O Estado de S. Paulo
Insisto: como a cultura dita “ocidental” enxerga essa entidade exterior e torturantemente real a que damos o nome de natureza?
Quando você olha para uma árvore, o que vê? A pergunta , embora soe brincalhona, carrega uma gravidade de todo tamanho. Eu a formulo a propósito da COP-30, que se aproxima da agenda global na forma de um rio intermitente, de águas débeis e incertas. Às vezes, esse rio figurado parece fluir: o número de países com presenças confirmadas na conferência já teria alcançado o quórum exigido pela ONU. Outras vezes parece secar: não haverá vagas para as delegações nos hotéis inflacionados de Belém, e muita gente não sabe até agora se poderá vir ou não. Em resumo, pelo menos até agora, só uma coisa é certa: não existe nada certo.
Os sentidos se embaralham. É como se a
desorganização caótica quisesse nos dizer alguma coisa. Uma trama inusitada,
tecida no coração da selva, lança um recado para a civilização. Essa confusão
orgânica, esse sopro de desgoverno e de imprevisibilidade congênita delineia,
um pouco sem querer, o ecossistema indisciplinado que reivindica visibilidade.
A floresta e seus povos se insinuam para lentes diplomáticas, mas logo saem de
foco. Existe algo ali para ser compreendido, mas os protocolos multilaterais
não conseguem divisar esse estranho “algo”. O que nos traz de volta à indagação
inicial: o que os protocolos veem quando olham para uma árvore?
Insisto: como a cultura dita “ocidental”
enxerga essa entidade exterior e torturantemente real a que damos o nome de
natureza? As respostas mais eloquentes nos chegam da indústria do
entretenimento. Prestemos atenção a uma das séries de maior sucesso na Netflix,
A vida no nosso planeta. Em oito episódios, o documentário, que foi lançado em
2023 e teve Steven Spielberg como produtor-executivo, é um requinte em matéria
de efeitos especiais sobre pré-história, erupções vulcânicas e bichos em geral.
Os organismos unicelulares e os olhos baços do Tiranossauro Rex aparecem em
tomadas de um hiper-realismo sintético. O show de imagens faz cintilarem o
reino animal, o reino vegetal e o reino mineral em cores e movimentos jamais
vistos. Os pinguins mergulham como se dançassem, os pterossauros flanam como
plumas, o canino do leão da caverna traz o resto de sangue do filhote de mamute
abatido. As sequoias, sempre elas, sobem para o céu deixando as câmeras para
baixo.
Insisto: como a cultura dita “ocidental”
enxerga essa entidade exterior e torturantemente real a que damos o nome de
natureza?
A exuberância assoma. Mas, espetáculo à
parte, será isso a natureza? Creio que não. Logo no primeiro episódio, a voz do
narrador Morgan Freeman estabelece as três regras para a vida no planeta,
segundo o entendimento dos roteiristas: o mais apto sempre vai prevalecer, o ambiente
pode agir contra ou a favor da sobrevivência de todos os seres e, por fim, o
que move a evolução é a competição. As regras podem ser convincentes, admito,
mas, não, isso não é a natureza. Isso está mais para as premissas de
planejamento estratégico, não do reino animal ou vegetal, mas do reino
empresarial.
A superprodução A vida no nosso planeta não
descreve o bico do beija-flor ou as ondulações das águas-vivas – descreve o
mercado por meio de aves e medusas. O documentário fala mais sobre o modo como
o capitalismo vê a si mesmo e fala menos sobre a vida na Terra. Quando discorre
sobre os cataclismos que despejaram magma sobre continentes inteiros, a série
parece aplicar sobre a paisagem a famigerada matriz Swot: tudo é uma questão de
avaliar os riscos e as oportunidades. Quando celebra os animais que se
proliferaram mais, parece falar de market share. E, ainda por cima, há o belicismo
desembestado. As metáforas de guerra – tão comuns no linguajar dos CEOs, que
adoram assediar um “público-alvo” – dominam a narrativa. A evolução da fauna e
da flora, nas modulações vocais de Morgan Freeman, é a terceira guerra mundial
sem trégua à vista.
Não, o nome disso não é natureza. O nome
disso é ideologia. O entretenimento, quando fala da evolução da vida, fala do
capital. Com a ciência é assim também. Com a medicina, igualmente: as regras de
higiene têm mais de repressão sexual do que de limpeza.
Quando leu Charles Darwin, o psicanalista
francês Jacques Lacan anotou que o gênio evolucionista tinha “projetado as
predações da sociedade vitoriana” em seus escritos. No artigo chamado A
agressividade em psicanálise, Lacan disse que Darwin justificava “a devastação
social em escala planetária” por meio da “imagem de um laissez-faire dos
devoradores mais fortes em sua competição por sua presa natural”.
Darwin olhou para Galápagos e viu a luta de
classes. O entretenimento, o porta-voz (e a porta-bandeira) da tecnociência,
olha para uma árvore e, sobre a folhagem, não vê nada além de uma projeção de
si. E você, o que vê?
A pergunta se mantém, pois é boa e
pertinente. Mas, talvez, ainda melhor do que ela, ainda mais grave, seja uma
outra. A interrogação mais decisiva, a essa altura, é a inversa. O que será que
sente uma planta – uma samambaia, um pé de jaca, um pau-brasil ou a monumental
sumaúma – quando você se aproxima dela? O que pensa um vegetal? Qual a opinião
das gramíneas sobre as nossas solas de sapato? Se conhecêssemos a resposta, o
mundo seria outro.
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