sexta-feira, 14 de junho de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Propostas para aborto e drogas ignoram realidade

O Globo

Textos da Câmara desprezam caráter de saúde pública e conhecimento acumulado sobre ambas as questões

É preocupante que a Câmara tenha dado celeridade a duas propostas que mereceriam mais discussão com a sociedade e deveriam seguir todo o trâmite legislativo, com debates exaustivos em comissões antes de irem a plenário. A primeira é o Projeto de Lei (PL) que equipara o aborto depois da 22ª semana de gravidez ao crime de homicídio. A segunda é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza posse e porte de qualquer quantidade de droga. As mudanças são inspiradas mais em convicções políticas, ideológicas ou religiosas que no conhecimento acumulado sobre ambos os temas.

De acordo com o PL que trata do aborto, mesmo nos casos em que o procedimento é hoje legal — estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto —, ele seria considerado homicídio depois da 22ª semana de gravidez. É verdade que o Código Penal não impõe limite de tempo nos casos previstos em lei e que abortos com gestação avançada suscitam uma discussão que mexe com convicções morais e religiosas profundas. Por isso mesmo, a questão merece debate exaustivo.

Numa situação-limite, a proposta puniria a vítima de estupro com mais rigor que ao próprio estuprador. No caso de uma mulher adulta que tenha sido estuprada e só conseguido abortar depois da 22ª semana de gravidez, este poderia receber pena entre seis a dez anos de prisão, enquanto a vítima poderia ser condenada a 20 anos. O PL não leva em consideração que muitas vítimas de estupro retardam a interrupção da gravidez não por vontade própria, mas pelas circunstâncias. Boa parte dos estupros de crianças e adolescentes ocorre em casa. Por inocência, ignorância ou medo — em geral, os estupradores são próximos das vítimas —, muitos agem tardiamente. Não se podem ignorar também as dificuldades impostas ao aborto legal. Nesses casos, os termos propostos no projeto se tornariam uma punição às vítimas.

Quanto à PEC das Drogas, ela não resolve a maior deficiência da lei em vigor: distinguir usuário de traficante. Seus defensores afirmam que a ideia não é prender usuários, mas certamente é o que acontecerá se não houver critério objetivo definindo a quantidade de droga que separa um do outro. O projeto avançou justamente quando o Supremo Tribunal Federal discute parâmetros para sanar essa lacuna da lei. Deixar a avaliação a critério da interpretação de policiais e juízes, como hoje, preserva uma ambiguidade nociva.

A Lei Antidrogas, de 2006, teve efeito contrário ao pretendido, levando ao encarceramento em massa de cidadãos flagrados com pequenas quantidades. A ausência de parâmetros objetivos cria distorções e injustiças. Jovens, negros e pobres são presos com mais frequência. Põe-se na cadeia um enorme contingente que não deveria estar lá, favorecendo organizações criminosas que obtêm nos presídios mão de obra para suas atividades ilícitas.

O Congresso é o foro adequado para discutir questões que despertam controvérsia, como drogas ou aborto. Mas não há motivo para queimar etapas. O correto é seguir o trâmite das comissões, para que todos os aspectos delas sejam analisados com serenidade e confrontados com o conhecimento de ponta. Visões conflitantes sempre enriquecem o debate. Aborto e drogas são, antes de tudo, problemas de saúde pública. Por isso a legislação a respeito deveria ser debatida de forma madura, desvinculada de preconceitos.

Vitória de Milei no Congresso mantém viva esperança de mudança

O Globo

Depois de concessões, presidente argentino obtém poderes necessários a promover reformas urgentes

Passados seis meses desde que assumiu a Presidência da ArgentinaJavier Milei conquistou sua maior vitória no Congresso. Por margem apertada, o Senado aprovou dois pacotes de reformas considerados prioritários pelo governo. O principal deles é a Lei de Bases, que confere ao Executivo poderes excepcionais nas áreas administrativa, econômica, financeira e energética, com permissão para promover privatizações e outras reformas. O segundo é um pacote fiscal, com permissão para regularizar bens não declarados e um programa para incentivar inadimplentes a zerar débitos com o governo. Ambos são essenciais para o plano econômico de Milei, que preconiza um Estado menos presente e despesas que caibam no Orçamento.

