sexta-feira, 2 de maio de 2025

Trump e o colapso do sistema monetário - Rogerio Studart*

Valor Econômico

Guerra comercial dos EUA terminou por, inadvertidamente, empurrar o sistema de volta para um padrão-ouro - se não para um caos

Vale a pena ler o discurso de Scott Bessent, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, nas reuniões anuais do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nele, o secretário expôs uma estratégia pouco discutida por trás do tarifaço de Donald Trump: a guerra comercial seria uma tentativa de forçar uma reforma profunda no sistema monetário global. Segundo ele, o sistema está disfuncional e incapaz de garantir a estabilidade econômica global (www.bit.ly/3RAYkgP). Essa é uma visão que não é totalmente errada, mas a forma de enfrentá-la proposta por seu governo é, no mínimo, temerária.

A Conferência de Bretton Woods, realizada em 1944, enquanto a Segunda Guerra Mundial ainda acontecia, foi um esforço monumental para criar um sistema monetário internacional estável. Sabidamente por razões geopolíticas que discutimos abaixo, o dólar, vinculado ao ouro a US$ 35 por onça, tornou-se o centro desse sistema, proporcionando estabilidade financeira no pós-guerra. No entanto, com o aumento dos déficits comerciais e fiscais dos EUA, especialmente após a Guerra do Vietnã, a base de reservas de ouro foi diminuindo, até que, em 1971, o presidente Richard Nixon abandonou o padrão-ouro, dando início à era dos câmbios flutuantes e ao domínio absoluto do dólar como moeda de reserva mundial.

Com o fim do padrão-ouro, o sistema monetário global passou a operar sem uma ancoragem estável. A recuperação dos aliados e, especialmente, a ascensão de potências econômicas e a rápida expansão de suas exportações apenas ampliaram as fissuras do sistema. De fato, já a partir dos anos 1960, os EUA passaram a atuar como o “consumidor e devedor de última instância”, enquanto as economias “reemergentes” (como a Alemanha e a França) e emergentes (como o Japão e a China) tornaram-se os principais credores.

Nas últimas décadas, essas fissuras somente se ampliaram. À medida que os EUA começaram a registrar déficits fiscais maiores (atualmente 7% do PIB) e déficits comerciais (3,1% do PIB) e a acumular passivos líquidos de US$ 26 trilhões com estrangeiros até o final de 2024, os detentores de dólares foram, até recentemente, recompensados pelo desempenho superior nos retornos dos ativos financeiros negociados no mercado americano. Frente a esses desequilíbrios trilionários, aumentava a percepção de insustentabilidade do “privilégio exorbitante” dos EUA. De fato, a mudança já vinha ocorrendo antes do tarifaço, com os bancos centrais reduzindo a participação dos dólares em suas reservas de câmbio de 71,5% em 2001 para 57,8% em 2024. Por outro lado, eles vêm adicionando 1.000 toneladas de ouro às suas reservas por três anos consecutivos, detendo hoje mais de 37,7 mil toneladas - o que representa quase 20% das reservas totais a preços atuais.

Antes do tarifaço, o mercado financeiro americano parecia imune a essas tendências: o mercado de ações estava em máximas históricas, embora sujeito a esporádicas correções. O mercado de títulos ainda menos afetado, mas não por muito tempo: empurrados pela desconfiança gerada pelo tarifaço, investidores globais agora estão na fase de “vender ou cobrir os riscos da América” (!). Interessantemente, a espetacular alta nos preços do ouro, alcançando o pico de US$ 3.434 por onça esta semana, sugere uma desdolarização fundamental - não para outras moedas fiduciárias, mas para o ouro!

Diante desse cenário, é evidente que é urgentíssimo rever o sistema monetário internacional - mesmo que agora a oportunidade de salvá-lo tenha se tornado mínima. No passado, nenhuma das tentativas de reforma foi adiante, já que os EUA não se mostraram dispostos a renunciar ao status especial do dólar. Mas talvez, mais do que nunca, alternativas ao que está aí já ressoem naturalmente em muitos debates mundo afora. Uma que escutamos muito nos corredores das reuniões anuais não é tão nova: retoma a proposta de Keynes em Bretton Woods, que sugeria a criação de uma moeda de reserva internacional, “Bancor”, emitida por uma instituição supranacional chamada “International Clearing Union” (União Internacional de Compensação), e portanto não vinculada a uma nação específica.

Método proposto por Trump para a reforma do sistema monetário internacional, e que está sendo aplicado de forma caótica pelo seu governo, arrisca acelerar a desfragmentação da economia global e ampliar exponencialmente a instabilidade geopolítica

O “Bancor”, como se sabe, foi rechaçado pelos EUA por motivos geopolíticos. Mas, mesmo com influência secundária no rechaço a proposta de Keynes, não se pode ignorar as dificuldades tecnológicas de implementá-la à época - imaginem o que seria a proposta utilizando o sistema de contabilização de déficits comerciais de centenas de países e de computação dos ajustes necessários para restaurar desequilíbrios comerciais em expansão!

Hoje, no entanto, o quadro geopolítico é outro e, pelo menos teoricamente, avanços tecnológicos tornam mais factível uma solução como esta - por exemplo, por meio de um sistema digital e descentralizado (um banco digital?) baseado em tecnologia, similar aos utilizados em criptomoedas, de registros distribuídos - “distributed ledgers tecnology” (DLT). Não há dúvida de que a transparência e a segurança dessas tecnologias poderiam resolver os problemas de confiança e de manipulação política das moedas, permitindo um sistema monetário mais estável e resiliente. Com a utilização de DLT, poderia se garantir maior transparência nas transações, aumentando a confiança, ao mesmo tempo em que se evita a centralização do poder econômico.

Lendo a declaração de Bessent, temos a impressão de que os engenheiros financeiros de Trump tentaram usar uma única arma - tarifas - para melar e, assim, redefinir o sistema. Mas, se vemos o resultado, essa tática terminou por, inadvertidamente, empurrar o sistema de volta para um padrão-ouro - se não para um caos. Evidentemente, um rearranjo do sistema monetário internacional não pode ser feito por improviso: ele requer uma nova Bretton Woods - que, lembramos, só ocorreu a partir da convicção de que a insustentabilidade do sistema monetário anterior havia contribuído para o maior conflito armado da história.

O medo de muitos que caminhamos nos corredores das instituições multilaterais nesta última semana é que o método proposto pelo governo do secretário Bessent para a reforma do sistema monetário internacional, e que está sendo aplicado de forma caótica pelo seu governo, arrisque acelerar a desfragmentação da economia global e ampliar exponencialmente a instabilidade geopolítica. Ou seja: que o “remédio” possa matar o paciente e carregar todo o hospital consigo.

*Rogerio Studart é doutor em Economia e foi diretor-executivo do Brasil no BID e no Banco Mundial

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