terça-feira, 19 de abril de 2022

Opinião do dia - Renan Calheiros*: Escória

O deboche inumano do vice-presidente Mourão com os que foram torturados na ditadura dá a exata dimensão da escória que chegou ao poder com Bolsonaro.”

*Renan Calheiros, Senador (MDB-AL), O Globo, 19.4.22

Daniela Chiaretti: O eleitor e o clima: um enigma das urnas

Valor Econômico

Por quais razões o brasileiro é dos que mais acreditam na mudança do clima mas não votam nesta agenda?

O sexto relatório sobre a ciência do clima, os impactos da mudança climática e os esforços de adaptação necessários divulgado em três pedaços nos últimos seis meses pelos cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, o IPCC, veio recheado de dados contundentes, cenas do presente e previsões para um futuro muito próximo mais assustadores do que o de filmes-catástrofes. O brasileiro, por surpreendente que pareça, é dos povos no planeta que mais acredita que a mudança do clima existe, é provocada pelo homem, está acontecendo e pode piorar. A maioria esmagadora -94%- pensa assim, principalmente mulheres. Isso em uma população em que 7% acredita que a terra é plana, segundo pesquisa Datafolha de 2019 e onde um em cada quatro acha que não, imagine, o homem nunca foi à Lua.

Mas então, se os brasileiros falam sério quando dizem entender como poucos o potencial devastador da mudança do clima, por qual bizarrice elegem governantes que desmontam a agenda ambiental como poucos e deixam que a Amazônia queime como ninguém? Como pensam eleitores que sabem que há um iceberg à frente, percebem que o navio está indo velozmente contra ele e deixam o barco afundar sem fazer nada?

Andrea Jubé: PSB cobra mais ‘centro’ na frente Lula-Alckmin

Valor Econômico

Após a reunião com as centrais sindicais, na quinta-feira, em que o ex-governador Geraldo Alckmin gritou um entusiasmado “viva Lula, viva os trabalhadoooores do Brasil”, o ex-tucano e seu futuro companheiro de chapa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vão reaparecer juntos no Congresso Nacional do PSB, em Brasília. Ambos são aguardados para a abertura do evento, no dia 28.

Será a terceira aparição da dupla em público, desde o início dos ritos para sacramentar o inesperado enlace. O registro oficial da chapa, entretanto, somente ocorrerá após as convenções partidárias entre julho e agosto. A primeira fotografia, criticada pela falta de diversidade (ausência das minorias), remonta a 8 de abril, quando as cúpulas de PT e PSB celebraram o noivado político.

O segundo ato público entre Lula e Alckmin foi no dia 13, no evento com sindicalistas, quando o neo-pessebista chamou o petista de “maior líder popular deste país”. Na véspera, o diretório nacional do PT havia aprovado a indicação do ex-tucano para compor a chapa como vice de Lula por 68 votos a favor e 16 contrários.

O Congresso Nacional do PSB ocorrerá entre os dias 28 e 30 de abril, quando a atual Executiva Nacional será reconduzida para um novo mandato e será votada a “autorreforma” programática da legenda.

O presidente do PSB, Carlos Siqueira, que será reeleito, adiantou à coluna que haverá vagas na nova direção para as lideranças que acabaram de chegar ao PSB.

Além de Alckmin, os deputados Marcelo Freixo (RJ) e Tabata Amaral (SP) e o ex-governador do Maranhão Flávio Dino ganharão assento no diretório nacional. “Precisamos incluir as novas lideranças que ingressaram no partido, que são muito representativas”, explicou Siqueira. “É um rearranjo da direção, para que ela possa expressar as novas do partido”.

Hélio Schwartsman: Epidemia mostrou que Bolsonaro é leviano demais para governar

Folha de S. Paulo

Presidente militou pessoal e insistentemente contra as vacinas

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou o fim da emergência sanitária da Covid-19 no Brasil.

Do ponto de vista comportamental, ele está atrasado. Faz semanas que a maior parte da população já age como se a doença não existisse mais. Do ponto de vista da gestão, a decisão é precipitada, já que há uma série de medidas, como a utilização da Coronavac, que dependem da declaração de emergência para ocorrer legalmente. E do ponto de vista do vírus, o Ministério da Saúde é irrelevante.

Independentemente do que faça ou diga Queiroga, o Sars-CoV-2 continuará evoluindo segundo os caprichos da seleção natural, podendo ou não produzir uma linhagem que volte a nos devastar.

O ministro, porém, é pau-mandado de Jair Bolsonaro, que está doido para deixar a epidemia para trás. Foi por isso, não por razões médicas, que ele decretou o fim da emergência. Não se deve ser ingênuo a ponto de acreditar que a política não influa nesse tipo de decisão. João Doria, dias antes de deixar o governo de São Paulo, também deu seu showzinho, anunciando o fim da exigência de máscaras em ambientes internos. A medida, embora não configure uma roleta russa, estava longe de ser consenso entre os especialistas....

