O Globo
A tentativa de negar, ou mesmo de
naturalizar, as torturas cometidas por militares durante a ditadura acaba
de cair por terra com a revelação, pela colunista Miriam Leitão, de áudios de
ministros do Superior Tribunal Militar (STM) discutindo, durante sessões
secretas, denúncias de presos políticos.
A Comissão Nacional da Verdade, convocada no governo Dilma, já havia revelado
que a tortura era um instrumento do Estado no combate aos guerrilheiros de
esquerda, e o dossiê “Tortura Nunca Mais” elencado os nomes de centenas de
torturadores, muitos deles militares, com base em depoimentos de presos
políticos.
O Estado brasileiro, durante o governo Fernando Henrique, assumiu a reparação
dos prejuízos físicos e sociais sofridos durante a ditadura militar,
indenizando as vítimas de abusos nos governos militares.
Agora, há áudios de ministros militares revelando que o assunto foi tratado com
leniência pelas Forças Armadas, numa visão deformada de que defender
torturadores as preservaria. A ironia do vice-presidente General Hamilton
Mourão sobre o caso é uma demonstração de que essa atitude continua até hoje.
Para ele, que já tratou como herói o Coronel Brilhante Ustra, denunciado como
torturador, os casos fazem parte da história, e como tal devem ser tratados:
"História, isso já passou, né? A mesma coisa que a gente voltar para a
ditadura do Getúlio [Vargas]. São assuntos já escritos em livros, debatidos
intensamente. Passado, faz parte da história do país", disse.
Os áudios foram captados entre 1975 e 1985 e obtidos pelo historiador da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Fico junto ao STM. Eles revelam que já
àquela altura havia ministros que enxergavam mais longe, entendendo que esses
fatos prejudicavam as Forças Armadas, mesmo que defendessem os “objetivos
revolucionários”. Em vários depoimentos, presos políticos relatavam as mais
diversas torturas, o que fez com que o Almirante Julio de Sá Bierrembach, a 19
de outubro de 1976, afirmasse: "Não podemos admitir que o homem, depois de
preso, tenha a sua integridade física atingida por indivíduos covardes, na
maioria das vezes, de pior caráter que o encarcerado”.
Também o General Rodrigo Octávio, em julgamento de apelação, classificava em 24
de junho de 1977, como "fato mais grave" a denúncia de "alguns
réus" sobre “ a tortura e sevícias das mais requintadas". Ambos os
ministros apoiavam a “Revolução”, mas afirmam que para defendê-la, seria
necessário que esses casos fossem apurados com rigor.
O ministro Rodrigo Otávio diz que seria “preciso que se evidencie de maneira
clara e insofismável que o governo, através das Forças Armadas e dos órgãos de
segurança, não pode responder pelo abuso, a ignorância e a maldade de
irresponsáveis que usam torturas e sevícias para obtenção de pretensas provas
comprometedoras na fase investigatória, pensando, em sua limitação cerebral,
que estão bem servindo à estrutura política e jurídica regente, quando na
realidade concorrem apenas na prática desumana, ilegal em denegrir a revolução
retratando a sua configuração jurídica do Estado de Direito e abalando a
confiança nacional pelo crime de terror e insegurança, criados na consecução
honesta e urgente dos objetivos revolucionários", acrescenta.
Já o ministro Bierrembach dizia que "quando aqui vem à baila um caso de
sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e
para a oposição ao governo. Imediatamente, as agências telegráficas e os
correspondentes dos jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é
assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas
publica os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil,
generalizando e dando a entender que constituímos uma nação de selvagens".
Relatos de choques nos órgãos digitais, abortos provocados pelas torturas,
presos espancados “a marteladas” causaram “grande constrangimento” ao general
Augusto Fragoso, acusações que, para ele, "não foram apuradas
devidamente". Ele se mostrou espantado porque “nesses 50 e tantos anos de
serviço, vivendo crises militares de 30, 32 e 35, nunca vi, nunca ouvi,
acusações desse jaez feitas a órgãos do Exército. Acho que nosso Exército,
seguindo exemplo das forças irmãs, devia rapidamente se recolher aos afazeres
profissionais".
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