segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Guerra cultural da direita chega à Alemanha, por Jan-Werner Mueller*

Valor Econômico

Não é inevitável que o último grande país com uma muralha para conter a extrema direita siga o rumo que tantas outras democracias europeias já seguiram. Mas esse cenário está se tornando mais realista

Alguma coisa acabou de acontecer na Alemanha. Uma jurista altamente respeitada, indicada pelo Partido Social Democrata (SPD, na sigla em inglês) para integrar a Corte Constitucional do país, saiu da disputa após uma campanha implacável de difamação por parte de jornalistas e políticos de direita. Pior ainda, foi o próprio parceiro de coalizão do SPD, a União Democrata Cristã (CDU, na sigla em inglês), de centro-direita, que subitamente deixou de apoiar a candidatura de Frauke Brosius-Gersdorf e passou a considerá-la inaceitável.

Essa sabotagem de um procedimento até então consensual é um teste para trazer a política de guerra cultural à moda americana para a Alemanha. O objetivo é afastar cada vez mais membros da centro-direita que a ex-chanceler Angela Merkel liderou no passado e avançar em direção ao arranjo já implementado em algumas outras democracias europeias: uma aliança entre a centro-direita e a extrema direita populista.

É verdade que o Tribunal Constitucional da Alemanha, embora seja um dos mais respeitados e influentes do mundo, nem sempre esteve acima de controvérsias. Em meados da década de 1990, atraiu a ira dos conservadores quando determinou que as escolas não-confessionais da Baviera não poderiam exibir crucifixos em suas paredes. Mas o processo de nomeação de juízes sempre foi poupado do espetáculo que é muito familiar nos Estados Unidos. Em vez de realizar audiências altamente divulgadas, televisionadas e que polarizam de forma confiável, os partidos se reúnem a portas fechadas para propor uma lista equilibrada de indicados, cada um dos quais precisa obter o apoio da supermaioria na Câmara Baixa.

Como em muitas outras coisas na política europeia, esse processo foi complicado pelo sucesso dos populistas de extrema direita. A Alternativa para a Alemanha (AfD, no original em alemão), agora o segundo maior grupo no parlamento, tem exigido seu “juiz próprio”, opondo-se ao fato de que os partidos alemães menores - os Democratas Livres e os Verdes, pró-mercado - têm o direito de nomear membros do tribunal. Num Estado federal, a Turíngia, onde o AfD venceu as últimas eleições, o partido na prática bloqueou a nomeação de novos juízes como protesto contra o que considera sua exclusão injustificada.

Mas não foi principalmente a extrema direita que derrubou Brosius-Gersdorf. Em vez disso, ela enfrentou uma campanha mais ampla de críticas que procurou pintá-la como uma radical de esquerda que supostamente quer liberalizar completamente o aborto e introduzir vacinas obrigatórias contra a covid-19. Não apenas um colega professor de direito alterou o verbete sobre ela na Wikipédia para fazê-la parecer uma “ativista”, mas o arcebispo de Bamberg a atacou em um sermão - apenas para admitir, após uma conversa pessoal com a candidata, que havia sido “mal informado”.

A Alemanha nunca teve o equivalente à Fox News (enquanto a França agora tem a CNews, e um de seus principais jornalistas chegou a se candidatar à presidência da França em 2022). No entanto, startups de extrema direita relativamente pequenas - que afirmam ser “a voz da maioria” - têm ganhado cada vez mais influência dentro da CDU. Recentemente, um membro do partido declarou, de fato, que qualquer pessoa que não adira às doutrinas do direito natural não pode atuar como juiz. De repente, a suposta corrente dominante do partido está ecoando o discurso populista de que os tribunais devem principalmente “representar o povo” (em vez de defender a Constituição).

Os guerreiros da cultura de direita de hoje são empreendedores da polarização. Buscam dividir o eleitorado em amigos e inimigos, e atacaram o ponto fraco da centro-direita. Sob pressão, a CDU achou que precisa provar a seus eleitores que são de fato conservadores

A CDU está em crise intelectual há algum tempo. Hoje, quase ninguém consegue articular os princípios fundamentais do partido. É verdade que, assim como os conservadores no Reino Unido, os democratas-cristãos alemães há muito tempo se orgulham de seu pragmatismo, cultivando uma imagem de partido governamental competente e padrão. Além disso, o pensamento do direito natural era de fato proeminente entre os democratas-cristãos no período pós-guerra. Mas, justamente por estarem interessados no poder, os democratas-cristãos - assim como os conservadores britânicos - se adaptaram de modo cuidadoso a uma sociedade em transformação. O resultado irônico é que agora eles estão difamando como “radical” uma jurista que, na verdade, parece representar “o povo” - na medida em que ela costuma defender pontos de vista que contam com o apoio da maioria.

Tradicionalmente, os democratas-cristãos adotaram uma estratégia política de buscar a mediação entre grupos e interesses diferentes, buscando o que a doutrina social católica há muito tempo apresentava como visão de harmonia social. Nesse sentido, Merkel - sempre ansiosa para equilibrar e fazer concessões - ainda estava praticando o modelo tradicional.

Porém, os guerreiros da cultura de direita de hoje são empreendedores da polarização. Muitas vezes armados com desinformação, eles buscam acirrar os conflitos e dividir o eleitorado em amigos e inimigos, e isso os levou a atacar o ponto fraco da centro-direita. Sentindo a pressão da extrema direita, os democratas-cristãos acham que precisam provar a seus eleitores que ainda são de fato conservadores - ao contrário da supostamente über-liberal Merkel, que acabou concordando com reformas como o casamento de pessoas do mesmo sexo.

Embora o arcebispo de Bamberg tenha se disposto a falar diretamente com a candidata, os membros do parlamento da CDU aparentemente se recusaram a fazê-lo. Esse comportamento representa um desvio gritante da posição da CDU, da cultura de compromisso e moderação que impediu a politização da mais alta corte da Alemanha no estilo norte-americano. A quebra de normas da CDU é análoga à recusa dos republicanos americanos em considerar o indicado de Barack Obama para a Suprema Corte em 2016.

Apesar das alegações dos líderes da CDU, de que são a última defesa da democracia contra a extrema direita em ascensão, o partido está caindo nas armadilhas da guerra cultural que a extrema direita preparou para eles. Não é inevitável que o último grande país com uma muralha para conter a extrema direita siga o rumo que tantas outras democracias europeias já seguiram. Mas esse cenário está se tornando mais realista. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)

*Jan-Werner Mueller, professor de política na Universidade de Princeton, é autor de “Democracy Rules”(O jogo democrático, em tradução livre do inglês) (Farrar, Straus and Giroux, 2021). Copyright: Project Syndicate, 2025.

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