Alvaro Costa e Silva: A bancada do golpe

Folha de S. Paulo

O fato de golpistas assumidos pedirem votos não é paradoxo, é retrato do Brasil

"Há males que vêm pra pior." Lembrei a frase de Millôr Fernandes (aliás, o que o guru do Méier diria sobre o abismo em que nos metemos?) ao descobrir que, além das bancadas da bala, do boi e da Bíblia, prepara-se uma nova para povoar o Congresso: a dos alvos do STF, ou, simplificando, a bancada do golpe. O fato de golpistas assumidos pedirem votos à população não é um paradoxo, é o retrato do Brasil.

Com a cara de pau que Bolsonaro lhes deu, vão se candidatar, entre outros, Zé Trovão, que incentivou caminhoneiros a fechar as estradas do país no golpe fracassado de 7 de setembro; Roberto Jefferson, veterano do mensalão; Otávio Fakhoury, empresário que financia mentiras na rede. O ferrabrás Daniel Silveira aguarda o julgamento na corte para saber se poderá concorrer ao Senado. Vale até revelar podres do ex-chefe, como faz Abraham Weintraub, que mira alto: o governo de São Paulo.

Cristina Serra: Odorico Paraguaçu e o Viagra de nossos desapetrechados militares

Folha de S. Paulo

Sucupira foi a profecia do que viria a ser o Brasil sob Bolsonaro

Exibida 50 anos atrás, a novela "O Bem-Amado", do dramaturgo Dias Gomes, guarda desconcertante correspondência com o Brasil atual. Na pele do excepcional Paulo Gracindo, o prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, encarnava a síntese do que hoje se chama necropolítica, quando essa palavra talvez nem existisse.

A única obra do prefeito é um cemitério, e ele trama o tempo todo a morte de algum cidadão para inaugurá-lo. Odorico manda até roubar vacinas que poderiam evitar uma epidemia. É quase uma profecia do que viria a ser o Brasil sob Bolsonaro.

Dias Gomes nos faz refletir sobre um país violento e autoritário por meio de muitos outros personagens. Tem o empresário que estupra por "diversão" e os playboys que, por "curtição", tocam fogo num homem que dormia na rua.

Eliane Cantanhêde: A ‘incubadora’

O Estado de S. Paulo

‘Meninos’ de Ciro Nogueira, do PP, e de Valdemar Costa Neto, do PL, no governo

Pelo visto, o senador e atual chefe da Casa Civil do governo Jair Bolsonaro, Ciro Nogueira, mantém nos seus gabinetes, desde o Senado, uma incubadora de meninos e meninas que vêm a ocupar cargos no Executivo onde rola muito dinheiro.

Eles passam um tempo lá, atravessam a Praça dos Três Poderes e vão progredindo na vida, executando no governo tudo o que aprenderam no Congresso. O problema é a imprensa.

José Roberto Batochio*: O sol e a República

O Estado de S. Paulo

A coisa pública tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema hoje parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é ocultar.

A boa e velha sabedoria da Roma Antiga, farol civilizatório do mundo a partir do século VII a.C., entronizou em seu panteão a deusa Justiça como réplica latina da helênica Dice, com uma diferença que se afirmaria como ícone para a posteridade: a simbolizar a imparcialidade, permanecia a divindade de olhos vendados, a tornar claro que não importava quem se estava a julgar. A mensagem era clara: todos são iguais perante a lei. No entanto, a Justiça deveria, ela mesma, estar sempre iluminada pela luz do sol, escrutinada pelos cidadãos e isenta de segredos e decisões cabulosas tomadas nas sombras do hermetismo.

A regra da transparência atravessou os séculos e enraizou-se nos atos e ritos dos assuntos de Estado, passíveis de documentação para conferência dos órgãos controladores e do povo. O Brasil é um dos países com maior incidência solar no planeta, mas a claridade exigida dos atos relativos à res publica, a coisa pública, tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema dos dias que correm parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é ocultar. Por isso que aos cidadãos têm sido sonegadas as mais ínfimas informações acerca de decisões relativas a temas que, por natureza, são públicos e só excepcionalmente, em atenção à defesa do Estado, devem ser resguardados em sigilo, e apenas por um período que seja razoável.

Nestes tempos estranhos em que são frequentes ações voltadas a nublar a luz do sol, até o Legislativo, o mais transparente dos Poderes, engendrou um “orçamento secreto” que oculta o nome de parlamentares beneficiados em 2020 e 2021 pelas chamadas emendas de relator – mecanismo esotérico pelo qual milhões de reais dos cofres públicos são destinados a obras e serviços sem que se saiba qual parlamentar se beneficia da transferência em troca de apoio ao Executivo.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira*: Sem amá-lo não teremos o Brasil dos nossos sonhos

O Estado de S. Paulo

É necessário que reconheçamos as nossas virtudes e as nossas mazelas, mas sem nos considerarmos inferiores.

