB

O Estado de S. Paulo

Assim como aconteceu com a inflação, que vem superando as projeções de analistas e do Banco Central, há o temor de que os indicadores de atividade econômica engatem tendência semelhante, mas em direção oposta: de surpresas negativas.

O sinal de alerta veio na semana passada, com a divulgação da produção industrial e de vendas do varejo para agosto. No caso da produção industrial, houve queda de 0,7% ante julho, resultado pior do que apontava o consenso das estimativas de analistas, de recuo de 0,4%. Já as vendas do varejo caíram 3,1% em agosto ante julho, numa queda bem maior até do que a mais pessimista das projeções do mercado.

Agora, todas as atenções estão voltadas para a divulgação dos dados de agosto da Pesquisa Mensal de Serviços (PMS), pelo IBGE, amanhã, e do Índice de Atividade Econômica do BC (IBC-BR) na sexta-feira.

Gustavo Loyola* - Presente de grego

Valor Econômico

Para maior efetividade da lei é necessário que já funcionassem as centrais de risco de crédito, o que não ocorre

A entrada em vigor da chamada lei do superendividamento - Lei 14.181/21, que, entre outras disposições, altera o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso - tem sido amplamente saudada como um passo importante para a prevenir o superendividamento das pessoas naturais e solucionar, por meios preferivelmente conciliatórios e extra-judiciais, situações em que o devedor não disponha de capacidade de pagamento para honrar suas dívidas. Essa percepção é correta, mas é preciso ter o devido cuidado na aplicação da nova lei para evitar que ela se transforme num verdadeiro presente de grego para os consumidores, fechando, para muitos deles, o acesso ao crédito formal bancário e não-bancário.

Legislações sobre a recuperação da capacidade creditícia das pessoas naturais existem na maioria dos países com mercado de crédito maduros. Sabe-se que a exclusão de consumidores do mercado de crédito fecha-lhes oportunidades de melhorar suas condições de vida e agrava as desigualdades sociais. Nas economias contemporâneas, cada vez mais impactadas pela transformação digital e em que há tendência de aumento do contingente de excluídos, a falta de acesso ao crédito pode ter impactos permanentes sobre as famílias, perpetuando-lhes o estado de pobreza.

Paulo Delgado* - Pomar sem água

O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa de normalidade, a vida comum das ações e emoções verdadeiras

O mundo está cheio de cretinos e este número aumenta quanto mais se afasta de Montana. Se a piada do Velho Oeste norteamericano se aproximar do Brasil, este número também aumenta. Feliz, realizada, rica, suspensa acima da terra e livre de todas as leis, a política brasileira dominou os ambientes onde cada um só cuida de si. É como obra de arte que, para ser admirada, não pode ser compreendida.

O deslumbramento com o open tudo das engenhocas digitais, o liberalismo fora da costa à moda dos corsários, o bilionário de aplicativo, a tecnologia sem ciência a serviço da agressividade, a reforma que deixa restos do Estado patrimonial dispensado de obedecer às leis, a autarquia estatal milionária dos partidos políticos. Tudo sob gestão política e judicial oficiais e sua incapacidade de dizer não a não ter direitos. Tal beatitude estabeleceu esta forma de amizade com o cretinismo sem fronteira e noção de perigo.

José Nêumanne* - Pró e contra a mudança

O Estado de S. Paulo

Suspeitos, acusados, réus, apenados e disponíveis do Congresso querem é mais corrupção

Para Paulo Teixeira (PT-SP), é preciso “aperfeiçoar o mecanismo”. José Adônis, do Conselho do MP, vê “golpe no combate à corrupção”.

A ordem institucional vigente mantém alguns princípios sagrados, que são, de fato, tratados de acordo com a regra generalizada celebrada pela sabedoria popular, segundo a qual “de boas intenções os cemitérios estão cheios”. O primeiro é que “todo o poder emana do povo”, parágrafo único do artigo 1.º da Constituição dita “cidadã” (apud Ulysses Guimarães), a que sempre recorre o senador Marcos Rogério para defender absurdos autoritários do desgoverno a que serve na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado. De fato, o Poder Legislativo, instituído para representar o cidadão comum, tem atuado de forma solerte para, em nome dessa representação, fortalecer as elites partidárias, que concentram cada vez mais nos próprios bolsos recursos e pesos, deixando de lado os contrapesos, que fingem imitar da obra revolucionária dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, no século 18. Nesse mister sinistro, recebe aval de Executivo e Judiciário.

