terça-feira, 5 de outubro de 2021

Luiz Fux* - O único caminho

O Globo

Brasília, 5 de outubro de 1988. Os relógios marcavam 15h50 quando o plenário da Câmara dos Deputados reverberou o desejo de mudança que ecoava nas ruas do país. Nascia a Constituição Cidadã, fruto do trabalho intenso da Assembleia Nacional Constituinte, com a ampla colaboração de cidadãos, entidades representativas, agentes políticos e movimentos sociais.

Em seus 245 artigos, a Carta Maior inaugurou um novo capítulo da história brasileira, concretizando um pacto nacional pela liberdade e pela igualdade de oportunidades, num ambiente sedimentado por valores republicanos e democráticos. O texto constitucional incorporou um catálogo monumental de direitos humanos, modernizou o Estado e dinamizou a economia, direcionando o país rumo ao desenvolvimento sem se descuidar do combate ao patrimonialismo e à corrupção, da erradicação da miséria e da redução das desigualdades sociais.

Esse novo Brasil elegeu a Constituição de 1988 como a principal porta-voz da soberania popular e se comprometeu com as liberdades públicas de expressão, de crença, de empreendimento econômico e de manifestações artísticas e científicas, duramente conquistadas ao longo de nossa história.

Na data de hoje, celebramos 33 anos da promulgação da Constituição. Daquela tarde até hoje, não percorremos um caminho fácil. Dois impeachments, inúmeros escândalos de corrupção estrutural e severas crises econômicas e políticas, entre outras instabilidades, testaram nosso projeto de nação. Mais recentemente, as instituições vêm atravessando o mais severo teste de resiliência e de confiança desde a redemocratização, intensificado por uma pandemia mundial que tem ceifado vidas e desafiado a economia com desemprego e inflação.

Merval Pereira - Missão: redução da desigualdade

O Globo

Recentemente, a propósito da tentativa de aprovar a volta dos jogos de azar no país, petistas denunciaram que o sonho de Bolsonaro é transformar o Brasil numa Cuba da época do ditador Fulgencio Batista, um cassino onde os americanos iam se divertir. Os bolsonaristas há muito atacam o PT afirmando que o ex-presidente Lula pretende transformar o Brasil numa ditadura como a cubana, regime apoiado pelo petismo.

O paralelo cruzado reflete bem a polarização que já está marcando a campanha presidencial antecipada do ano que vem e escancara o caminho que existe para uma candidatura de terceira via que tenha um projeto para o país que não seja nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O grande problema do mundo atualmente é a desigualdade de renda, que sempre esteve presente, mas ganhou dimensão planetária nos últimos anos, especialmente em países periféricos como o Brasil.

Não apenas no Brasil, a relação entre democracia e capitalismo já não é mais tão absoluta quanto foi nos últimos anos do século passado. Buscam-se modelos para aperfeiçoar a democracia representativa, que tem como um dos pilares a ideia de “uma pessoa, um voto”, criticada na China, pois não levaria às escolhas mais corretas, muito sujeitas a pressões financeiras.

Luiz Gonzaga Belluzzo* - O pensamento (conservador) antiliberal

Valor Econômico

É assustadora a indigência cultural dos que se vêem acima dos cidadãos livres e iguais em sua diversidade

Instigado (ou provocado?) pelo avanço do pensamento conservador no Brasil e no mundo, cuidei de me entregar à releitura do livro de Karl Mannheim sobre o tema. “O Pensamento Conservador” é mais uma obra que enriquece os estudos do grande sociólogo, considerado o patrono da sociologia do conhecimento. Os leitores devem saber que ele escreveu um livro fundador - “Ideologia e Utopia” - para o desvendamento das raízes sociais e culturais do pensamento nos mundos da modernidade.

Mannheim morreu em 1947 aos 55 anos, na aurora do período mais glorioso e igualitário do capitalismo na Europa e nos Estados Unidos. Entre outras obras, escreveu os clássicos “Ideologia e Utopia” e “Ensaios Sobre a Sociologia da Cultura”. No livro “Liberdade, Poder e Planejamento Democrático”, publicado postumamente, cuidou do papel da educação no fortalecimento das democracias que acordavam dos pesadelos totalitários dos anos 1930.

Mannheim acolhe a ideia de Ortega y Gasset sobre o homem educado: aquele que se distingue pelo conhecimento das filosofias que regem sua época. Isso deveria ser complementado, diz ele, por um conhecimento dos fatos que permitam a todos formar ideias sólidas acerca do lugar do homem na natureza e na sociedade. Cabe à educação examinar os problemas de nossa sociedade, especialmente aqueles relacionados com a vida democrática. Uma vez tratadas essas questões fundamentais para o homem moderno, o estudante vai encontrar o lugar adequado para a boa formação profissional.

Ainda no livro “Liberdade, Poder e Planejamento Democrático”, Mannheim escreveu: “... não devemos restringir o nosso conceito de poder ao poder político. Trataremos do poder econômico e administrativo, assim como do poder de persuasão que se manifesta através da religião, da educação e dos meios de comunicação de massa, tais como a imprensa, o cinema e a radiodifusão”. Para Mannheim, deve-se temer menos os governos, que podemos controlar e substituir, e muito mais os poderes que exercem sua influência no “interior” das sociedades.

Luiz Carlos Azedo - “Já ganhou” preocupa Lula

Correio Braziliense

Devido ao peso do Estado e à capacidade de influência política da máquina do governo, o petista avalia que Bolsonaro ainda não estaria fora da disputa

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em Brasília para conversar com todo mundo, ou melhor, “com quem queira conversar com ele”, destaca o deputado Carlos Zaratinni (PT-SP), que ontem participou da conversa do líder petista com as bancadas de deputados e senadores da legenda. Acompanhado da presidente do PT, Gleisi Hoffmann, Lula também se encontrou com os governadores do PT no Nordeste: Camilo Santana (Ceará), Fátima Bezerra (Rio Grande do Norte), Rui Costa (Bahia) e Wellington Dias (Piauí). Também estiveram na reunião a vice-governadora do Sergipe, Eliane Aquino, e o senador Jaques Wagner (PT-BA).