Chegou a hora e não podemos permitir que se torne uma hora tardia. O ano eleitoral nos possibilita uma análise de quem somos, de quem fomos e do que queremos ser. O escopo deste escrito não é fazer apologia de algum candidato. Seu objetivo é tecer algumas considerações sobre a imperiosa necessidade de adquirirmos ou readquirirmos autoestima como povo e como nação. Sem amor ao País e crença nas potencialidades do homem brasileiro, dificilmente construiremos a pátria que desejamos.

Este é momento propício para fazermos uma revisão do que pensamos de nós e para indagar do que somos capazes. O momento é crucial, pois nunca o Brasil precisou tanto da sua sociedade como agora. A partir da aquisição de estima, conhecimento e confiança em nós mesmos, temos de nos mostrar aptos a enfrentar nossos problemas e deixar de atribuir ao Estado e às elites responsabilidades exclusivas. O povo já está mostrando ser mais generoso e solidário do que as elites, fato que o credencia para assumir questões que o afligem e são ignoradas por quem não as sente.

Luiz Carlos Azedo: Áudios rompem o silêncio militar sobre torturas

Correio Braziliense

A tortura e a eliminação física de oposicionistas foram uma política de Estado, denunciada por suas vítimas e advogados nos tribunais. Não eram divulgadas pela imprensa porque havia censura

Questionado sobre os áudios divulgados pela jornalista Míriam Leitão em sua coluna no jornal O Globo, que mostram sessões do Superior Tribunal Militar (STM) na época do governo ditatorial, nas quais os ministros generais que integravam o órgão falam sobre torturas, o vice-presidente Hamilton Mourão respondeu: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. (risos). Vai trazer os caras do túmulo de volta?”

General da reserva, Mourão traduziu uma espécie de senso comum entre os militares: o silêncio das Forças Armadas em relação à questão das torturas, dos assassinatos e dos desaparecimentos de oposicionistas durante o regime militar. Colocou-se uma pedra sobre esse assunto. As Forças Armadas se recusam a revisitá-lo publicamente, com um olhar autocrítico e democrático, como ocorreu em outros países.

Essa atitude é legitimada pelo pacto de aprovação da “anistia recíproca”, pelo Congresso, em 1979. O acordo entre o governo militar e a oposição, que beneficiou “subversivos” e torturadores, é um assunto sacramentado, também, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Àquela época, a anistia foi um efetivo avanço em direção à democracia, pois possibilitou a libertação de presos políticos e a volta dos políticos exilados. Entretanto, enfrentou reações dos “porões” do antigo regime militar, inclusive por meio de atentados à bomba, entre os quais o do Rio Centro, que fracassou.

Merval Pereira: Nunca mais

O Globo

A tentativa de negar, ou mesmo de naturalizar,  as torturas cometidas por militares durante a ditadura acaba de cair por terra com a revelação, pela colunista Miriam Leitão, de áudios de ministros do Superior Tribunal Militar (STM) discutindo, durante sessões secretas, denúncias de presos políticos.

A Comissão Nacional da Verdade, convocada no governo Dilma, já havia revelado que a tortura era um instrumento do Estado no combate aos guerrilheiros de esquerda, e o dossiê “Tortura Nunca Mais” elencado os nomes de centenas de torturadores, muitos deles militares, com base em depoimentos de presos políticos.

O Estado brasileiro, durante o governo Fernando Henrique, assumiu a reparação dos prejuízos físicos e sociais sofridos durante a ditadura militar, indenizando as vítimas de abusos nos governos militares.

Agora, há áudios de ministros militares revelando que o assunto foi tratado com leniência pelas Forças Armadas, numa visão deformada de que defender torturadores as preservaria. A ironia do vice-presidente General Hamilton Mourão sobre o caso é uma demonstração de que essa atitude continua até hoje.

Carlos Andreazza: Governo Braga Costa Net(t)o

O Globo

Não há corrupção. Há fotos apagadas e ataques à Lei de Acesso à Informação pela sociedade firmada entre o governo militar de Bolsonaro e o consórcio arthur-nogueira-neto.

Não há corrupção. Pode haver ruído circunstancial no arranjo societário. Nada que não se ajeite. Os pastores do MEC estiveram abençoados com franjas do FNDE; até se exibirem. Daí o alarido. Já silenciado. Não há corrupção. Há pano rápido.

O governo honesto é corporativista, como corporativista é a gestão eleitoreira do Orçamento. Ciro Nogueira, o verdadeiro Guedes, sabe distribuir. Sócios também os fardados, a materialização — ainda que com Viagra, em último caso com próteses penianas — do ímpeto patrimonialista do Planalto. O pulo do gato está na reserva.

Não há corrupção. Há filtros: gabinetes paralelos e sigilo. Não existirá mesmo corrupção num governo que se limpa entre a multiplicação de estruturas influentes informais e a decretação de segredos centenários, processo tocado por um gabinete formal, o de Segurança Institucional, a serviço do universo em que Bolsonaro e seus barros são probos.

