O Estado de S. Paulo
Fantasma de décadas volta a rondar: o Oriente
Médio distrai os EUA de seu ‘grande jogo’ na Ásia
Se fosse necessário apontar o maior erro de política externa cometido pelos EUA nas últimas décadas, seria o excesso de recursos e energia dedicado ao Oriente Médio – simbolizado pela desastrosa invasão do Iraque em 2003. A guerra não apenas desestabilizou toda a região e negativamente afetou a reputação dos EUA no mundo, mas também desviou a atenção de Washington do que realmente representa seu principal desafio estratégico: o deslocamento do poder global em direção à Ásia e a ascensão da China.
Essa percepção explica por que todos os
governos americanos depois de George W. Bush, independentemente de sua
orientação ideológica, buscaram reduzir seu papel no Oriente Médio –
especialmente considerando que os EUA tornaram-se independentes em termos
energéticos em 2019, sendo hoje os maiores produtores de petróleo do mundo.
De fato, há anos a China, e não os EUA, é o
principal comprador de petróleo da região. Ainda assim, apesar do “Pivot to
Asia” (algo como “Redirecionamento estratégico para a Ásia”) anunciado por
Obama e das tentativas posteriores de alcançar um grande acordo regional – como
a negociação frustrada pelo governo Biden entre Israel e Arábia Saudita –, os
EUA continuam muito mais envolvidos geopoliticamente no Oriente Médio do que
qualquer outra grande potência.
Para o ex-presidente dos EUA, Joe Biden, o
Oriente Médio foi palco de seu maior fracasso de política externa. Ele não
conseguiu resolver a tensão entre dois objetivos centrais: oferecer proteção e
“apoio ferrenho” a Israel e, ao mesmo tempo, estabilizar o Oriente Médio para
poder reduzir o engajamento americano e concentrar-se na Ásia.
Em retrospectiva, fica evidente que, ao
oferecer apoio praticamente irrestrito ao governo Netanyahu – líder de uma
coalizão instável, sustentada por partidos de extrema direita, e determinado a
permanecer no poder para evitar o enfrentamento de múltiplas acusações de
corrupção –, Biden acabou incentivando uma postura desestabilizadora do
primeiro-ministro israelense no Oriente Médio, minando os esforços dos EUA para
reduzir sua presença na região.
DILEMA. Agora, Donald Trump enfrenta o mesmo
dilema. Netanyahu aposta que os EUA apoiarão Israel de forma incondicional no
confronto direto com o Irã, o que ajuda a explicar por que o governo israelense
optou por uma decisão tão arriscada.
Os EUA já estão exercendo um papel crucial
para defender Israel contra ataques de mísseis iranianos. A grande questão é se
Trump será levado a se envolver ainda mais no conflito. É justamente isso o que
alguns líderes do Partido Republicano vêm pedindo.
Em 13 de junho, o senador Lindsey Graham
afirmou que, caso a diplomacia fracasse, ele acredita firmemente que seria do
interesse da segurança nacional dos EUA “investir totalmente para ajudar Israel
a concluir o trabalho” – isto é, destruir o programa nuclear iraniano –, algo
que Israel não tem capacidade militar de fazer sozinho.
Da mesma forma, Bill Ackman, investidor e
influente aliado de Trump, defende que os EUA “não deveriam deixar passar essa
oportunidade, mas Israel não tem o equipamento e os armamentos necessários para
concluir o trabalho ( destruir o programa nuclear do Irã)”. “Nós temos”,
concluiu.
Como aponta Gideon Rachman, colunista do
Financial Times, Trump talvez tenha calculado que poderia usar Israel para
pressionar o Irã a desistir de seu programa nuclear. No entanto, agora o
presidente dos EUA pode se dar conta de que foi Netanyahu quem o utilizou –
arrastando os EUA para uma guerra que o presidente diz querer evitar.
Trump enfrenta uma decisão difícil: manter o
discurso de não envolvimento em novas guerras, tão caro a uma parcela de sua
base eleitoral, ou optar por apoio total a Israel, como defende o senador
Lindsey Graham. Caso bases americanas na região sejam atingidas pelo Irã –
hipótese que não pode ser descartada – Trump terá pouco espaço político para
resistir à pressão por uma resposta militar mais direta.
Para os EUA, uma escalada neste momento
significaria desviar novamente foco e recursos para o Oriente Médio – além de
produzir desgaste junto à base trumpista, contrária a novas intervenções
militares. Essa distração, fruto da falta de clareza estratégica dos EUA,
beneficiaria a China, que vem ampliando sua influência econômica no mundo. O
fantasma das últimas décadas, com o Oriente Médio distraindo os EUA de seu
“grande jogo” na Ásia, volta a rondar.
*É analista político e professor de relações internacionais da FGV em São Paulo
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