Domingo à noite, Lula teve um encontro com o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), acompanhado do senador Humberto Costa (PT-PE), em mais um passo para consolidar a aliança com o PSB, cujas negociações estão muito adiantadas. Esqueçam o apoio dos caciques do MDB ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Amanhã, Lula jantará na casa do ex-senador Eunício de Oliveira (CE) com o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, o ex-presidente José Sarney, os senadores Renan Calheiros (MDB-AL) e Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), e os ex-senadores Edison Lobão (MDB-MA) e Romero Jucá (MDB-RR).

Na conversa de ontem com os parlamentares petistas, Lula traçou a linha de suas conversas. Primeiro, não existe “já ganhou”. Devido ao peso do Estado e à capacidade de influência política da máquina do governo, avalia que o presidente Jair Bolsonaro ainda não estaria fora da disputa — pode se recuperar e se reeleger. Obviamente, o petista faz essa avaliação olhando para o final do seu primeiro mandato, quando teve dificuldades para se reeleger em razão dos escândalos do mensalão e dos dólares na cueca de um petista, às vésperas do primeiro turno. Em 2006, teve que disputar o segundo turno com o tucano Geraldo Alckmin.

Eliane Cantanhêde - Rejeição e desconfiança

O Estado de S. Paulo

Tudo é incerto em 2022, porque a maioria do Brasil é de desinteressados e/ou indecisos

O desconhecido empresário Romeu Zema virou governador de Minas, um dos três principais Estados do País, em quatro dias. Com 43% de indecisos, o eleitorado rejeitava tanto Antonio Anastasia, por representar o PSDB de Aécio Neves, quanto Fernando Pimentel, que concorria à reeleição pelo também vulnerável PT. Os indecisos descobriram Zema, do Novo, num debate na terçafeira anterior às urnas. De quarta a domingo, ele disparou de 5% para 41% e venceu a eleição.

Se Romeu Zema é ou não um bom governador, e a quantas andam sua gestão e aprovação, são outros 500, mas os tucanos usam essa história de 2018 para defender com unhas e dentes que uma “terceira via” entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Lula é não apenas possível como bastante provável, com muita chance de chegar ao segundo turno e vencer. Até por isso Lula corre atrás de MDB, PSD, PP e PSB.

Andrea Jubé - Lula veta “salto alto” no PT e cobra diálogo

Valor Econômico

Pacheco usa tom eleitoral em ato com MDB e Caiado

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava bem humorado ontem na reunião com deputados e senadores no salão de um hotel em Brasília. Na fala de abertura do encontro, relembrou os tempos em que era presidente da República e se deparava no dia seguinte com bastidores do governo, que eram de conhecimento de um grupo restrito de auxiliares, estampados nos jornais.

Lula questionava os auxiliares sobre o responsável pelos vazamentos à imprensa. Ao fim, dizia em tom de pilhéria que o tagarela só poderia ser o “anão embaixo da mesa”. A galhofa virou piada interna do PT.

Ontem, segundo relato de um dos presentes à coluna, o ex-presidente comentou, irônico, que a imprensa já publicou pelo menos 13 nomes de candidatos que ocupariam a vaga de vice em chapa encabeçada por ele. Nesse momento, citou matéria deste Valor, que informou a criação de um gabinete informal para assessorá-lo na pré-campanha. “Também já tenho não sei quantos coordenadores”, provocou, culpando de novo o “anão embaixo da mesa” pela informação.

Lula está bem disposto, de humor leve, mas “consciente da realidade”, disse à coluna o governador do Piauí, Wellington Dias, que se reuniu com ele na véspera do encontro com as bancadas federais.

Carlos Andreazza - Ministro da Economia do Cazaquistão

O Globo

Não terá sido de propósito. Nem Paulo Guedes, um visionário, enxergaria tão longe. Sua offshore foi constituída em 2014 e abastecida entre aquele ano e o seguinte. Investidor privado, decerto pretendia proteger parte de seus dinheiros da economia brasileira sob a gestão de Dilma Rousseff. Deu certo. O tempo passaria. E a empresa nas Ilhas Virgens Britânicas, um paraíso fiscal, continuaria dando certo: hoje servindo a que o ora ministro — não terá sido de propósito — proteja alguns de seus milhões de si próprio. Homem de sorte.

Sorte à parte, esse é o aspecto imoral da história: que o ministro da Economia — o fiador da bagaça, um estelionato eleitoral — tenha uma porção de seu patrimônio a salvo dos efeitos do governo fiado, o de Jair Bolsonaro. O sujeito serve a um populista-autocrático que é o centro gerador constante de instabilidades que minimiza e chama de “barulho”, mas tem uma fortuna isenta dos produtos da imprevisibilidade do chefe (e, claro, da mordida do Leão).

Não terá sido de propósito. Os dinheiros estavam lá; e lá ficaram. Ficaram, como por inércia, até que tivéssemos — não terá sido de propósito — um ministro da Economia com grana em offshore. (Tudo declarado.)

Essa imoralidade não é pouca coisa. Guedes vendeu a união entre conservadores e liberais como o casamento, afinal, da ordem com o progresso. Ele, liberal reformista, domaria a natureza beligerante de Bolsonaro, líder corporativista que erguera empresa familiar dentro do Estado. Com dinheiros tantos fora do Brasil, mesmo ante a inauguração da nova era, não estarão errados os que identificarem na inércia do ministro a admissão de que não seria tão fácil quanto apregoara.