Míriam Leitão: A verdade histórica que tentam sepultar

O Globo

Não será possível trazer ninguém do túmulo. Nem vítimas, nem torturadores, nem mesmo os confusos ministros do Superior Tribunal Militar (STM). Mas é possível reafirmar os fatos históricos que têm sido negados pelo presidente da República, pelo vice-presidente, pelo Ministério da Defesa em suas notas de comemoração da ditadura, pelos generais de pijama dos quais Jair Bolsonaro se cercou. A ironia desrespeitosa com que o general Hamilton Mourão reagiu ontem à pergunta sobre os áudios do STM confirma a relevância do trabalho dos historiadores, como Carlos Fico, de resgate destas vozes do passado.

As vozes mostravam que o Superior Tribunal Militar sabia das “torturas e sevícias mais requintadas”, como disse o general Rodrigo Octávio, ou do “cancro” que havia se formado dentro do aparelho de repressão, para usar a palavra do brigadeiro Julio de Sá Bierrenbach. O general Augusto Fragoso se disse “constrangido” quando ouvia falar de “Doi-Codi, Doi-Codi, Doi-Codi”.

Os generais, brigadeiros e almirantes, os juízes togados que se sentavam naquele tribunal durante a segunda metade dos anos 1970 estavam julgando os casos que haviam acontecido na primeira metade, exatamente os anos que se seguiram ao Ato Institucional número 5. Foi o pior momento. Quando a máquina de tortura, morte e ocultação de cadáveres estava no seu auge. Estava também no auge, naquele começo dos anos 1970, o crescimento econômico. O milagre foi excludente, concentrador, e precisou de repressão política brutal. Estranho milagre.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Tortura deve ser sempre condenada

O Globo

Países que teimam em não aprender com o passado correm riscos sérios no futuro. É esse o recado dos áudios inéditos de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) entre 1975 e 1985, revelados pelo historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e publicados pela colunista do GLOBO Míriam Leitão. Está lá, de forma inequívoca, a prova de que ministros da Corte sabiam da prática de tortura. Os áudios trazem à luz, mais uma vez, evidências das atrocidades cometidas nos porões do regime militar.

É missão intransferível da sociedade brasileira lembrar e denunciar os crimes contra a humanidade cometidos pelos agentes do Estado. Igualmente importante, é dever de todo cidadão atentar para como reagem as figuras públicas a essas revelações. Quem apoia os torturadores do passado ou faz pouco-caso das vítimas é contrário à dignidade humana. Não há meio-termo.

É comum ouvir no meio militar que a análise da ditadura costuma ser enviesada, por ignorar os crimes da luta armada ou as intenções autoritárias dos movimentos de esquerda. Foi essa a essência das críticas feitas por alguns militares ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade, convocada em 2012 para historiar os abusos. Mas, por mais que a guerrilha tenha cometido crimes, isso em nada muda os que foram responsabilidade do Estado brasileiro. É inadmissível usar aqueles como argumento para justificar a tortura e a morte de militantes de esquerda por agentes da ditadura. Não se trata tampouco de contestar a Lei da Anistia, sancionada em 1979 e confirmada pelo Supremo Tribunal Federal em 2010.

Poesia | Bertold Brecht: É preciso agir

 

Música | João Nogueira: Baile no Elite

 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Opinião do dia - Hannah Arendt: revolução e política

“Em caso de revolução, o fim pode ser a destruição, ou mesmo restauração, da velha ordem política ou a construção de uma nova. Esses fins não são o mesmo que objetivos, que é o que a ação política sempre busca: os objetivos da política nunca são mais do que diretrizes e diretivas pelas quais nos orientamos e que, como tais, não são inflexíveis, dado que as condições de sua concretização mudam constantemente por lidarmos com outros indivíduos que têm seus próprios objetivos.”

*Hannah Arendt (1906-1975), “A promessa da política”, p. 256. Difel, Rio de Janeiro, 2008.

Marcus André Melo*: Polarização e falsas simetrias

Folha de S. Paulo

Divergências programáticas não importam quando a polarização tem base afetiva

A polarização volta a ocupar lugar de destaque no debate público, mas este tem sido marcado por um claro equívoco. A polarização não se define por divergências programáticas —por dissenso em torno de políticas públicas —e sim por intensa animosidade em relação aos rivais na arena política. Ela não é fundamentalmente programática, mas afetiva.

Há um outro problema no debate: a suposição de que as preferências políticas estejam distribuídas ao longo de uma única dimensão, na qual se pode identificar posições extremas ou de centro. Falar de "falsa simetria", por exemplo, é ignorar que polarização e preferências de políticas públicas são questões distintas. As evidências são robustas de que a polarização atual nos EUA e em outros países tem se acentuado sem que a divergência no eleitorado sobre políticas públicas tenha se intensificado. Há casos em que o contrário ocorreu.

Na realidade, as preferências são multidimensionais, e isso tem se exacerbado. Como caracterizar o primeiro-ministro da Irlanda, Leo Varadkar, que é radicalmente pró-mercado e ecofriendly; abertamente gay e a favor da imigração (o que é consistente com sua ascendência indiana). Ou seu partido, Fine Gael, que faz parte do EPP, grupo conservador do Parlamento Europeu do qual fazem parte o Partido Popular espanhol, Os Republicanos na França e a Forza Italia, o partido de Berlusconi? Não se trata de exemplo isolado, pelo contrário.