Há diferenças importantes entre os textos inicialmente apresentados pelo Executivo e as versões aprovadas. Milei foi eleito presidente com margem folgada, mas com presença minoritária no Congresso. O consenso no Parlamento era seu principal desafio desde a posse. Ainda no ano passado exagerou ao enviar ao Congresso o projeto da Lei de Bases com 664 artigos e 351 páginas. De tão extenso, foi apelidado de “Lei Ônibus”. Mesmo um partido com maioria teria dificuldade de aprovar projeto com tal ambição. Mas a ousadia funcionou como estratégia. A lei aprovada, na essência, lhe dá poderes suficientes para pôr em marcha as reformas.

Com a exceção de protestos nem sempre pacíficos, de lá para cá o que se viu foi uma democracia em funcionamento. Depois da primeira derrota em fevereiro, o governo e a oposição “dialoguista” deram início a intensa negociação. Numa sessão no final de abril, foram necessárias 21 horas de debates para que os deputados chegassem a um acordo. Os partidários de Milei se viram obrigados a fazer inúmeras concessões, com destaque para a diminuição das áreas dos poderes excepcionais. Quando chegou ao Senado, o texto já tinha 232 artigos. A votação desta semana não foi diferente. Durou mais de 18 horas e exigiu o voto de minerva da vice-presidente Victoria Villarruel para aprovar a Lei de Bases com 29 modificações, entre elas a retirada de certas estatais da lista de privatização.

O governo demonstrou contrariedade com artigos derrotados, em particular um que alterava o imposto de renda. Mas o saldo foi positivo para a Casa Rosada. Com menos de 15% das cadeiras do Congresso, Milei ganhou novo fôlego. Isso não quer dizer que suas dores de cabeça com o Parlamento acabaram nem que seu plano econômico terá sucesso. Na semana passada, a Câmara aprovou um aumento de aposentadorias que, se for adiante, custará 0,4% do PIB. A inflação, mesmo em desaceleração, continua alta. A recessão é de grandes proporções, o câmbio está apreciado, e o governo tem usado toda sorte de expediente para buscar equilíbrio nas contas. Em vários níveis impera o caos administrativo, tal o amadorismo dos indicados. Mas Milei tem a visão correta dos problemas que amaldiçoam seu país e representa uma esperança. A mudança conta com apoio da maioria da população. A Argentina não pode se dar ao luxo de novo fracasso.

Planalto precisa mudar rumo e conter gastos

Valor Econômico

Há medidas que, dentro das regras falhas do regime fiscal, podem produzir resultados melhores

Com a rejeição pelo Senado da MP que limita a compensação dos créditos do PIS/Cofins, o Congresso deu o mais forte sinal de que a receita do governo Lula para sustentar o regime fiscal - o aumento de arrecadação - encontrou seu limite. É uma mensagem vital, talvez não plenamente percebida pelo Planalto. No dia seguinte à devolução da MP pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em um ato raro do Legislativo, o presidente Lula reiterou o mix de políticas inviável. Ele disse que o governo está comprometido com a austeridade fiscal, que será garantida pelo aumento de arrecadação e redução dos juros, ambos fora do controle do Planalto até agora. Sobre redução de gastos, nenhuma palavra do presidente.

Em geral, a chance de o atual Congresso aprovar mais gastos, como o fez na PEC da Transição (R$ 168 bilhões a mais em despesas para o governo de Lula), é maior do que a de aceitar elevação de impostos. O presidente Lula sabe disso, seus ministros mais importantes, também, mas a conta da derrota da MP foi inteiramente atribuída ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Mais do que a vitória de uma ala sobre outra nas brigas internas do PT e do Planalto, o resultado do episódio põe mais um prego no caixão da credibilidade do governo como um todo.

Em um governo sério, a política do ministro da Fazenda é a política do presidente. Quando o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (BA), diz que a rejeição da MP, derrota fragorosa para o Planalto, merece o “aplauso” de Lula e que é preferível um fim trágico a uma “tragédia sem fim” da proposta assinada pelo presidente da República, o governo desmoraliza Haddad. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou que não sabia as consequências da MP, documento que tem de passar por suas mãos antes de chegar às mãos do presidente e sobre o qual tem uma opinião quase decisiva. Sérias dúvidas surgem: em nome de quem fala o ministro da Fazenda? O que de fato quer o presidente?