Míriam Leitão - Tremores externos e dúvidas internas

O Globo

O mercado ontem teve mais um dia de quedas de bolsa, temores de crises de energia na Europa, problemas nas empresas chinesas e dúvidas sobre as contas públicas brasileiros. O dólar subiu, o Ibovespa caiu, e o risco-país atingiu no ano uma alta de 41%. Foi dia de queda da Nasdaq, da bolsa de Nova York também. A Opep anunciou que não vai aumentar a produção, e na China outra empresa imobiliária não conseguiu pagar suas dívidas. Nesse ambiente, as informações sobre empresas offshore do ministro da Economia e do presidente do Banco Central pioraram o humor.

A pessoa pública precisa dar todas as explicações possíveis diante da dúvida sobre cada um dos seus atos e, no caso, seus investimentos. É o ônus espinhoso da função pública. Se o dinheiro tiver origem definida, for declarado à Receita e ao Banco Central, não é crime ter uma empresa em paraíso fiscal, como têm o ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Isso é consenso entre economistas, tributaristas e advogados que ouvimos. Não há ilegalidade. Mas no Brasil nunca foi bem visto ter conta, e muito menos empresa, no exterior e em paraísos fiscais. Foi assim que muito dinheiro desviado foi escondido, por isso seria necessário ter tido mais transparência desde o começo.

Luiz Schymura* - A persistência da taxa de desemprego em dois dígitos

Valor Econômico

Difícil imaginar que índice vai ficar abaixo de 10% antes de 2026

O novo coronavírus aterrissou no Brasil em um momento particularmente ruim para o trabalhador. O país havia sido abalado pela forte recessão de 2014-2016 e tentava ainda tropegamente retornar à realidade do mercado de trabalho pré-crise. Diante dos estragos da pandemia, os cenários traçados para o retorno ao padrão de empregabilidade anterior a 2015 não estão nada animadores. Essa constatação tem implicações importantes para as eleições de 2022 e para a política econômica a ser conduzida até lá, assim como para o próximo governo a partir de 2023.

A taxa de desemprego do Brasil era relativamente baixa na década de 80 e início dos anos 90, com uma média de 5% entre 1981 e 1994. O indicador subiu para uma média de 9,3% entre 1995 e 2014. Com a crise econômica, a taxa de desemprego média cresceu para 11,4%, entre 2014 e 2019.

Hélio Schwartsman - A era das identidades

Folha de S. Paulo

É preciso que as más ideias sejam discutidas para que as boas possam triunfar

O identitarismo que parece ter-se assenhorado de nossa época, em especial do pensamento de esquerda, tem dois problemas, um de conteúdo e outro de método. Comecemos pelo conteúdo.

A esquerda tradicional cerrava fileiras no universalismo. A igualdade de direitos derivava da humanidade comum, não de características de grupos como negros, mulheres, homossexuais. Não se contesta que essas minorias sofram mais discriminação, o que justificaria priorizar suas demandas. A questão é que o tipo de discurso que se adota faz diferença. Enquanto a esquerda clássica inscrevia o fim da discriminação no contexto de um movimento de emancipação que beneficiaria a todos, a política identitária ressalta as diferenças entre as pessoas sem apontar nada de universal.

Joel Pinheiro da Fonseca – A sombra dos Anjos Tronchos

Folha de S. Paulo

Redes sociais nos deixaram mais do que nunca à mercê de podres poderes

Enquanto escrevo esta coluna, as redes e serviços do grupo Facebook (o próprio Face, o Instagram e o WhatsApp) voltam aos poucos a funcionar, após quase seis horas fora do ar.

Parece que a coisa foi grave. A queda simultânea das três plataformas é mais um alerta do perigo da concentração de mercado. Se Instagram, Facebook e Whatsapp não fossem do mesmo grupo, não teriam todos caído ao mesmo tempo. Mark Zuckerberg, assim como outros donos de redes e plataformas, tem poder demais nas mãos; e, quando falha, nos deixa na mão.

Anjos Tronchos” é o nome que Caetano Veloso dá aos chefões do Vale do Silício em sua nova canção, cujos versos expõem diversas facetas do impacto das redes sociais no mundo, nem sempre para o bem. Explorando a fragilidade de nossos neurônios com o poder dos algoritmos, somos viciados e comercializados para o acúmulo de seus “mi, bi, trilhões”.

Paulo Hartung* - A última chance de frear a mudança do clima

O Estado de S. Paulo

Não superaremos os desafios globais sem que o Brasil seja parte da solução

A emergência climática é um dos maiores desafios que a humanidade enfrenta. Uma batalha que extrapolou a dimensão ambiental e tem causado danos profundos em todo o mundo, especialmente aos mais vulneráveis, e compromete de forma indelével o horizonte do planeta. O modo irracional de lidar com a natureza durante anos chegou a níveis tão graves que elevou a intensidade dos eventos climáticos extremos, como ciclones e ondas de calor, secas e inundações.

O sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) reflete a insuficiência da reação global e conclui: a humanidade tem provocado o aquecimento do planeta a taxas sem precedentes. Em todas as esferas da vida observamos sinais do desequilíbrio daí resultante.

Zuenir Ventura - Lição aos homofóbicos

O Globo

Num país campeão em assassinatos de homossexuais, em que o presidente da República já declarou ter “imunidade para afirmar que sou homofóbico, sim, com muito orgulho”, o momento mais emocionante e exemplar da CPI da Covid, que está chegando ao fim, foi o que confrontou a dignidade de um senador, o primeiro assumidamente gay, Fabiano Contarato, com o obscurantismo de um empresário homofóbico e, claro, bolsonarista, Otávio Fakhoury, apontado por membros da comissão como um dos principais financiadores de uma rede de disseminação de mentiras de apoio a atos antidemocráticos durante a pandemia.