Carlos Pereira*: O enfarte das alternativas à polarização

O Estado de S. Paulo

Risco de eleger uma bancada menor de deputados reduz incentivos de lançar candidato a presidente

fundo eleitoral restringiu o apetite dos partidos para lançar candidatos à Presidência. A despeito dos valores vultosos (R$ 4,9 bilhões) reservados aos partidos, os recursos de campanha para presidente, paradoxalmente, ficaram escassos. 

O fundão tornou a campanha presidencial ainda mais cara. Antes, o partido que tinha um candidato à Presidência podia captar recursos de empresas. Agora não mais. Os partidos têm que disputar recursos com as outras candidaturas, inflacionando o jogo. Quem não tem candidato à Presidência tem uma clara vantagem.

Quanto mais recursos forem alocados para candidatos à Presidência, menos estarão disponíveis para outros cargos eletivos, especialmente para o Legislativo federal que, em última instância, é o que vai definir o quinhão de recursos a que cada partido terá direito no próximo ciclo. Esse talvez tenha sido o efeito perverso não antecipado do fundo público de campanha. 

Cristiano Romero: A fragilidade da “Terceira Via”

Valor Econômico, 14.4.22

Aliança com PSDB sempre interessou a Lula

Tudo indica que, ao conseguir a proeza de compor chapa com o ex-tucano Geraldo Alckmin, agora filiado ao PSB, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tinha em mente cumprir três objetivos, todos, evidentemente, destinados a tornar mais competitiva sua candidatura à Presidência da República:

1. Unir, finalmente, as duas maiores forças da social-democracia no Brasil, no momento em que a disputa de poder que caracterizou a relação entre PT e PSDB, desde a eleição de 1994, perdeu o sentido e, dos líderes que travaram essa batalha, apenas ele, Lula, tem neste momento chances reais de voltar a subir a rampa do Palácio do Planalto;

2. Convencer as elites empresariais e financeiras de que, com Alckmin vice-presidente, ex-representante da ala mais conservadora do PSDB, seu possível terceiro mandato será mais parecido com o que foi o primeiro termo no cargo, entre 2003 e 2006, do que foi o pesadelo da gestão petista de Dilma Rousseff;

Bruno Carazza*: A disputa pelo Nordeste vermelho

Valor Econômico

Bolsonaro investe contra o domínio da esquerda na região

O cantor Luiz Gonzaga foi uma figura politicamente controversa. Um dos artistas mais populares do país ao longo de seis décadas de carreira, ele emprestou seu prestígio para impulsionar a popularidade de políticos como Getúlio Vargas, JK e Jânio Quadros (para quem gravou um jingle de campanha, cujo slogan era “Depois de JK só serve JQ”).

Em declínio depois da explosão da bossa nova, Gonzagão foi subserviente aos governos militares. No início dos anos 1980, porém, após a reconciliação com o filho Gonzaguinha, realizaram shows Brasil afora pelo fim da ditadura e a anistia política. Aliás, pouca gente se lembra, mas o atentado do Riocentro, ataque terrorista executado por setores do Exército (que teve como um dos acusados pelo seu planejamento o general Newton Cruz, falecido na última sexta-feira), aconteceu numa apresentação de dezenas de artistas da MPB em homenagem justamente a Gonzagão.

Apesar da falta de coerência política, o Rei do Baião se manteve fiel ao longo de sua carreira ao povo do Nordeste, cantando também em forrós, xotes e xaxados a riqueza cultural e denunciando as agruras da vida na região.

Celso Rocha de Barros: Há cristãos de esquerda, bispo

Folha de S. Paulo

Quem diz que é impossível ser cristão de esquerda é porque virou político de direita

Em janeiro deste ano, o jornal da Igreja Universal do Reino de Deus publicou um artigo defendendo que um cristão não pode ser de esquerda. Eu sou católico e de esquerda. Não sei se Roma ou a Internacional Socialista protestariam muito se eu fosse embora, mas continuo aqui.

Por isso, demonstro a seguir que o artigo da Universal está errado.

O cristianismo não se adapta perfeitamente a nenhum programa político e é parcialmente compatível com a maioria deles. A questão de que partido político defende melhor os valores cristãos está sempre em aberto, a resposta é quase sempre "depende do valor, depende da época", e às vezes é "nenhum".

O artigo da Universal ataca a esquerda por apoiar ditaduras que perseguem cristãos, o que é correto. Mas não se pronuncia sobre o governo de Jair Bolsonaro, apoiado pela Universal, que é aliado da ditadura da Arábia Saudita. Bispo Macedo, conte pra gente, por que não há Igreja Universal em Riad?