O problema em questão é o mesmo desde que foi aprovado o novo regime fiscal - as condições de sua sustentabilidade. As desconfianças a respeito dela cresceram muito depois que a meta estabelecida foi mudada antes mesmo de o sistema entrar em vigor. Consultorias e economista fora do governo preveem que o déficit zero fixado para este ano não será atingido, nem tampouco os objetivos dos anos seguintes. Haddad tem se esforçado para criar meios de cumpri-las. Elas envolvem, pelas regras, um esforço enorme de arrecadação, já que não há compromisso firme de corte de gastos.

Haddad obteve apoio do Congresso no ano passado para fechar brechas no sistema tributário pelo qual passavam privilégios injustificáveis. Não restam muitas mais agora e, no caso da MP do PIS/Cofins, a pressão bem sucedida dos setores empresariais no Congresso indicou que o aumento de impostos, sem o devido debate e em uma carga já bem alta em comparação com a de países emergentes, passou do limite do razoável. Não há outra saída para o governo senão cuidar das despesas.

Há um diagnóstico conhecido, correto e óbvio sobre as deficiências do regime fiscal. Um deles é a vinculação de gastos de saúde e educação às receitas, que conduzem a uma armadilha lógica. O arcabouço privilegia o aumento das receitas, que elevam as despesas vinculadas acima do próprio teto do sistema, de 0,6% a 2,5% acima da inflação. Com isso, as despesas discricionárias (investimentos e custeio da máquina) tendem a zero, ponto do qual estarão em 2027 ou antes.

Se as receitas são privilegiadas, não faz sentido elevar gastos tributários, como ocorre. Em seu relatório sobre as contas do governo Lula de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que houve aumento de R$ 68 bilhões em benefícios (total do ano: R$ 519 bilhões), sem que fossem determinadas fontes financeiras de compensação.

Além disso, a reinstituída correção real do salário mínimo, que indexa, entre outros, as aposentadorias e os benefícios sociais, como abono salarial, seguro desemprego e Benefício de Prestação Continuada, piorou as contas. Essa fórmula de correção, junto com a indexação de saúde e educação, trouxe despesas adicionais no ano de R$ 80 bilhões, quantia suficiente para atingir a meta de déficit zero, calcula Marcos Mendes, pesquisador do Insper (Valor, ontem). Já a correção dos benefícios sociais pela inflação, e não pelo mínimo, economizariam R$ 20 bilhões no ano, estima Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos.

Há assim formas que, dentro das regras falhas do regime fiscal, podem produzir resultados melhores. A equipe econômica tentará de novo conter gastos propondo maneiras parecidas com as que estão sendo ou foram alinhadas fora do governo, como a desvinculação de benefícios sociais do mínimo e dos gastos de educação e saúde das receitas. A chance de que prosperem dependerá de decisão do presidente Lula, que tem preferido privilegiar a opinião de auxiliares mais próximos que têm conduzido o governo de fracasso em fracasso, e desprestigiar as da equipe de Haddad, que colecionou trunfos importantes. Há ainda tempo para mudar, antes que seja tarde.

FGTS ficou somente menos inadequado

Folha de S. Paulo

STF acerta ao determinar correção ao menos pela inflação, mas mundo político ainda se apossa do dinheiro do trabalhador

Entre várias opções, decidiu com sensatez o Supremo Tribunal Federal ao revisar os critérios de correção dos saldos nas contas dos trabalhadores no Fundo de Garantia dor Tempo de Serviço (FGTS).

Por 7 votos a 4, a corte estabeleceu que os valores acompanharão a TR mais 3% ao ano e o pagamento dos lucros do fundo, como acontece hoje, mas doravante terão também a garantia de reposição da inflação ao consumidor medida pelo IPCA. Essa era a posição defendida pelo Executivo, em entendimento com centrais sindicais.

Trata-se de um posicionamento racional, dada a necessidade de assegurar a sustentabilidade de projetos financiados pelo FGTS nas áreas de infraestrutura e moradia popular, que em geral têm custos abaixo das taxas de mercado.

É o caso do Minha Casa Minha Vida, que depende dos recursos do fundo para estratos de baixa e média renda e contratou a construção de mais de 7 milhões de moradias nos últimos 15 anos.

Correções maiores dos depósitos implicariam desequilíbrios atuariais ou necessidade de elevar os juros para tais projetos. Também ficou definido que a mudança vale para a frente, não impactando os saldos passados, algo acertado.

A decisão afeta cerca de 117 milhões de contas no FGTS. Não faria sentido, dadas as restrições financeiras da União e em prol da segurança econômica e jurídica, que fosse imposto um custo estimado de R$ 756 bilhões em correções retroativas, segundo cálculos, não consensuais, do Solidariedade, partido proponente da ação em 2014.