Fakhoury também confirmou que pagou material de campanha do presidente Jair Bolsonaro sem declarar os gastos à Justiça Eleitoral. Durante as investigações, a Polícia Federal descobriu que o empresário, presidente do PTB de São Paulo, bancou R$ 50 mil.

Sentado simbolicamente na cadeira de presidente que o senador Omar Aziz fez questão de lhe ceder, com o dedo em riste e cara a cara, Contarato disse em tom de desafio ao empresário que o ofendera com deboches grosseiros nas redes sociais:

5/10/1988 - Discurso de Ulisses Guimarães na Constituinte

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Exploração de óleo não pode pôr santuários em risco

O Globo

Os cenários paradisíacos de Fernando de Noronha e do Atol das Rocas estão sob risco. Apesar dos reiterados apelos de ambientalistas, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) decidiu manter, no leilão marcado para quinta-feira, blocos de exploração de óleo e gás em regiões próximas aos dois santuários, ambos entre os mais importantes do ecossistema de recifes no Brasil. A 17ª rodada de concessão, que oferecerá 92 blocos em diversas regiões, inclui áreas da Bacia Potiguar a cerca de 370 quilômetros do Parque Marinho de Fernando de Noronha e a 260 quilômetros da Reserva Biológica do Atol das Rocas.

O alerta sobre o desatino vem de dentro do próprio governo. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) publicou nota técnica na página da ANP afirmando que a decisão é temerária, “considerando a propagação por longas distâncias de ondas sísmicas, a grande mobilidade de algumas espécies marinhas, a ação das correntes marítimas sobre a propagação do óleo e o histórico de invasão de espécies às atividades de exploração de petróleo e gás”.

O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou fragilidades na análise ambiental do leilão e recomendou ao Ministério de Minas e Energia o aperfeiçoamento para futuros certames, que devem ter “dados primários dotados de melhor qualidade e robustez técnica”. Só faltou combinar com o imponderável.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever:
Jogam-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco,
o de que, entre os grãos pesados, entre
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.


Música | João Bosco - Agora eu sou diretoria (Do álbum "Aldir Blanc Inédito")

 

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Fernando Gabeira - Mil dias de assombração

O Globo

O governo Bolsonaro comemora mil dias. Já escrevi e falei sobre o tema, analisando a trajetória política desse experimento. Mas ainda não parei para me perguntar como foi possível manter, ainda que de forma precária, a sanidade mental neste país enlouquecido.

Jamais poderia imaginar um governo tão singular como o de Bolsonaro, no qual crimes e trapalhadas se entrelaçam de tal maneira, tragicômico. Quando comecei a entender de política, o confronto esquerda-direita tinha outros contornos. Nosso bairro proletário era getulista. A simpatia juvenil estava ao lado dos vizinhos. Mas havia gente como meu pai, que votava no brigadeiro Eduardo Gomes.

A encarnação da direita naqueles anos tinha outro perfil. Votem no brigadeiro, diziam as mulheres que o apoiavam, ele é bonito e é solteiro. Até um doce foi criado em homenagem a ele.

Quando Bolsonaro postou aquela famosa cena de golden shower, perguntando do que se tratava, percebi que estávamos num outro momento histórico. A clássica e austera direita dava margem a um sensacionalismo radiofônico que, sob a máscara de moralidade, usava as cenas de crime e sexo para garantir audiência.

Quando o então secretário de Cultura, Roberto Alvim, fez um discurso imitando o líder nazista Joseph Goebbels, dizendo que a arte brasileira seria heroica e imperativa, percebi também um novo tom.

Carlos Pereira - Conversão moral importa?

O Estado de S. Paulo

Democracia não requer governantes com ela comprometidos

Mesmo diante do mais acachapante “ato de contrição” do presidente Jair Bolsonaro, com a sua “declaração à nação”, como uma tentativa de se redimir dos ataques feitos a ministros da Suprema Corte e de ameaças de não cumprimento das suas decisões, muitos têm vaticinado que a “conversão” do presidente aos ritos, procedimentos e liturgias da democracia não seria sustentável. Acreditam que é só uma questão de tempo para que a dissimulação de Bolsonaro fique estampada e que a democracia brasileira venha finalmente a sucumbir.

Vaticínio semelhante tem sido feito por alguns analistas, tais como Robert Kagan (The Washington Post), Martin Wolf (Financial Times) ou David Frum (The Atlantic), em relação aos riscos que a democracia americana estaria correndo diante de um possível retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2024. Argumentam que, diante da baixa performance do governo Joe Biden, com sua popularidade diminuindo, abrir-se-ia caminho para que o ex-presidente retornasse a Casa Branca, o que, para esses analistas, necessariamente acarretaria uma crise da democracia liberal americana que eventualmente evoluiria para o seu colapso.

Demétrio Magnoli - Merkel, a chanceler minimalista

O Globo

No seu longo adeus, Angela Merkel pode ainda se tornar a mais longeva chanceler da Alemanha republicana, ultrapassando seu mentor Helmut Kohl. Mas, ao contrário de Kohl e de outros dois icônicos primeiros-ministros do pós-guerra, Merkel não deixa um legado óbvio, compacto, sintetizável numa única pincelada.

O democrata-cristão Konrad Adenauer (1949-63), arquiteto e primeiro chanceler da RFA, fundou a Alemanha moderna, atlanticista e europeia. A Otan — o alinhamento geopolítico com os EUA — e o projeto da Comunidade Europeia — a parceria estratégica com a França — são seus legados.