Gustavo Loyola*: O desafio da inflação

Valor Econômico

Deixar a inflação correr solta não é uma solução, até porque são justamente os mais pobres que pagam a conta do descontrole inflacionário

Os mais recentes números divulgados da inflação nas principais economias desenvolvidas trazem novos desafios à economia global, ainda sofrendo os efeitos da “covid longa” e atingida mais recentemente pelas consequências da invasão russa à Ucrânia. O risco de estagflação voltou ao radar em muitos países, principalmente naqueles que podem sofrer mais diretamente de uma possível disrupção do fornecimento de petróleo e gás por parte da Rússia. Mesmo nos Estados Unidos, há analistas, como Larry Summers, que estimam como elevadas as chances de recessão nos próximos dois anos, a contar com a experiência histórica de situações em que o desemprego esteve abaixo de 5% e a inflação acima de 4%.

Aqui no Brasil, os riscos não são distintos. As previsões de crescimento do PIB são no mínimo desencorajadoras e as expectativas de inflação têm sido continuadamente revisadas para cima, em razão dos números divulgados relativos aos três primeiros meses de 2022. O próprio Banco Central, nas palavras de seu presidente, foi surpreendido pela aceleração do IPCA em março, o pior resultado para o mês desde a implantação do Plano Real em 1994.

Ana Cristina Rosa: A Páscoa da sardinha

Folha de S. Paulo

Com o preço salgado do bacalhau, famílias tiveram de se adaptar

Com um índice de inflação tão galopante que conseguiu surpreender até o presidente do Banco Central, o país viveu uma espécie de transmutação dos peixes nesta Semana Santa e o bacalhau virou sardinha na mesa de muito brasileiro.

Com o quilo do pescado mais salgado do que o habitual, para uma parte da população que desfruta do direito constitucional à alimentação e têm comida na mesa todo dia o jeito foi adaptar a tradição cristã herdada dos colonizadores portugueses. Assim, pratos à base de bacalhau, típicos desta época, foram trocados por receitas com pescados menos nobres e muito mais baratos.

Nesse páreo, a sardinha deu "de marinada". Velha conhecida e grande aliada de quem está acostumado a apertar o cinto e a fazer ginástica no mercado, o peixe estava entre os mais em conta. Não à toa foi um campeão de vendas nesse feriado.

Sergio Lamucci: O peso da inflação e do desemprego na eleição

Valor Econômico

Com a expectativa de recuo vagaroso da inflação e do desemprego nos próximos meses, a percepção sobre a situação econômica do país deve se manter negativa

O comportamento da inflação e a evolução do mercado de trabalho deverão ter um grande peso na eleição deste ano, como costuma ocorrer em todos os pleitos presidenciais. Com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) subindo mais de 11% em 12 meses e uma taxa de desemprego acima de 11%, a economia é hoje o grande calcanhar de aquiles do presidente Jair Bolsonaro, num cenário em que o pior da pandemia, tudo indica, ficou para trás, deixando em segundo plano a gestão desastrosa da crise sanitária pelo governo.

Para tentar contrabalançar o quadro negativo na economia, a administração de Bolsonaro aposta em medidas como o aumento do valor do Auxílio Brasil para R$ 400, a liberação de R$ 1 mil das contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), um pacote de crédito para a população de baixa e a antecipação do 13º para aposentados. São iniciativas que podem dar algum alívio, mas não devem ser suficientes para compensar a situação econômica delicada. A combinação de inflação alta e mercado de trabalho fraco tende a se manter ao longo do ano, afetando a popularidade de Bolsonaro. O IPCA deve fechar o ano em um dígito, mas ainda num nível alto, na casa de 7,5% a 8%, muito acima da meta perseguida pelo Banco Central em 2022, de 3,5%. O desemprego deve cair um pouco, mas tende a seguir acima de 10%.

Fernando Gabeira: Brasília está mais truculenta

O Globo

De novo em Brasília, pois fiz uma viagem pelo Amazonas, e faltou ouvir os índios. Alguns líderes estão reunidos em Brasília.

Esta passagem é diferente das outras. Sempre falava com o fotógrafo Orlando Brito, ao chegar. Ele me mantinha informado de tudo o que se passa por aqui.

A cidade para mim nunca mais será a mesma sem Brito. Somos jornalistas de velha geração, dinossauros transitando pelas quadras do plano-piloto.

Quando mudava o governo, vinha aqui fazer matéria sobre a nova Corte, o grupo de vitoriosos que se instala em Brasília, com seus costumes, preferências culinárias, suas estranhas figuras.

Brito era meu cicerone. Às vezes, me transmitia a psicologia do presidente. Sensível, a cada manhã, intuía o humor do homem ou da mulher mais poderosa do Brasil:

— O Bolsonaro está maluco. Usou o helicóptero para ir do Alvorada ao Planalto.

Essas histórias, como aquela confissão de Bolsonaro de que sua vida era uma desgraça, a nostalgia pelo caldo de cana— tudo isso, soube antes de sair nos jornais.

Ainda tenho uma dezena de amigos no Congresso. Mas o clima é desolador. Na verdade, o poder tenta resolver as eleições de Brasília. A união do Centrão com Bolsonaro é poderosa porque canaliza muito dinheiro para que continuem mandando no país. E não é só o auxílio emergencial, mas sobretudo o orçamento secreto.