Resolvem-se assim o passado e o presente, mas cumpre pensar no futuro —e, nesse sentido, o formato atual do FGTS se mostra arcaico, inadequado e prejudicial para os trabalhadores.

O fundo recolhe 8% do salário em contas individuais, só acessíveis em situações específicas, como compra da casa própria, demissão e outras previstas em lei.

Em essência, o mecanismo constitui uma poupança compulsória que, embora de titularidade do trabalhador, é de acesso restrito, além de remunerada com taxas aquém das que seriam obtidas em aplicações financeiras seguras.

O melhor caminho imediato seria uma modernização ampla do sistema, tornando o FGTS um instrumento de poupança sob poder mais efetivo de seu titular, com rentabilidade menos distante dos padrões de mercado.

Gradualmente, deve-se reduzir o peso do fundo em políticas públicas. É melhor que subsídios eventuais venham do Tesouro, discriminados de forma transparente no Orçamento. O mundo político brasileiro, infelizmente, reluta em abrir mão do controle de um dinheiro que é dos assalariados.

Autonomia e rapapés

Folha de S. Paulo

Se chefe do BC afastou-se do ataque de Lula, deveria evitar cortejo de Tarcísio

A experiência brasileira com a autonomia formal do Banco Central é recente, e os padrões de conduta a serem seguidos sob tal condição ainda não estão bem assentados. Isso dito, é evidente que o presidente do BC, Roberto Campos Neto, tem se deixado bajular perigosamente por setores da política.

O episódio mais recente foi a homenagem recebida na Assembleia Legislativa de São Paulo, na segunda (10), seguida de jantar oferecido pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) —com a presença de empresários e políticos do calibre do ex-presidente Michel Temer (MDB) e de Gilberto Kassab (PSD).

Menos de um mês antes, os mesmos Campos Neto e Tarcísio foram os convidados mais ilustres de um jantar organizado por Luciano Huck, apresentador da TV Globo que há anos demonstra a intenção de participar direta ou indiretamente da disputa presidencial.

É perfeitamente razoável, até desejável, que um dirigente do BC tenha relações institucionais com autoridades de todos os níveis de governo. Nesses dois casos, porém, o economista faria melhor em preservar certo distanciamento.

O governador de São Paulo, todos sabem, é um potencial candidato ao Planalto que busca manter um pé na canoa do bolsonarismo e outro na da moderação. Não à toa, Campos Neto passou a ser visto como possível candidato a ministro da Fazenda —de um postulante eventual em um pleito presidencial distante, de nomes e resultados incertos.

A autonomia, com mandatos para o presidente e os diretores, foi instituída em 2021 para proteger o BC de ingerências políticas. A norma, correta, passou bem pelo seu primeiro teste de estresse —a saraivada de ataques por parte de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e liderados às bases da política monetária.

Se soube distanciar-se com serenidade das diatribes de Lula, Campos Neto deveria fazer o mesmo com os rapapés de Tarcísio e outros. Mais discrição seria recomendável nos pouco mais de seis meses que lhe restam à frente do órgão, cuja credibilidade é fundamental para o sucesso do controle da inflação numa conjuntura que se tornou mais difícil.

Democracia não é bem isso

O Estado de S. Paulo

Câmara tem legitimidade não só para manter a criminalização do aborto, como, se quiser, agravar a pena a ele cominada. Mas deve ter a coragem de decidir seguindo o devido rito democrático

A Câmara aprovou o regime de urgência para um projeto de lei, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equipara o aborto ao homicídio simples quando a gestação for interrompida a partir da 22.ª semana. O Poder Legislativo tem legitimidade para, se quiser, não só manter a tipificação penal do aborto, como, no caso do projeto em tela, ainda agravar a pena cominada ao crime. Contudo, é de estarrecer todo genuíno democrata, seja qual for a opinião que possa ter a respeito desse projeto de lei, o rito de tramitação escolhido pela Casa – isto, sim, reprovável por seu espírito claramente antidemocrático.