Willy Brandt (1969-74) reinventou a social-democracia alemã, inscrevendo o antigo partido de Karl Marx na moldura do Ocidente da Guerra Fria, uma obra completada por seu sucessor, Helmut Schmidt. Além disso, num lance de gênio, fissurou a armadura ideológica da Alemanha Oriental com sua Ostpolitik, a política de abertura para o Leste, lançando a semente da reunificação.

Mirtes Cordeiro* - Os idosos dos tempos de agora

Falou e Disse

Cada vez fica mais distante a ideia das pessoas idosas em casa, sentadas em suas cadeiras à espera de ajuda dos familiares, ou acomodadas com os problemas impostos pela vida.

O mês de outubro teve início com a comemoração pelo Dia Internacional da Pessoa Idosa. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1991, e serve como um alerta para a sociedade civil sobre a necessidade de proteção e de cuidados com os idosos.

De repente, me descobri uma pessoa idosa. Aconteceu quando decidi parar de trabalhar, após viver e trabalhar durante 72 anos.

A vida é assim; a gente nasce, cresce, passa por vários momentos carregados de felicidade, amor, afeto, desilusão, angústia, satisfação e segue em busca de algo a cada dia, sempre o que consideramos melhor e possível para nós e para o outro. Sim, porque no trajeto a gente vai agregando maridos ou companheiros, filhos, amigos, os amigos dos amigos, a vizinhança, os gatos e os cachorros… tive vários.

No entanto, é o trabalho que marca a vida desde cedo. Primeiro pela necessidade de sobrevivência, mas também porque o trabalho exerce um papel fundamental na vida do ser humano na relação com a natureza e através das relações, nós, homens e mulheres, transformando as nossas vidas e nossas consciências pelo exercício da criatividade, da inteligência, em magia da utopia, o “lugar” ideal que não é o agora, na concepção grega da palavra.

Bruno Carazza* - Contagem regressiva

Valor Econômico

Duas certezas e uma dúvida a um ano das eleições

Em 2018, Bolsonaro subverteu a lógica das campanhas políticas brasileiras. Sua coligação era composta apenas pelos nanicos PSL e PRTB, e ele não firmou alianças nos Estados. Na distribuição do tempo de propaganda no rádio e na TV, ficou com apenas 8 segundos por bloco, mais 11 inserções diárias de 30 segundos cada - em comparação, Geraldo Alckmin (PSDB) tinha 5 minutos e 32 segundos por bloco, mais 434 comerciais de meio minuto ao dia.

O diretório bolsonarista declarou gastos de R$ 2.456.215,03, vindos essencialmente de financiamento coletivo. Os valores eram muito inferiores aos de seu rival no segundo turno, Fernando Haddad (PT), cujas despesas ficaram em R$ 37.503.104,50, sendo que 95,12% tiveram origem nos fundos eleitoral e partidário.

O trunfo de Bolsonaro não estava na arrecadação, na propaganda gratuita ou nas coligações partidárias, sequer em dobradinhas com lideranças regionais. Em janeiro de 2018, o então candidato já contava com uma rede de 5 milhões de seguidores no Facebook, 800 mil no Instagram e 850 mil no Twitter, além de 400 mil inscritos em seu canal no Youtube - sem falar num contingente incalculável de grupos de WhatsApp e outros aplicativos de mensagens.

Sergio Lamucci - O cenário externo se complica para o Brasil

Valor Econômico

A um ambiente já repleto de incertezas domésticas, soma-se um quadro internacional mais adverso

A expectativa de um crescimento anêmico da economia brasileira em 2022 se baseia especialmente num conjunto de problemas domésticos, como as elevadas incertezas fiscais e políticas, o agravamento da crise hídrica e uma inflação persistente e disseminada, que requer juros cada vez mais altos. A novidade das últimas semanas é que o cenário internacional se tornou mais complicado, uma evidente má notícia para países emergentes como o Brasil.

A principal fonte de indefinição externa agora é a China, que enfrenta as consequências das dificuldades da Evergrande, a gigante do setor imobiliário, e passa por uma crise energética local - aliás, o risco de uma crise de energia de proporções globais aumentou, como se vê na alta dos preços do gás e do petróleo. Além disso, aproxima-se o momento em que o Federal Reserve (Fed, o banco central americano) vai começar a retirada dos estímulos monetários, provavelmente já em novembro.

Há, obviamente, muita indefinição sobre as projeções de crescimento para 2022. No setor privado, há desde estimativas muito baixas, como o 0,4% da MB Associados e o 0,5% do Itaú Unibanco, até previsões entre 1,5% e 2%, como o 1,6% do Bradesco e o 1,8% da Tendências Consultoria Integrada. Mesmo essas projeções um pouco mais elevadas não são animadoras, além de serem consideravelmente menores do que os 2,5% do Ministério da Economia, uma previsão baseada na visão invariavelmente otimista do ministro Paulo Guedes e do secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida. O consenso do mercado para 2022 está em 1,57%, segundo o Boletim Focus do Banco Central (BC). Em 2021, o crescimento deve ficar por volta de 5%, estimam os analistas.

Marcus André Melo* - Groko à brasileira

Folha de S. Paulo

As regras não apenas importam: são decisivas

O UK IP obteve em 2015 12,6% dos votos, mas conquistou apenas uma única cadeira (ou 0,15% do total de 650) no parlamento britânico. No entanto, nas eleições para o parlamento europeu, no mesmo ano, ele foi o partido mais votado, o que lhe garantiu 24 cadeiras e a maior bancada.

Quatro anos mais tarde, o partido mudou o nome —para Brexit Party—, mas sequer obteve uma cadeira. Nas eleições para o parlamento europeu, no mesmo ano, obteve ainda mais votos —31% do total— aumentando o tamanho da bancada para 29: sete vezes o número de cadeiras (4) do Partido Conservador, da então primeira ministra Theresa May.