Maria Isabel Couto*: Risco de a bala comer solta

O Globo

Cerca de três armas de fogo de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) se perdem por dia no Brasil. Entre elas estão fuzis, que podem disparar até 600 balas por minuto e têm um alcance de 800 metros. São centenas de armas que vão para a rua sem controle e que têm o poder de destruir famílias.

Esse risco pode ficar ainda maior. Está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado o Projeto de Lei 3.723/2019, o PL da Bala Solta. O projeto, se aprovado, ampliará a quantidade de armas permitidas para CACs, facilitará o porte para milhares de pessoas e acabará com as marcações nos projéteis disparados por pistolas, fuzis e outros armamentos. Atualmente, essas marcações são essenciais para fiscalizar o desvio de munições e elucidar homicídios.

Tomemos os exemplos dos assassinatos de Patrícia Acioli, em 2011, Marielle Franco e Anderson Gomes, em 2018. Nesses crimes, o rastreamento da munição foi essencial. No caso Marielle, cuja investigação, vergonhosamente, ainda não foi concluída, policiais descobriram que as balas inicialmente pertenciam a um lote da Polícia Federal e foram parar nas mãos de assassinos de aluguel. Os mandantes ainda não foram identificados, mas os responsáveis pelos tiros, sim. As balas que mataram Patrícia levaram a investigação até um batalhão de Polícia Militar para onde aquele lote de munição havia sido distribuído legalmente. Assim, descobriu-se que o mentor do crime era um comandante da PM, que foi condenado e preso.

Demétrio Magnoli: Otan é álibi na invasão à Ucrânia

O Globo

‘O Ocidente, e especialmente os EUA, é o principal responsável pela crise que começou em fevereiro de 2014’, escreveu John Mearsheimer na revista The Economist, em 19 de março, referindo-se à invasão da Ucrânia pela Rússia. Mearsheimer, um cientista político da escola realista, reproduz a lenda de que a guerra de agressão deve ser interpretada como operação defensiva russa diante da expansão da Otan. É o álibi central do Kremlin, reproduzido mundo afora por correntes da esquerda não reformada e da direita nacionalista.

O “fevereiro de 2014” é o momento da Euromaidan, o levante ucraniano que derrubou o governo cleptocrático pró-russo de Viktor Yanukovich. Foi seguido, imediatamente, pela operação militar russa de anexação da Crimeia e implantação de enclaves separatistas no Donbass. Mearsheimer classifica a revolução popular como “golpe”, quase responsabilizando o Ocidente pelo que fizeram milhões de ucranianos comuns. Aí, sem tirar nem pôr, faz eco ao discurso de Vladimir Putin.

Marcello Serpa: Tik Tok contra bombas e tanques na Ucrânia

O Globo

Embora muita gente ainda confunda as duas, publicidade e propaganda são coisas bem diferentes. Enquanto a publicidade diz o que as pessoas devem comprar, a propaganda diz o que as pessoas devem pensar. Numa guerra, a segunda se torna uma arma tão ou mais poderosa que tanques, aviões e soldados. Nada é mais importante do que uniformizar o pensamento de todo o país em torno de um objetivo comum. A propaganda não permite versões, se sobrepõe à verdade criando seus próprios fatos, se autojustifica glorificando seus atos, enquanto tenta desmoralizar o inimigo e quebrar a sua vontade de continuar lutando.

A Rússia, nos primeiros dias da invasão, fechou todos os meios de comunicação independentes, expulsou a mídia internacional, decretou uma pena de 15 anos de prisão para quem se desviasse da narrativa oficial. Abusou da mentira usando a mordaça e o medo como instrumentos de convencimento da população. Mas, para surpresa do Ocidente, as sanções impostas por “todos que querem destruir a Rússia” ajudaram a aprovação interna de Putin a bater os 81,6%.

Mirtes Cordeiro*: “PEC do Perdão” é conversa para boi dormir

Um bom gestor sabe que durante o tempo da pandemia, em que as escolas estiveram fechadas, recursos deveriam ser utilizados para prover necessidades básicas fundamentais ao retorno das aulas.

A Constituição não pode ser emendada por qualquer coisa, sobretudo quando se trata de suprimir o dever de aplicação de recursos nela consignados ao ensino básico sob responsabilidade das escolas públicas, ainda mais em momento que apresentam índices de aprendizagem tão baixos.

No momento em que alunos das escolas públicas do ensino básico mais precisam, os recursos são retirados.

Uma Proposta de Emenda à Constituição eximindo os prefeitos e governadores da responsabilidade pela não aplicação do recurso mínimo constitucional de 25% das receitas em Educação nos anos de 2020 e 2021, ou seja, durante os anos de maior intensidade da pandemia, foi aprovada pela Câmara já em segunda votação, por 451 parlamentares, em 11 abril. A chamada “PEC do Perdão” agora vai à promulgação.

Apenas 14 parlamentares presentes votaram contra.

