CartaCapital
A bandeira é indiscutível, mas é preciso considerar o assalto à cidadania pelos sistemas do dinheiro e do poder
“Domingo, 27 de abril de 2025, o jornal O
Estado de S. Paulo ofereceu aos seus leitores uma matéria encabeçada por um
título desafiador. “Aí vai: como ir além do ‘voo de galinha’? O que o
Brasil precisa fazer para ter uma economia forte?”
O conhecido e reconhecido economista Eduardo
Gianetti da Fonseca apresentou suas razões aos felizardos leitores do Estadão:
“As nações que conseguiram enriquecer foram aquelas que construíram economias mais produtivas. Elas concentram seus esforços na formação de capital humano, têm instituições sólidas, são integradas às cadeias globais e fazem uma alocação eficiente de recursos. São donas, portanto, de uma mão de obra qualificada e de um bom ambiente de negócios. Tudo isso resulta em uma população altamente educada, com acesso a empregos de qualidade e, consequentemente, mais rica”.
O editor do Le Monde Diplomatique, Ignacio
Ramonet, criou a expressão “pensamento único” para designar o sistema de dogmas
– econômicos, sociais e políticos – que atazana a paciência dos cidadãos e
cidadãs, neste início de milênio. Entre as certezas graníticas e inabaláveis produzidas
por esse movimento de uniformização das consciências, uma desperta grande
entusiasmo e unanimidade: quanto mais treinada e educada a força de trabalho,
melhor será o desempenho da economia, mais qualificados os empregos e mais
justa a distribuição de renda.
A educação foi sempre uma cláusula pétrea do
credo iluminista-republicano. Não há de existir cidadania sem educação
universal e pública. Sem ela estariam seriamente arriscadas a liberdade e a
igualdade. O ideal da educação para todos nasceu comprometido com o projeto de
autonomia do indivíduo, do cidadão, enquanto titular de direitos e fonte do
poder republicano. A versão bastarda surge das exigências impostas pela
engrenagem econômica, administrativa e ideológica do capitalismo.
A modernidade avança de forma contraditória,
impulsionada pela tensão permanente entre as forças e valores da concorrência
capitalista e os anseios de autonomia do indivíduo integrado responsavelmente
na sociedade. Esse conflito evolui entre a dimensão utilitarista da
sociabilidade – forjada na indiferença do valor de troca e do dinheiro – e os
projetos de progresso social que postulam a autonomia do indivíduo, ou seja,
reivindicam o direito à singularidade e à diferença.
Nestes tempos em que são proclamadas verdades
incontestáveis e andam escassas as alternativas, as funções engendradas pelos
sistemas do dinheiro e do poder vêm usurpando, sem a menor cerimônia, as
prerrogativas da cidadania. O leitor há de concordar: na avaliação dos bacanas,
o gasto público em educação vale a pena, inicialmente, porque é fator de
produtividade e de competitividade, além de supostamente oferecer igualdade de
oportunidades aos que se apresentam ao julgamento sempre imparcial e impessoal dos
mercados.
A experiência dos países asiáticos, Japão,
Coreia e Taiwan, é frequentemente invocada pelos corifeus do pensamento único
como a comprovação da importância da educação para o crescimento acelerado da
produtividade da mão de obra, aquisição de vantagens comparativas dinâmicas e
melhor distribuição de renda. Realçar o papel da educação e do treinamento,
além de não encontrar oposição na chamada opinião pública, é uma forma de
desqualificar as demais características do estilo de desenvolvimento desses
países. A maioria delas – como o forte papel indutor do Estado, a estrutura e
dinâmica das empresas, a natureza dos sistemas financeiros e a forma de
integração à economia global – está banida dos manuais de redação dos
conselheiros e divulgadores do pensamento único.
Vou despertar as inquietações que infestam
minha formação sistêmico-estruturalista. Peço licença para recorrer às relações
centrais que configuram a dinâmica da economia industrial-financeira
capitalista.
Realçar o papel da educação às vezes é
desqualificar as demais exigências do desenvolvimento
A grande concentração de capital fixo e a
dominância dos bancos na intermediação financeira ancoram a dinâmica de longo
prazo do capitalismo no aumento da produtividade social do trabalho, o que, por
sua vez, impulsiona a competição pela inovação tecnológica incorporada nas
novas gerações de insumos e equipamentos.
No processo de autotransformação, a
materialidade do capital fixo entrega sua alma à espiritualidade do trabalho
intelectual. Peço, mais uma vez, permissão ao leitor para apresentar a
argumentação de Karl Marx nos Grundrisse.
“Quando o capital fixo aparece como uma
máquina no processo de produção, em oposição ao trabalho, quando o processo de
trabalho em sua totalidade não está mais submetido à habilidade do trabalhador,
mas à aplicação tecnológica da ciência, então a tendência do capital é dar à
produção um caráter científico. … O desenvolvimento do capital fixo indica o
grau em que o conhecimento social se tornou uma força direta de produção e em
que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado sob o controle do
General Intellect e passou a ser transformado de acordo com ele.”
O General Intellect acelera a valorização do
capital e a desvalorização do trabalho direto e se institui em uma forma de
apropriação dos significados do conhecimento humano, em particular dos códigos
da ciência. O capital toma para seus propósitos a educação, cujos métodos e
objetivos são ajustados aos requerimentos dos mercados de trabalho cada vez
mais exclusivos e “excludentes”.
É intenso o movimento de automação baseado na
utilização de redes de “máquinas inteligentes”. Nanotecnologia, neurociência,
biotecnologia, novas formas de energia e novos materiais formam o bloco de
inovações com enorme potencial de revolucionar outra vez as bases técnicas do
capitalismo. Todos os métodos que nascem dessa base técnica não podem senão
confirmar sua razão interna: são métodos de produção destinados a aumentar a
produtividade social do trabalho em escala crescente. Sua aplicação continuada
torna o trabalho imediato cada vez mais redundante. A autonomização da
estrutura técnica significa que a aplicação da ciência se torna o critério
dominante no desenvolvimento da produção.
Os avanços da Inteligência Artificial, da internet das coisas e da nanotecnologia agravaram as assimetrias entre países, classes sociais e empresas. Isso suscitou a intensificação da introdução dos métodos “industriais” na agricultura e nos serviços, promovendo o que convencionamos qualificar de hiperindustrialização.
*Este artigo utilizou trechos do meu livro A
Escassez na Abundância Capitalista.
Publicado na edição n° 1360 de CartaCapital,
em 07 de maio de 2025.
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