Celso Rocha de Barros – Duas perguntas a Paulo Guedes

Folha de S. Paulo

Você trabalhava com o gabinete paralelo, com a turma da Prevent Senior?

Paulo Guedes é blindado por boa parte do establishment brasileiro, inclusive pela mídia. O motivo é simples: 100% dos analistas concordam que, se Guedes for demitido, Bolsonaro o substituirá por um jumento cracudo com uniforme da SS.

A blindagem persiste mesmo com os resultados ruins que Guedes acumula. Desemprego e inflação estão altos e a população briga por carcaças na porta dos açougues. Guedes gosta de se gabar porque o PIB brasileiro caiu menos do que o de outros países em 2020, mas isso não é mérito dele. Os pesquisadores do Centro de Pesquisa em Macroeconomia da Desigualdade da Universidade de São Paulo calcularam quanto teria sido a queda do PIB de 2020 se o auxílio emergencial não tivesse sido o proposto pelo Congresso, mas o proposto inicialmente por Guedes. O resultado com o auxílio-Guedes teria sido de -7,9%, bem pior do que os -4,1 % obtidos com o auxílio-Congresso. Dar ao governo Bolsonaro o crédito pelo auxílio do Congresso é como dizer que foi o Jair quem comprou as vacinas do Dória.

Até aí, já tivemos vários ministros da economia que fracassaram. O que eu quero é perguntar duas outras coisas para o ministro Paulo Guedes.

Guedes, você, ou alguém da sua equipe, ajudou o Jair a matar centenas de milhares de brasileiros durante a pandemia? E: Guedes, onde você estava no dia 7 de setembro enquanto o Jair tentava um golpe de Estado?

Luiz Carlos Azedo - A Lava-Jato na eleição

Correio Braziliense / Estado de Minas, 3/10/2021

Mantém-se um quadrante ético na disputa eleitoral. Os demais são a crise sanitária, a economia popular e a questão democrática

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi absolvido em 19 dos 21 processos movidos contra ele pela Operação Lava-Jato, desde a anulação de suas condenações nos casos do triplex de Guarujá e do sítio de Atibaia, em razão de a 13a Vara Federal de Curitiba não ser o “juízo natural” de ambos os processos, na interpretação do ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin — como sempre questionou a defesa, é bom lembrar. No dia 4 de março passado, a maioria da Corte decidiu por 8 a 3 que quatro processos que lá tramitavam teriam que ser refeitos. O STF também considerou o ex-juiz federal Sergio Moro parcial no julgamento.

A condenação de Lula — confirmada em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4a. Região (TRF-4, em Porto Alegre) — o havia excluído da disputa eleitoral de 2018, na qual era favorito, o que abriu caminho para a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, a decisão do Supremo sobre o juiz natural alterou completamente o cenário, fazendo com o ex-presidente Lula voltasse a ser uma alternativa de poder. Na pesquisa Ipespe divulgada quinta-feira passada, por exemplo, Lula é o favorito à Presidência. Aparece com 30% de intenções espontâneas de votos, contra 23% do presidente Bolsonaro; Ciro Gomes (PDT) tem 2%; e os demais, 1% (Sergio Moro, João Doria, João Amoedo e Henrique Mandetta) ou não pontuam.

Antonio Risério* - Esquerda: embate entre democráticos e identitários trava avanço

A raça, o gênero, a identidade se tornaram as bases de uma ideologia nascida nos EUA, que pretende substituir o socialismo em crise, diz Pascal Bruckner

O Estado de S. Paulo /Aliás

Vemos hoje, em plano internacional, a esquerda inteiramente rachada. De uma parte, uma esquerda democrática, universalista. De outra, a chamada esquerda identitária o udi ver sitária, inscrita no multiculturalismo, com sua ânsia de divisórias, pregando “apartheids”e guetificações. E a disputa ideológica entre essas duas esquerdas está deflagrada.

Areação ao identitarismo cresce em países da Europa e nos EUA. No Brasil, ao contrário, a discussão não existe. Temos hoje uma esquerda de costas para o mundo, fugindo dos debates da esquerda internacional. Oque vigora aqu ié a acomodação, compartidos de esquerda evitando confrontos internos, ocupados apena sem aumentar o número de seus militantes, passando ao lar godas questões que possam provocar dissenso.

Raras vezes, causas justas, como as dos identitários, terão se pervertido tanto pelos descaminhos da ignorância e do autoritarismo. Caiu-se numa mescla de ceticismo epistêmico, na teoria, e de delírio persecutório na prática, descambando para o fundamentalismo e o fascismo. Tudo é conspiração contra os “oprimidos”. O poder está em todo lugar–a verdade, em nenhum. E não teremos como construir um futuro coletivo com base na fragmentação e no ne os segregacionismo, que caracterizam o identitarismo, hoje ideologia dominante no “establishment” acadêmico-midiático e em parte do ambiente empresarial.

Recentemente, Alejo Schapire observou que esta esquerda multicultural-identitária teve de dar uma tremenda guinada, para jogar fora o antigo ideário marxista e adis posição democrática, afim de celebrara intolerância, o puritanismo, as ditaduras extra ocidentais, o obscurantismo, o neorracismo de um modo geral. Em O Fim da Utopia, Russell Jacoby já assinalava: “Estamos assistindo não apenas à derrota da esquerda, mas à sua conversão e talvez inversão”.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Um projeto para o País

O Estado de S. Paulo

Mais do que ser anti-Lula ou anti-Bolsonaro, o que faz falta é ter um projeto para o País. Essa é a melhor resposta contra as forças do atraso

Com recorde de desaprovação popular e sem ter o que apresentar como realização de seu governo, Jair Bolsonaro repete, com frequência crescente, o seu mantra: não fosse ele, o PT teria voltado ao poder. Na lógica bolsonarista, o governo não precisa apresentar nenhum resultado. O dever de Bolsonaro na Presidência da República se resumiria apenas e tão somente a manter Lula longe do Palácio do Planalto.

