Correio Braziliense
O livro vencerá. É a mais nova tecnologia.
Cai e não quebra. Tem todos os programas de computador. Não precisa de energia.
Pode ser levado e lido (em) a qualquer lugar
Na semana passada, comemoramos o Dia Mundial
do Livro (23 de abril), com letra maiúscula, pois o Livro é o meu maior amigo,
que Deus me deu no meu nascimento e me acompanhará até o fim. Acredito que
vinte por cento da minha vida tenho passado o tempo em sua companhia.
Um dia, em São Paulo, ao almoçar com Elio Gaspari, ele me tranquilizou dizendo que duas coisas não iam acabar com a ameaça dos avanços da internet e do livro digital e concluiu: o jornal e o livro não acabarão nunca. Concordei e fui sedimentando essa convicção.
Hoje sei que alguns segmentos do livro foram
atingidos: as enciclopédias e os dicionários já morreram. As minhas
enciclopédias Larousse e Britânica já estão com doença terminal autoimune:
olham-me com os olhos de amargura, pois há muito tempo não as procuro. Estou de
amores novos com a Wikipédia.
Há sete anos participei da Feira do Livro de
Guadalajara, convidado por seu presidente, Raúl Padilla López, a maior feira do
livro em espanhol do mundo — um extraordinário conjunto com imensos espaços,
onde se realizam palestras, seminários, com autógrafos de grandes autores. Ali
encontrei García Márquez, Vargas Llosa, Miguel de la Madrid, Nélida Piñón,
Marisol Schulz e muitos outros.
Pronunciei a conferência inaugural. O tema
era O livro e a internet. Defendi que o livro jamais acabaria e procurei
percorrer o longo e grande caminho da escrita, como consequência da linguagem.
Minha geração viveu entre a magia e a
realidade. Aconteceram fatos e criaram-se coisas que nunca sonhamos pudessem
existir. As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres
inimagináveis. De repente, podemos, com um monitor à nossa frente, a TV,
assistir ao que acontece em todos os lugares e no mesmo instante em que estão
acontecendo. Com um pequeno paralelogramo, uma caixinha que cabe na palma da
mão, o celular, podemos localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo e
com ela falar, comunicar, transmitir notícias, saber do tempo, fazer cálculos e
recuperar os recados mandados de outra máquina — o computador —, numa conexão
universal onde passam quase instantaneamente todas as informações que eu
desejar, milhões e zilhões de dados sobre tudo, que muda a cada segundo, sem um
centro organizador e produtor, e vai crescendo à proporção que alguém a ele se
agrega, nessa teia que não tem limites, ganha o infinito e se chama rede.
A história é marcada por mudanças mais ou
menos bruscas que alteram seu curso. Revoluções, dizemos. A do Fogo, a da Roda,
a da Navegação. Com mais razão, a da Agricultura, da Terra Semeada, a do
Pastoreio. Também dizemos idades: da Pedra, do Bronze, do Ferro. Mas o que
define realmente o homem é sua capacidade de se comunicar. Só com o Homo
habilis, há 2,5 milhões de anos, surge a capacidade fisiológica da linguagem,
talvez com a comunicação simbólica, e apenas com o Homo sapiens sapiens, há
meros 200 mil anos, surge a linguagem propriamente dita. Não sabemos como
surgiu, mas sabemos que ela transformou profundamente a sociedade humana.
Há 100 mil anos a linguagem falada começa a
se diversificar. Ela é o instrumento — instrumento tecnológico — que permite a
troca, que permite o intercâmbio de cultura, que permite a formalização de
estruturas sociais, e é portadora de sua própria transformação.
A tecnologia da escrita foi usada, desde o
começo, como instrumento de poder. Claude Lévi-Strauss — que foi meu amigo e
com quem mantive razoável correspondência — tem uma frase muito forte: a
escrita "era usada para facilitar a escravidão de outros seres
humanos". A escrita esteve associada com a estruturação das sociedades, a
formação de hierarquias internas e de supremacia externa.
A capacidade de aprender sem mestre foi uma
das grandes façanhas da escrita. Mas o verdadeiro feito foi acelerar a
velocidade em que o conhecimento — informação e também sabedoria — era
transmitido. Os intervalos da natureza estão sempre em aceleração, e este
impulso foi maior: a vida tem 4,3 bilhões de anos; primatas, 10 milhões; Homo,
2,5 milhões; Homo sapiens e linguagem falada, 200 mil; escrita, 5.300 anos. O
brusco passo da difusão da cultura oral para a cultura escrita levou 25, 30
séculos. Uma eternidade, mas um instante. Da escrita para cá, corre a
história.
Em Roma, os grandes homens deviam ser também
escritores. Era parte essencial de sua reputação a qualidade do que escreviam.
Assim a memória de Cícero e César encontra a de Virgílio e Plutarco.
A leitura e o livro caminharam. Na Idade
Média a cópia era uma arte, os livros e as bibliotecas, preciosidades. As
bibliotecas das primeiras universidades, como a Sorbonne, tinham umas poucas
centenas de exemplares. Foi quando chegou a revolução de Gutenberg. Com a
imprensa, a difusão do conhecimento daria um salto.
Assim chegamos à era atual em que a internet
ameaça o livro em papel.
Nessa era o livro vencerá. É a mais nova
tecnologia. Cai e não quebra. Tem todos os programas de computador. Não precisa
de energia. Pode ser levado e lido (em) a qualquer lugar: no ônibus, no
automóvel, no avião e no banheiro.
Como é gostoso seu cheiro e poder voltar a
página para verificar o que foi lido!
Não há melhor presente do que um livro.
Quando visitei os Estados Unidos como chefe
de Estado, a Srª Selwa Roosevelt, então chefe do cerimonial da Casa Branca, que
escreveu suas memórias, disse que a mais fácil escolha de presente que teve
para o presidente que visitava os Estados Unidos foi o meu, porque soube que eu
gostava de livro e que ela tinha predileção por Walt Whitman, poeta americano.
E dos grandes. Ela comprou a coleção de suas obras completas e
ofertou-me.
O presidente Reagan as autografou:
"Melhor homenagem eu não poderia fazer ao meu amigo, o Livro, senão estas
palavras, desejando que ele faça parte da vida de todos os brasileiros e
brasileiras".
*Ex-presidente da República, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras
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