Valor Econômico
Guerra comercial dos EUA terminou por,
inadvertidamente, empurrar o sistema de volta para um padrão-ouro - se não para
um caos
Vale a pena ler o discurso de Scott Bessent,
secretário do Tesouro dos Estados Unidos, nas reuniões anuais do Fundo
Monetário Internacional (FMI). Nele, o secretário expôs uma estratégia pouco
discutida por trás do tarifaço de Donald Trump: a guerra comercial seria uma
tentativa de forçar uma reforma profunda no sistema monetário global. Segundo
ele, o sistema está disfuncional e incapaz de garantir a estabilidade econômica
global (www.bit.ly/3RAYkgP).
Essa é uma visão que não é totalmente errada, mas a forma de enfrentá-la
proposta por seu governo é, no mínimo, temerária.
A Conferência de Bretton Woods, realizada em 1944, enquanto a Segunda Guerra Mundial ainda acontecia, foi um esforço monumental para criar um sistema monetário internacional estável. Sabidamente por razões geopolíticas que discutimos abaixo, o dólar, vinculado ao ouro a US$ 35 por onça, tornou-se o centro desse sistema, proporcionando estabilidade financeira no pós-guerra. No entanto, com o aumento dos déficits comerciais e fiscais dos EUA, especialmente após a Guerra do Vietnã, a base de reservas de ouro foi diminuindo, até que, em 1971, o presidente Richard Nixon abandonou o padrão-ouro, dando início à era dos câmbios flutuantes e ao domínio absoluto do dólar como moeda de reserva mundial.
Com o fim do padrão-ouro, o sistema monetário
global passou a operar sem uma ancoragem estável. A recuperação dos aliados e,
especialmente, a ascensão de potências econômicas e a rápida expansão de suas
exportações apenas ampliaram as fissuras do sistema. De fato, já a partir dos
anos 1960, os EUA passaram a atuar como o “consumidor e devedor de última
instância”, enquanto as economias “reemergentes” (como a Alemanha e a França) e
emergentes (como o Japão e a China) tornaram-se os principais credores.
Nas últimas décadas, essas fissuras somente
se ampliaram. À medida que os EUA começaram a registrar déficits fiscais
maiores (atualmente 7% do PIB) e déficits comerciais (3,1% do PIB) e a acumular
passivos líquidos de US$ 26 trilhões com estrangeiros até o final de 2024, os
detentores de dólares foram, até recentemente, recompensados pelo desempenho
superior nos retornos dos ativos financeiros negociados no mercado americano.
Frente a esses desequilíbrios trilionários, aumentava a percepção de insustentabilidade
do “privilégio exorbitante” dos EUA. De fato, a mudança já vinha ocorrendo
antes do tarifaço, com os bancos centrais reduzindo a participação dos dólares
em suas reservas de câmbio de 71,5% em 2001 para 57,8% em 2024. Por outro lado,
eles vêm adicionando 1.000 toneladas de ouro às suas reservas por três anos
consecutivos, detendo hoje mais de 37,7 mil toneladas - o que representa quase
20% das reservas totais a preços atuais.
Antes do tarifaço, o mercado financeiro
americano parecia imune a essas tendências: o mercado de ações estava em
máximas históricas, embora sujeito a esporádicas correções. O mercado de
títulos ainda menos afetado, mas não por muito tempo: empurrados pela
desconfiança gerada pelo tarifaço, investidores globais agora estão na fase de
“vender ou cobrir os riscos da América” (!). Interessantemente, a espetacular
alta nos preços do ouro, alcançando o pico de US$ 3.434 por onça esta semana,
sugere uma desdolarização fundamental - não para outras moedas fiduciárias, mas
para o ouro!
Diante desse cenário, é evidente que é
urgentíssimo rever o sistema monetário internacional - mesmo que agora a
oportunidade de salvá-lo tenha se tornado mínima. No passado, nenhuma das
tentativas de reforma foi adiante, já que os EUA não se mostraram dispostos a
renunciar ao status especial do dólar. Mas talvez, mais do que nunca,
alternativas ao que está aí já ressoem naturalmente em muitos debates mundo
afora. Uma que escutamos muito nos corredores das reuniões anuais não é tão
nova: retoma a proposta de Keynes em Bretton Woods, que sugeria a criação de
uma moeda de reserva internacional, “Bancor”, emitida por uma instituição
supranacional chamada “International Clearing Union” (União Internacional de
Compensação), e portanto não vinculada a uma nação específica.
Método proposto por Trump para a reforma do
sistema monetário internacional, e que está sendo aplicado de forma caótica
pelo seu governo, arrisca acelerar a desfragmentação da economia global e
ampliar exponencialmente a instabilidade geopolítica
O “Bancor”, como se sabe, foi rechaçado pelos
EUA por motivos geopolíticos. Mas, mesmo com influência secundária no rechaço a
proposta de Keynes, não se pode ignorar as dificuldades tecnológicas de
implementá-la à época - imaginem o que seria a proposta utilizando o sistema de
contabilização de déficits comerciais de centenas de países e de computação dos
ajustes necessários para restaurar desequilíbrios comerciais em expansão!
Hoje, no entanto, o quadro geopolítico é
outro e, pelo menos teoricamente, avanços tecnológicos tornam mais factível uma
solução como esta - por exemplo, por meio de um sistema digital e
descentralizado (um banco digital?) baseado em tecnologia, similar aos
utilizados em criptomoedas, de registros distribuídos - “distributed ledgers
tecnology” (DLT). Não há dúvida de que a transparência e a segurança dessas
tecnologias poderiam resolver os problemas de confiança e de manipulação
política das moedas, permitindo um sistema monetário mais estável e resiliente.
Com a utilização de DLT, poderia se garantir maior transparência nas
transações, aumentando a confiança, ao mesmo tempo em que se evita a
centralização do poder econômico.
Lendo a declaração de Bessent, temos a
impressão de que os engenheiros financeiros de Trump tentaram usar uma única
arma - tarifas - para melar e, assim, redefinir o sistema. Mas, se vemos o
resultado, essa tática terminou por, inadvertidamente, empurrar o sistema de
volta para um padrão-ouro - se não para um caos. Evidentemente, um rearranjo do
sistema monetário internacional não pode ser feito por improviso: ele requer
uma nova Bretton Woods - que, lembramos, só ocorreu a partir da convicção de
que a insustentabilidade do sistema monetário anterior havia contribuído para o
maior conflito armado da história.
O medo de muitos que caminhamos nos
corredores das instituições multilaterais nesta última semana é que o método
proposto pelo governo do secretário Bessent para a reforma do sistema monetário
internacional, e que está sendo aplicado de forma caótica pelo seu governo,
arrisque acelerar a desfragmentação da economia global e ampliar
exponencialmente a instabilidade geopolítica. Ou seja: que o “remédio” possa
matar o paciente e carregar todo o hospital consigo.
*Rogerio Studart é doutor em Economia e foi diretor-executivo do Brasil no BID e no Banco Mundial
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