O Estado de S. Paulo
A coisa pública tem sido opacificada por
deliberada obscuridade. O lema hoje parece ser: governar é omitir, julgar é
esconder, legislar é ocultar.
A boa e velha sabedoria da Roma Antiga,
farol civilizatório do mundo a partir do século VII a.C., entronizou em seu
panteão a deusa Justiça como réplica latina da helênica Dice, com uma diferença
que se afirmaria como ícone para a posteridade: a simbolizar a imparcialidade,
permanecia a divindade de olhos vendados, a tornar claro que não importava quem
se estava a julgar. A mensagem era clara: todos são iguais perante a lei. No
entanto, a Justiça deveria, ela mesma, estar sempre iluminada pela luz do sol,
escrutinada pelos cidadãos e isenta de segredos e decisões cabulosas tomadas
nas sombras do hermetismo.
A regra da transparência atravessou os
séculos e enraizou-se nos atos e ritos dos assuntos de Estado, passíveis de
documentação para conferência dos órgãos controladores e do povo. O Brasil é um
dos países com maior incidência solar no planeta, mas a claridade exigida dos
atos relativos à res publica,
a coisa pública, tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema dos
dias que correm parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é
ocultar. Por isso que aos cidadãos têm sido sonegadas as mais ínfimas
informações acerca de decisões relativas a temas que, por natureza, são
públicos e só excepcionalmente, em atenção à defesa do Estado, devem ser
resguardados em sigilo, e apenas por um período que seja razoável.
Nestes tempos estranhos em que são frequentes ações voltadas a nublar a luz do sol, até o Legislativo, o mais transparente dos Poderes, engendrou um “orçamento secreto” que oculta o nome de parlamentares beneficiados em 2020 e 2021 pelas chamadas emendas de relator – mecanismo esotérico pelo qual milhões de reais dos cofres públicos são destinados a obras e serviços sem que se saiba qual parlamentar se beneficia da transferência em troca de apoio ao Executivo.
A exigida ética na condução da coisa
pública tem sido trapaceada. Coube, recentemente, ao Supremo Tribunal Federal
(STF) levantar o sigilo imposto à tramitação de processos administrativos
instaurados pelas agências de Transportes Terrestres e Aquaviários para apurar
infrações de concessionárias de serviço público. Na aparência, todos querem
esconder algo. Por dá cá essa palha, processos e até inquéritos têm sido
cobertos pelo segredo de Justiça – em afronta aos incisos IX e X do art. 93 da
Constituição, segundo os quais “todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade” e “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em
sessão pública (...)”. Excepcionalmente, poderá ser limitada “em determinados
atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos
quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não
prejudique o interesse público à informação”.
No âmbito do Executivo, interesse público
passou a ser interesse dos governantes. Assumiu foros de cabala a negativa de
acesso à imprensa ao processo administrativo que culminou com a impunidade do
general Eduardo Pazuello por participação em comício político do presidente da
República. O Regulamento Disciplinar do Exército proíbe militar da ativa de se
manifestar publicamente, “sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de
natureza político-partidária”. A sibilina alegação foi de que a Lei n.º 12.527/2011,
que regula o acesso à informação, restringe a divulgação de informações
pessoais – e a mordaça corporativa recebeu o sinete secular de ultrassecreta,
equiparada a episódios da Guerra do Paraguai, encerrada em 1870, ainda hoje
resguardados para evitar fricções com o país vizinho. Apequenam-se os homens,
avilta-se a República.
Promulgada em substituição a normas
similares que disciplinavam segredos de Estado, a Lei n.º 12.527/2011 seguiu
antigo padrão internacional de resguardo de assuntos sensíveis cuja divulgação
ainda possa comprometer a segurança nacional ou trazer à tona fatos históricos
embaraçosos. Um mérito adicional da nova legislação foi funcionar, também, como
chave de acesso para informações de interesse público que não estejam
classificadas como secretas, e desse mecanismo tem se valido a imprensa para
divulgar com foros de revelação o que já deveria ser público.
No clássico desvio de finalidade que
corrompe boas intenções, sabe Deus se as informações fornecidas são fidedignas
– suspeita que nasce da resistência de autoridades em revelar determinados
dados, como os gastos do cartão corporativo da Presidência da República. Se, no
passado, um ministro perdeu o cargo por comprar tapiocas com tal cartão, as
instituições fiscalizadoras da República têm o dever de obrigar o presidente a
explicar em que gastou secretamente R$ 43,5 milhões nos três anos de seu
governo.
Desconfiando, como Hamlet desconfiou de que
algo cheirava mal no reino da Dinamarca, vale invocar sempre a atemporal
constatação de Louis Dembitz Brandeis, juiz da Suprema Corte americana de 1916
a 1939: “A luz do sol é o melhor desinfetante”.
*Advogado criminalista, foi presidente nacional da OAB e deputado federal pelo PDT-SP
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