Convém sublinhar, à guisa de esclarecimento, em quais casos cabe a tramitação de urgência. Prevista no artigo 153 do Regimento Interno da Câmara, a urgência poderá ser requerida quando (i) se tratar de matéria que envolva a defesa da sociedade democrática; (ii) tratar-se de providência para atender a calamidade pública; (iii) visar à prorrogação de prazos legais a se findarem, ou à adoção ou alteração de lei para aplicar-se em época certa e próxima; ou (iv) pretender-se a apreciação da matéria na mesma sessão. Decerto o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), os líderes dos partidos e o autor do projeto de lei elucubraram alguma contorção interpretativa para fazer a equiparação entre os crimes de aborto e homicídio simples caber numa dessas hipóteses de urgência. Mas a matéria, por óbvio, urgente não é.

Dois objetivos correlatos estão evidentes nesse ardil para atropelar o devido processo democrático de discussão de questões de interesse da sociedade no Congresso Nacional. O primeiro deles é acelerar a tramitação do projeto, ao custo da realização de debates mais aprofundados sobre a pertinência ou não de agravar a pena imposta às mulheres que decidem abortar – em particular àquelas autorizadas a fazê-lo nas três hipóteses previstas para o chamado aborto legal. Quando tramitam em regime de urgência, os projetos de lei não passam pelo crivo das comissões temáticas da Câmara e do Senado, sendo apreciados diretamente pelo plenário de ambas as Casas Legislativas. A qualidade do debate público, naturalmente, é comprometida pela premência do tempo – o que é razoável quando se está diante daquelas hipóteses enumeradas acima.

O debate sobre o aborto, entretanto, além de não ser urgente – pois “urgente”, ao que parece, é a necessidade da Câmara de se contrapor ao Supremo Tribunal Federal, que está em vias de julgar a constitucionalidade de uma resolução do Conselho Federal de Medicina que proíbe uma prática médica abortiva, mesmo nos casos de aborto legal –, deve ser travado com transparência e, principalmente, coragem republicana. Nesse sentido, só o fato de o requerimento de urgência ter sido aprovado em votação simbólica, quando os deputados não são obrigados a se manifestar publicamente sobre o que estão votando, já não se coaduna com o espírito democrático. Eis o segundo objetivo: blindar os deputados de quaisquer ônus políticos.

Ora, que tenham coragem para defender na tribuna as suas convicções sobre a equiparação entre o aborto e o homicídio simples, apresentando argumentos e votando segundo suas consciências. A democracia representativa funciona assim. E seja qual for a decisão da Câmara, como representante do povo brasileiro, haverá de ser respeitada. O que é descabido é a privação de um debate mais qualificado sobre um tema que é particularmente sensível para grande parte dos cidadãos.

O espírito das leis editadas como “desafio” a outros Poderes não é bom para o Legislativo nem muito menos para a democracia. E fica claro que é esse o espírito que anima Sóstenes Cavalcante quando o deputado diz querer “ver se ele (o presidente Lula da Silva) vai sancionar ou vetar esse projeto sobre aborto”.

Uma lei não se presta à revanche. A contaminação da legislatura pelo desejo de desforra nunca deu em bom lugar. Justamente por sua sensibilidade, é preciso discutir o projeto de lei do deputado fluminense com serenidade e, sobretudo, espírito público.

Novos problemas, velhas práticas no ensino superior

O Estado de S. Paulo

Ante pressões de grevistas das instituições federais de ensino, o governo adia soluções de longo prazo e responde com os artifícios de sempre: mais obras e mais concessão de bolsas

Se a fé move montanhas, como diz o ensinamento bíblico, dinheiro e obras movem popularidade, informa o evangelho lulopetista. Só essa convicção explica tamanha obsessão do governo de responder a crises e desafios complexos com obras e recursos, preferencialmente no formato de concessão de bolsas e anúncios palanqueiros de novas instalações físicas.

Foi o que se viu nesta semana, quando o presidente Lula da Silva e o ministro da Educação, Camilo Santana, anunciaram um novo pacote de investimentos: cerca de R$ 5,5 bilhões de recursos federais integrarão o Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC) para a consolidação de universidades federais, a criação de 10 novos campi e a melhoria da infraestrutura de 31 hospitais universitários, com a criação de 8 novos hospitais. O governo também anunciou a ampliação do Programa Bolsa Permanência (PBP), destinado a estudantes de baixa renda – tudo em meio à extensão da greve de professores e servidores das instituições federais de ensino, hoje divididos entre um sindicato que deseja encerrá-la e outro que, de maneira inflexível, espera prolongá-la.

