Folha de S. Paulo
Sucupira foi a profecia do que viria a ser
o Brasil sob Bolsonaro
Exibida 50 anos atrás, a novela "O
Bem-Amado", do dramaturgo Dias Gomes, guarda desconcertante
correspondência com o Brasil atual. Na pele do excepcional Paulo Gracindo, o
prefeito de Sucupira, Odorico Paraguaçu, encarnava a síntese do que hoje se chama
necropolítica, quando essa palavra talvez nem existisse.
A única obra do prefeito é um cemitério, e
ele trama o tempo todo a morte de algum cidadão para inaugurá-lo. Odorico manda
até roubar vacinas que poderiam evitar uma epidemia. É quase uma profecia do
que viria a ser o Brasil sob Bolsonaro.
Dias Gomes nos faz refletir sobre um país violento e autoritário por meio de muitos outros personagens. Tem o empresário que estupra por "diversão" e os playboys que, por "curtição", tocam fogo num homem que dormia na rua.
Em 1997, a realidade superaria a ficção,
com o assassinato do líder indígena Galdino
Jesus dos Santos, queimado enquanto dormia num ponto de ônibus, em
Brasília, por cinco delinquentes de classe média. Barbárie que completa 25 anos
nesta quarta-feira e que ainda nos ronda.
A novela caiu no gosto popular talvez
porque o autor, com diálogos cheios de ironia e humor cortante, tenha feito a
audiência se olhar no espelho e rir de si mesma. Dias Gomes também sabia iludir
a censura. Odorico era tratado pela patente de "coronel". Seu bordão,
"Pra frente, Sucupira!", zombava da canção "Pra frente,
Brasil!", símbolo da ditadura.
Ao novelista não escapou nem a piada do
momento, desde que a imprensa descobriu a compra de Viagra e próteses penianas
para militares, com dinheiro público. Em "sucupirês", o coronel
Odorico Paraguassu também era "desapetrechado" de potência sexual e
recorria a um xarope "revigoratório".
Cabe mencionar ainda a trilha sonora de
Vinicius e Toquinho, sob medida para os dias de hoje. A canção "Paiol de
pólvora" diz assim: "Estamos trancados no paiol de pólvora/Paralisados no
paiol de pólvora/Olhos vendados no paiol de pólvora/Dentes cerrados no paiol de
pólvora".
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