segunda-feira, 18 de abril de 2022

Marcello Serpa: Tik Tok contra bombas e tanques na Ucrânia

O Globo

Embora muita gente ainda confunda as duas, publicidade e propaganda são coisas bem diferentes. Enquanto a publicidade diz o que as pessoas devem comprar, a propaganda diz o que as pessoas devem pensar. Numa guerra, a segunda se torna uma arma tão ou mais poderosa que tanques, aviões e soldados. Nada é mais importante do que uniformizar o pensamento de todo o país em torno de um objetivo comum. A propaganda não permite versões, se sobrepõe à verdade criando seus próprios fatos, se autojustifica glorificando seus atos, enquanto tenta desmoralizar o inimigo e quebrar a sua vontade de continuar lutando.

A Rússia, nos primeiros dias da invasão, fechou todos os meios de comunicação independentes, expulsou a mídia internacional, decretou uma pena de 15 anos de prisão para quem se desviasse da narrativa oficial. Abusou da mentira usando a mordaça e o medo como instrumentos de convencimento da população. Mas, para surpresa do Ocidente, as sanções impostas por “todos que querem destruir a Rússia” ajudaram a aprovação interna de Putin a bater os 81,6%.

A propaganda não é apenas sinônimo de mentira oficial. Enquanto os russos, e o mundo, esperavam que Kiev caísse em questão de dias, o presidente da Ucrânia começou a dar uma aula de propaganda que o mundo não via desde os tempos de Churchill. Quando Biden ofereceu uma rota de fuga para ele e sua família, Zelensky respondeu: “Não preciso de carona para sair do país, preciso de armas”. Nas ruas de Kiev, falando diariamente para uma audiência mundial, Zelensky parece um David do Tik Tok, com seu celular enfrentando o Golias russo.

Se Zelensky é o ator principal, o roteirista é seu ministro de transformação digital, Mykhailo Fedorov. Com apenas 31 anos, o empreendedor digital foi um dos principais responsáveis pela eleição de Zelensky em 2019. Antes da guerra, o ministério de Fedorov desenvolvia projetos revolucionários: fazer um censo virtual, realizar eleições on-line e digitalizar todos os serviços do governo, fazendo da Ucrânia um país livre de toda a papelada oficial. Os ucranianos hoje têm seus documentos pessoais, passaportes e pensões todos digitalizados. Quando a guerra estourou, a Ucrânia já contava com uma infraestrutura digital poderosa, permitindo que os 4,5 milhões de refugiados estivessem conectados e com seus papéis em dia em seus celulares.

Fedorov se adaptou rapidamente a uma guerra que lhe foi imposta. Criou o que chamou de “Exército de TI”. Transformou a infraestrutura digital que criou numa máquina de propaganda para enfrentar o inimigo. Convocou, entre representantes da indústria da tecnologia e especialistas em segurança digital, mais de 300 mil voluntários para enfrentar as tentativas russas de se infiltrar nas redes e sistemas de mensagens ucranianos. Convocou também milhares de influencers, instagramers e tik tokers a distribuir conteúdo sobre a guerra. Desapareceram as dicas de maquiagem, viagens e moda para dar lugar a informações sobre pessoas perdidas, avisos sobre ataques, estradas seguras para viajar, onde comprar mantimentos e onde estavam os russos.

Distribuídos por esse exército de influencers, engenheiros e nerds, filmes curtos de tirar o fôlego pipocaram nos celulares do mundo inteiro. Na esquina de uma cidade ucraniana, uma senhora é filmada dando algumas sementes a um soldado russo: “Guarde no seu bolso para, quando você morrer em solo ucraniano, do seu corpo nascerem girassóis”. Um soldado ucraniano dança no campo de batalha para acalmar a filha em casa. Uma mãe escreve com caneta o endereço de parentes no corpo da filha de 5 anos caso o pior aconteça. Esses, e centenas de outros conteúdos, ajudaram a mobilizar o mundo a receber refugiados, pressionar governos e empresas a ampliar as sanções econômicas, chefes de Estado a mandar armas, dando sobrevida a um país que parecia condenado a deixar de existir.

Como diz o clichê, não importa de que lado você esteja, a verdade é a primeira vítima da guerra. Mas não dá para negar que, na propaganda, na disputa pelos corações e mentes de todo o mundo, os russos estão levando uma sova de Fedorov. Com a sabedoria dos seus 31 anos, ele sabe que não basta dizer o que as pessoas devem pensar, mas sim o que devem sentir.

 

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