Segundo reportagem da Folha de São Paulo, os motivos apontados foram redução de despesas de manutenção e desenvolvimento do ensino devido à suspensão das aulas presenciais – como transporte escolar – e aumento de outras, como distribuição de alimentos às famílias.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

STF precisa manter cabeça fria ao julgar Daniel Silveira

O Globo

São desprezíveis os sucessivos ataques do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) ao Supremo Tribunal Federal (STF) e às instituições da democracia brasileira. Não é à toa que sua prisão no ano passado contou com apoio maciço quando submetida ao plenário da Câmara (364 votos a 130), nem que ele tenha de enfrentar nesta semana um julgamento no STF, sob a acusação de ter agredido e ameaçado ministros da Corte, além de ter estimulado violência contra o Judiciário.

Silveira se comporta como o valentão ginasiano que bufa, grita e esperneia, incapaz de arcar com a responsabilidade dos próprios atos. Depois de solto, descumpriu várias ordens judiciais que limitavam suas ações e, instado por isso a voltar a usar tornozeleira eletrônica, encenou uma pantomima ridícula dormindo em seu gabinete da Câmara para fugir da obrigação.

Os últimos capítulos da rebeldia incluíram o pedido de seus advogados para que sejam considerados suspeitos para julgá-lo todos os juízes do Supremo com exceção dos indicados pelo presidente Jair Bolsonaro e a tentativa descabida de levar seu caso para a Justiça Militar. Tudo isso evidentemente deve ser consignado ao escaninho das aberrações comuns no bolsonarismo.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade: Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

Música | Luiz Melodia / Elza Soares: Fadas

 

domingo, 17 de abril de 2022

Opinião do dia - Karl Marx*: herança democrática

“Finalmente, os comunistas trabalham pela união e pelo entendimento dos partidos democráticos de todos os países.”

*Karl Marx (1818-1883), “Manifesto Comunista”, Fevereiro, 1848. Boitempo Editorial, p.69. São Paulo, 2005.

Luiz Sérgio Henriques*: A globalização continua

O Estado de S. Paulo

Do ponto de vista estritamente político, é bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.

Vozes econômicas influentes informam que a globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.

Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.

Paulo Fábio Dantas Neto*: O fato Simone, entre dois realismos

Nem análises realistas, nem políticas realistas podem ignorar fatos razoavelmente demonstrados. A identidade entre esses dois realismos para por aí. Enquanto análises realistas não podem nunca brigar com os fatos, políticas realistas podem e muitas vezes devem fazer isso. No caso das análises, a máxima do realismo independe de quais fatos ela trata, eles são sempre excelências. No caso da política, há fatos a serem tratados como excelências, outros como excrescências, a depender da sua orientação política.

Se o assunto é a próxima eleição presidencial, são evidentes algumas aplicações práticas dessas afirmações gerais, quando as relacionamos ao cenário visto neste momento eleitoral, cada vez menos “pre”, que se vive no Brasil. O fato razoavelmente demonstrado é que são muito pequenas as chances de se firmar candidatura competitiva alternativa ao embate entre Bolsonaro e Lula. Esse é o principal fato, Sua Excelência, com a qual análises realistas não podem brigar. É ele também o fato auspicioso que políticas realistas dos dois polos do embate factual devem celebrar, conservar e cultivar, com zelo reverencial, como têm feito os realismos simetricamente opostos de Lula e Bolsonaro. E é ele o fato que uma política realista adversária desses dois atuais polos, se não pode ignorar, também não pode tratar como uma excelência. Se assim o fizer, deixará de ser política realista por renunciar à política. Partidos vocacionados para a mediação e não para a intensificação de conflitos ocupam um dado lugar no espaço político, seja ele nomeado de centro democrático ou atenda a outra denominação que esses atores adotem ou que recebam de analistas ou adversários. Eles podem, claro, dar uso mais ou menos eficaz a esse espaço. Mas o realismo político, nesse caso, manda que se agreguem num campo político e tratem o fato, já demonstrado, da polarização que os exclui como uma excrescência a remover.

Creio não ser preciso detalhar aqui a excrescência apontada pelo metro do centro político. Do ponto de vista de quem nele se situa, ou de quem o valoriza, os riscos que a democracia brasileira corre hoje são excessivos, antes de mais nada, por serem desnecessários, pois existe uma preferência majoritária pela democracia, nas elites políticas e também no eleitorado. Porém, como largamente sabido, nesse último a preferência democrática é pouco intensa, instável, podendo tornar-se fluida por antigas e várias razões. No centro do problema (ou no problema do centro) estão desigualdades que levam outros temas a se mostrarem emergenciais para amplas parcelas do eleitorado, negando ao da democracia política e suas instituições a prioridade desejada pela camada democraticamente politizada desse mesmo eleitorado. Por outro lado, no plano das elites políticas e seus vários partidos, a competição eleitoral em cenário de desigualdades críticas atua no sentido de rebaixar ali também a intensidade da preferência democrática de modo a ajustar sua postura à do eleitorado que pretende representar.