Eis o viço do governo: anúncios envolvendo cifras bilionárias, abertura de novas vagas e concessão de bolsas costumam estar entre as prioridades, sobretudo quando o governo, confrontado por ausência de melhores soluções de médio e longo prazos, recorre ao atalho habitual dos anúncios de impacto. Não há dúvida sobre as deficiências na infraestrutura das universidades federais, onde são escassos os recursos para manter a salubridade de salas de aula, bibliotecas e auditórios, assim como ampliar e preservar a qualidade de laboratórios, refeitórios, moradias, equipamentos de saúde e centros de convivência. E, assim como o recém-anunciado Pé-de-Meia – bem-vindo programa de transferência de recursos para incentivar estudantes a permanecer no ensino médio –, também é inquestionável a relevância de bolsas para estudantes mais pobres seguirem nas instituições federais de ensino.

Obras e recursos são relevantes, mas insuficientes quando se permanece na superfície dos números. Há um método recorrente, com o qual Lula reafirma sua crença inabalável no poder do ensino superior e na sua aposta pela expansão, dando atenção desmedida à criação de unidades e à expansão de vagas, enquanto dedica menos espaço e cuidado ao que é mais complexo e invisível: o aprimoramento da gestão, o aperfeiçoamento dos sistemas de avaliação e a resolução dos problemas de eficiência, incluindo formas de contratação, qualidade da produção de pesquisa, modelos de aproximação com o setor privado e modernização dos currículos e práticas acadêmicas.

Se é verdade que as localidades dos novos campi universitários foram escolhidas com base nos critérios de cobertura de matrículas públicas, também é verdade que o governo ainda deve uma mudança de rota na sua escala de prioridades. Primeiro, precisa perceber que graduação vai muito além de um diploma, sendo necessário redefinir políticas públicas e reformular processos pedagógicos para superar o problema da (má) qualidade da educação superior. Segundo, convém reconhecer que, juntamente com mais recursos e mais vagas, é preciso construir melhores políticas de incentivos e desincentivos para o melhor uso do orçamento público. Terceiro, é hora de iniciar uma inadiável revisão de prioridades, uma vez que o Brasil investe no ensino superior com padrão de país rico e investe na educação básica no nível de segunda classe – o inverso do que ensinam boas práticas apontadas pela literatura especializada.

Acossado pela greve, no entanto, o governo recorre aos artifícios de sempre. “Se vocês analisarem o conjunto da obra, vão perceber que não há muita razão para essa greve estar durando o que está durando, porque quem está perdendo não é o Lula, não é o reitor, são o Brasil e os estudantes brasileiros”, disse Lula, em encontro com reitores. Ele tem razão. Mas há de oferecer-lhe uma constatação adicional, que também desabona o presidente: o Brasil perde duplamente, reprovado no teste das más escolhas, seja por uma paralisação que prejudica os alunos e o País, seja pelos atalhos demagógicos escolhidos pelo governo para atenuar as pressões dos grevistas.

Lula de mãos atadas

O Estado de S. Paulo

Indiciamento do sr. Juscelino Filho diz mais sobre um governo fraco do que sobre o ministro

O indiciamento do ministro das Comunicações, Juscelino Filho, atolado por suspeitas de malversação de recursos públicos no Maranhão, diz mais sobre o governo Lula da Silva do que sobre seu auxiliar. E não são poucas as enrascadas em que o político do União Brasil se meteu.

Após reportagens em série do Estadão revelarem uma farra no uso do orçamento secreto na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) – a estatal do Centrão –, o leitor deste jornal já conhece bem o histórico do sr. Juscelino.

Vale a pena lembrar alguns episódios nada abonadores. Quando deputado, Juscelino destinou verba milionária para asfaltar uma estrada que passa na frente de uma fazenda sua, em Vitorino Freire (MA). Ele ainda omitiu do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) parte de seu patrimônio e, já como ministro, recebeu diárias – ou seja, dinheiro público – para ir a um leilão de cavalos de raça. Sua cidade natal, administrada pela irmã, firmou contratos com empresas de amigos.

A lista é longa. Mas nada disso foi suficiente para sacá-lo do cargo.

Diante de tantos indícios de irregularidades no repasse de emendas parlamentares, a Polícia Federal (PF) deu início a uma investigação. Segundo o indiciamento, o ministro é suspeito de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Nada menos. O Estadão apurou que o relatório final cita também falsidade ideológica, frustração de caráter competitivo de licitação e violação de sigilo em licitação.

Tudo isso, porém, não parece grave o bastante para Lula demitir sumariamente Juscelino Filho tão logo a PF o indiciou.