Uma das armas empregadas no cotidiano do conluio implícito entre os três Poderes que atuam de forma harmônica, mas contra o povo, é a transformação da Câmara dos Deputados, cerne da democracia representativa, em estuário do neocoronelismo partidário que torna representantes desse povo um polvo representativo de famílias, paróquias e bandos empenhados no enriquecimento ilícito e no poder absoluto de seus sócios. Avanços inseridos no aperfeiçoamento do sistema de escolha de seus membros, caso da cláusula de barreira, exigida em lei de 2017, são desprezados em nome de um “fortalecimento dos partidos”, que, na prática, funciona como financiamento por partilha. As conquistas do combate à gatunagem no erário, celebradas em acordos internacionais de compliance, estão sendo progressivamente despejadas no lixão da república dos compadritos com cínico discurso de desprezo ao moralismo dito udenista do verdadeiro republicanismo, ou seja, submissão à coisa pública.

Roberto DaMatta* - Quanto vale uma palestra?

O Estado de S. Paulo / O Globo

Descobri a sabedoria nas histórias recitadas por pretas baianas a Tia Amália, irmã do meu pai

Desde os meus 18 anos eu vivo de “dar aulas”. Lembranças embaçadas mostram um eu criança inventando casos no salão de um navio do Lloyd Brasileiro, quando meus pais saíram de Manaus retornando a Niterói. Não me lembro dos contos, mas não esqueço do olhar enlevado dos que ouviam o menino falador cuja felicidade era ter o seu narcisismo recompensado com barras de chocolate.

Descobri a sabedoria nas histórias recitadas por pretas baianas a Tia Amália, irmã do meu pai. A que “ficou pra titia” e, solteirona, foi uma figura marginal na nossa casa. Seres periféricos enxergam com mais claridade e, como Titia, dissipam suas angústias contando histórias até hoje gravadas no fundo do meu velho coração. 

Seria esse o valor de uma palestra? Sim, porque tudo o que é transferido tem valor. Mas além de narrar coisas fantásticas, Titia fazia como Lévi-Strauss: dizia o que estava por trás, mas era visto como estando na frente das histórias. Uma delas era a do estudante pobre cuja paixão por uma moça rica fez com que realizasse o seu amor, vendendo a alma ao Diabo. Variante do Fausto, a história me perseguiu nos pesadelos com o Diabo me ofertando fama e fortuna.

Foi a oposição entre ricos e pobres que me revelou a hierarquia brasileira. Esse vinco de uma desigualdade estrutural. Um traço tão importante que há todo um inabalável sistema político-legal desenhado para mantê-lo. Volto a pergunta: quanto vale uma palestra? Ou, por que não, esta crônica?

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

O eleitoral substitui o social

O Estado de S. Paulo

Diante de um governo que deseja cuidar de si com o Auxílio Brasil, cabe ao Congresso cuidar de quem de fato precisa

Entre as obrigações do Estado previstas na Constituição está a atuação para “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. O poder público realiza essa tarefa, entre outras ações, por meio dos programas sociais. A finalidade desses programas não é conquistar a simpatia dos eleitores, melhorar os índices de aprovação de um governante e, menos ainda, manter parcela da população dependente do Estado.

O governo Bolsonaro está, no entanto, indiferente a tudo isso. Vem tratando os programas sociais como ferramentas eleitorais, em uma inconstitucional apropriação do Estado para fins particulares. Para piorar, parte da esquerda, em especial, o lulopetismo, tem sido conivente com a manobra bolsonarista. Como o PT também atuou assim quando esteve no poder, o partido de Lula parece tolerar a conduta de Bolsonaro, como se fosse normal. Quem está no poder desfrutaria dessa espécie de bônus, usando parte dos recursos públicos em proveito próprio.

Um dos sintomas da submissão das políticas sociais a fins eleitorais no governo Bolsonaro é o abandono de critérios técnicos na formulação dos programas de transferência de renda. Não há estudo, planejamento ou aprendizado com as experiências passadas. Tudo se resume a duas ideias fixas: aumentar o valor mensal e aumentar o número de pessoas atendidas.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - A palavra seda

A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa
não faz dormir, mas desperta;
nem é sedante, palavra
derivada da de seda.

E é certo que a superfície
de tua pessoa externa,
de tua pele e de tudo
isso que em ti se tateia,

nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.

Mas em ti, em algum ponto,
talvez fora de ti mesma,
talvez mesmo no ambiente
que retesas quando chegas,

há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza, que sob a palavra gasta
persiste na coisa seda.