Essa tática, que parece tão resolutamente antipetista, é uma farsa, já que atende perfeitamente aos interesses do PT. A quase completa ausência de resultados do governo Bolsonaro é o cenário dos sonhos de Lula. Não há como negar. O desgoverno de Bolsonaro é caminho muito favorável para Lula voltar ao poder.

Mas o mantra bolsonarista – não fosse Bolsonaro, o PT teria voltado ao poder – tem ainda outra evidente contradição. Nenhum candidato é eleito apenas para ocupar um espaço vazio. Jair Bolsonaro não foi eleito para impedir que Lula, diretamente ou por meio de algum de seus postes, voltasse ao poder. Bolsonaro foi eleito – eis a verdade que o bolsonarismo tenta esconder – para governar.

É acintoso o desconforto de Bolsonaro e de seus apoiadores com essa realidade tão básica: um presidente da República é eleito para governar. Quando confrontados com a ausência de resultados do governo Bolsonaro, seus apoiadores logo revidam com a subespécie do mantra bolsonarista: apesar de tudo, em 2022, no segundo turno com Lula, voto é em Bolsonaro.

Deve-se ressaltar que a manobra também é comum entre os lulistas. Quando confrontados com o legado de corrupção, incompetência e negacionismo do PT, os lulistas logo revidam: mas, num segundo turno entre Lula e Bolsonaro, em quem você vota? E ficam indignados se o interlocutor mostra que o exercício dos direitos políticos numa democracia é necessariamente mais amplo do que essa asfixiante disjuntiva.

Poesia| João Cabral de Melo Neto - Tecendo a Manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Música | Chico Buarque - Voo Cego (do álbum "Aldir Blanc Inédito")

 

domingo, 3 de outubro de 2021

Fernando Henrique Cardoso* - Modernidade e desigualdades

O Globo / O Estado de S. Paulo

Ou fazemos algo para reduzir a pobreza ou continuaremos a ser um país incapaz de entrar na “modernidade”.

Um pouco mais de tempo, em poucos meses, recomeçam as campanhas eleitorais para a Presidência, para a Câmara dos Deputados e para o Senado (em âmbito federal). Já se veem os arreganhos: é um tal de os eventuais candidatos viajarem, de a imprensa falar deles e de alguns seguidores se animarem que já se pode prever que, nesse aspecto, pouco muda.

O povo, por enquanto, continua preocupado com o dia a dia: é o salário que é curto, o emprego que pode faltar (e para muitos já falta), os transportes que custam caro e o ensino cujo custo, quando o pobre não tem a sorte de conseguir uma bolsa ou de ter acesso a uma escola pública, assusta os familiares. Nihil novi sub sole...

É quase sempre assim. Mas também é verdade que em poucos meses a coorte de novas ideias e de esperanças voltará a motivar o eleitorado. E tomara que seja assim: sinal de que a liberdade e a democracia prevalecerão.

Haverá mesmo novos caminhos? Tomara. De qualquer modo, é melhor que haja esperança. E se há uma coisa que persiste em nosso meio, é essa característica. Se a esperança se frustra, é outro problema. Dependerá de conjunturas mundiais, de políticas locais e de que se candidatem pessoas capazes de exercer o poder dando ânimo ao País.

A despeito de tudo, o certo é que, se eu comparar o Rio de Janeiro do começo dos anos 30, quando eu nasci, com o Rio de hoje, para não falar de São Paulo quando vim com a família para cá, nos anos 40, com a cidade de nossos dias, a vida melhorou. Para todos? Talvez não. Mas para a maioria. E olha que eu conheço as favelas do Rio, as casas de cômodos de São Paulo, os bairros mais pobres de Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Conheço como pesquisador da vida dos negros e como político, que precisa de votos.

Mas que ninguém se iluda: por mais que haja melhorado, há diferenças gritantes entre as várias camadas da população. Do campo, então, nem se fale – e isso que conheço mais o Sul e o Centro-Oeste do que o Nordeste e a Amazônia, onde, em geral, a situação da pobreza é pior. Sem falar do cansaço que a vida urbana causa aos mais pobres. O País se urbanizou para valer e o sistema de transporte, por mais que se modernize, não diminui o cansaço dos que entram nas filas de espera, nem mesmo o tempo que se consome nos longos trajetos de casa ao trabalho.

Paulo Fábio Dantas Neto* - Gestos políticos e atos democráticos: contraste com os mil crimes de cada dia

Ainda não há número razoável de pesquisas para captar com segurança algum virtual efeito sobre a avaliação de imagem e sobre o nível de rejeição de Jair Bolsonaro que possa ter havido a partir de 9 de setembro, o dia da carta em que recuou da escalada golpista que culminara nos atos do dia 7. Seguiu-se uma distensão na sua atitude, o que levou parte dos analistas a supor que ele chamaria de volta à cena o Bolsonaro 2, mais contido e razoável. Afinal, era a conduta racional óbvia a seguir, diante da queda livre nos seus índices de popularidade e do isolamento político em que se metera. Amigos de fato (se é que os tem) devem ter lhe dito que valia, ao menos, testar a inflexão, para tentar reverter o desastre.

Parece que não haverá tempo para captar coisa alguma. A tal distensão logo se converteu em campanha eleitoral aberta (que em si mesma já é um delito), cenário propício para Bolsonaro voltar a ser o Bolsonaro de quase sempre. Tendo os mil dias como pretexto inicial, as usinas de fakenews voltaram a operar intensamente, elegendo alvos habituais de combate.  Comunismo, homossexuais, a China e - é claro - Lula e o PT voltaram a ser temas privilegiados de suas taras retóricas, que são a base “conceitual” das fakenews.