Alçado do baixo clero da Câmara, o ministro representa um problema para o governo, não por sua notória desqualificação como gestor público, mas por uma potencial rebelião no União Brasil em razão de sua queda. O indiciamento ainda veio a calhar em uma semana em que o Congresso andou bastante indócil com o governo Lula da Silva.

Segundo o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), o desfecho depende do presidente, o que é óbvio, e de um posicionamento do União Brasil. Por ora, a legenda não soltou a mão do correligionário, a quem manifestou “total apoio” alegando “uma possível atuação direcionada e parcial na apuração”. Para o terceiro maior partido da Câmara, investigações semelhantes no passado levaram a “condenações injustas”.

Em Genebra, onde participa de um evento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Lula disse que “o fato de o cara ser indiciado não significa que o cara cometeu um erro”. “Agora, eu preciso que as pessoas provem que são inocentes”, afirmou.

O presidente até pode vir a demitir Juscelino Filho – hoje, amanhã ou sabe-se lá quando. Porém, esse imbróglio já se arrasta desde janeiro de 2023, logo após a posse para seu terceiro mandato. Seja qual for a decisão de Lula da Silva, o episódio só reforça que um governo fraco como o dele não pode se dar ao luxo de indispor qualquer partido de sua base rarefeita.

O desafio da subalimentação

Correio Braziliense

Cerca de 9 milhões de brasileiros estão na situação de insegurança alimentar em um país de clima tropical e boa parte do território com solo fértil

A fome no mundo e todos os problemas subsequentes não deveriam ser mais uma questão a ser debatida. Nesta semana, estão reunidos em Assunção, no Paraguai, ministros e autoridades de desenvolvimento social do Mercosul com o objetivo de discutir políticas, programas e estratégias voltadas para o desenvolvimento social e o combate à pobreza.

O Mapa da Fome no mundo ainda é assustador, e, caso as estatísticas permaneçam, os países-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) não conseguirão bater a meta, estabelecida em 2015, de zerar a fome até 2030. O relatório revela que 111 países enfrentam situação crônica de falta de alimentos, o que significa que o que essas populações consomem é insuficiente para manter uma vida ativa e saudável. Fazem parte desse grupo nações em que essa condição atinge mais de 2,5% de seus habitantes. 

No Brasil, em 2022, o número de pessoas que enfrentavam a insegurança alimentar e nutricional grave passou de 33 milhões, o correspondente a mais de 15% da população brasileira. É verdade que, no último ano, a situação melhorou, já que parte desse contingente — 24,4 milhões de pessoas — deixou o grupo da insegurança alimentar, uma queda relevante de 73%, e, aqui, estamos falando também de outros fatores, como renda, falta de acesso à água, degradação dos solos, crises econômicas e de governança. Ainda assim, cerca de 9 milhões de brasileiros estão nessa situação em um país de clima tropical, sem furacões, vulcões, tsunamis e com um solo fértil (na maior parte do território), em que é totalmente possível produzir o que se consome. 

Iniciativas como a da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que promove leilões eletrônicos esporadicamente para adquirir cestas de alimentos destinadas ao atendimento dos povos indígenas Yanomami de Roraima e do Amazonas, são sempre muito bem-vindas, mas só chegam a alimentar uma população inferior a 40 mil pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional — quantidade pequena dada a dimensão populacional do Brasil.  

Fato é que faltam apenas seis anos para 2030, cinco anos e meio para sermos mais exatos, e o Mapa da Fome completa 10 anos em 2025, com desafios ainda maiores se comparado à época de sua criação. Se antes os quadros de fome eram mais significativos em determinadas regiões, como no Nordeste, e em pequenos municípios, a verdade é que, na última década, chegou aos centros urbanos das outras regiões brasileiras. 

Especialistas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) falam, inclusive, não mais na fome de não comer, mas na fome de comer mal. Com a pandemia e o aumento do preço dos alimentos, consolidou-se a prática da substituição e, geralmente, de um alimento de qualidade por um de má qualidade nutricional. 

Para completar, não bastasse debatermos sobre insegurança alimentar no século 21, ainda assistimos a histórias nefastas envolvendo a fome, como a recente tragédia de um menininho privado de se alimentar  e, quando o fazia, comia ração de cachorro. Morreu pela atitude de um padrasto covarde e assassino que achou que a criança "merecia" esse castigo.

 

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