Poupo os leitores de previsões sobre efeitos dessa recaída em índices de pesquisa. É preciso notar, por outro lado que, pela enésima vez, se revela o lugar que eleições ocupam na escala de prioridades de Bolsonaro. Lugar complexo, que é de prioridade no seu texto, mas no subtexto a prioridade é o movimento contra elas, para esterilizá-las, se possível ensanguentá-las e, no limite, cancelá-las. A cada dia é menos crível que tenha sucesso, mas ele segue nessa toada, como é da sua natureza. Se sucumbir, apesar de sua vontade indômita, ou por causa dela, quer levar muitos consigo, se possível a humanidade toda.

Merval Pereira - Comunismo em xeque

O Globo

O anúncio do governo de Cuba de que empresas privadas poderão operar na ilha, no que chamam de “atualização do socialismo”, traz de volta o debate sobre modelos de governo totalitários que tendem a adotar, na visão ocidental, um “capitalismo de Estado”. A Constituição de Cuba já diz que o socialismo é regime político “irrevogável”, o que representou uma mudança importante, pois anteriormente o socialismo era apenas uma etapa para o comunismo.

Também na China, embora, ao comemorar o centenário do Partido Comunista Chinês, seu Secretário-Geral e presidente da República Popular da China Xi Jinping tenha reforçado uma visão marxista, não há mais referência ao comunismo, o socialismo ganhando dimensão, mesmo à moda chinesa. A revista "Qiushi", veículo teórico do Partido Comunista da China, publicou sexta-feira artigo de Xi Jinping em que pede que o marxismo seja compreendido e praticado, reforçando assim a confiança no caminho socialista.

Ele já havia ressaltado, na abertura das comemorações do centenário do PCCh, o papel central que o partido ocupa na sociedade chinesa. "Dediquem tudo, até mesmo suas preciosas vidas, ao partido e ao povo". Éric Li, cientista social e empreendedor de risco na China, define bem: “China tem muitos problemas, mas o sistema chinês estado-partido tem provado a todos uma extraordinária habilidade em mudar. Na América, você pode mudar de partido político, mas não pode mudar a maneira política de ele agir. Já na China, você não pode mudar o partido, mas pode mudar a maneira política de ele atuar”.

Míriam Leitão - Um governo sem remédio

O Globo

A inflação está de volta aos dois dígitos com seu efeito devastador sobre os mais pobres, num momento em que há um forte aumento da pobreza. Isso deveria estar no centro das atenções do governo, mas o presidente está ocupado em fazer campanha antecipada, em jogar a culpa dos problemas sobre os governadores. O Ministério da Economia não conseguiu formular uma boa proposta de combate à inflação, de redução da pobreza, e está num jogo de faz de conta fiscal.

Faz de conta que o teto de gastos está sendo respeitado, faz de conta que a Lei de Responsabilidade Fiscal está sendo obedecida. O teto fica onde está, mas muitas despesas vão sendo depositadas sobre ele. E quanto mais despesas sobem, mais fictícia se torna essa trava fiscal. A ideia de financiar um novo programa social com receitas ainda a serem criadas é delirante. E sim, fere a LRF. O secretário especial de Fazenda, Bruno Funchal, diz que se o projeto do Imposto de Renda não for aprovado não haverá o novo programa. Isso é de tranquilizar, por um lado, mas não resolve a outra questão. Há necessidade de mais dinheiro para as transferências de renda. E isso é necessário porque os pobres ficaram mais pobres, e há mais pobres no país.

Elio Gaspari - Quem protegeu a Prevent?

O Globo / Folha de S. Paulo

Na quarta-feira deverá comparecer à CPI da Covid o doutor Paulo Roberto Vanderlei Rebello Filho, diretor-presidente da Agência Nacional de Saúde (ANS). Ele poderá contar o que fez diante das denúncias do comportamento da Prevent Senior durante a pandemia. A primeira suspeita de que havia fogo debaixo daquela fumaça veio do próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em abril de 2020, quando ela tinha no acervo 58% dos mortos de São Paulo. O dono da operadora chamou-o de “irresponsável” e, pelo que se viu, colocou sua empresa debaixo da asa do Planalto, maquiando mortes, empurrando cloroquina e ameaçando médicos com retórica de miliciano.

O que a ANS fez? A autossatanização da Prevent tem no seu bojo uma competição empresarial, e a Agência a conhece muito bem. Nesse mercado há de tudo: portas giratórias, capilés e jabutis em medidas provisórias. A Justiça guarda pelo menos duas delações premiadas de uma empresa corretora de planos que concordou em pagar R$ 200 milhões de multa.

Dorrit Harazim - A força da palavra

O Globo

 ‘Vocês nada fizeram de errado, mas ainda assim foram gravemente injustiçados. Eu peço desculpas e lamento profundamente que este pedido de desculpas tenha tardado tanto.’ A frase faz parte de uma histórica penitência por parte de um presidente dos Estados Unidos — no caso, o democrata Bill Clinton em 1997. Clinton se dirigia a um grupo específico que convidara à Casa Branca — sobreviventes e familiares de um experimento médico com humanos realizado 65 anos antes pelo Departamento de Saúde Pública do país.

À época (1932), a sífilis corria solta entre negros de um condado do estado do Alabama. Acenando com tratamento gratuito, uma equipe do governo havia aliciado 399 homens, todos filhos ou netos de escravizados, para ser tratados por sintomas de “sangue ruim”. Jamais foram informados de tratar-se de sífilis, doença sexualmente transmissível. Outros 201, também negros, porém sadios, integraram o grupo de controle do estudo.