terça-feira, 2 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

 

‘É preciso parar esse cara’ – Opinião / O Estado de S. Paulo

O senador Tasso Jereissati foi enfático: 'É preciso parar esse cara'. Veterano, ele expressou sua estupefação com o comportamento do presidente

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) foi enfático: “É preciso parar esse cara”, disse, em entrevista ao Estado, referindo-se ao presidente Jair Bolsonaro.

Político veterano, desses que já viram quase tudo na vida pública, Tasso Jereissati expressou sua estupefação com o comportamento do presidente, a quem infelizmente coube administrar o País em meio a uma das mais graves crises da história.

Bolsonaro não se limita a ser irresponsável ou omisso. Tornou-se nocivo, ao atrapalhar deliberadamente os esforços de profissionais de saúde e de autoridades públicas empenhados em conter o avanço da pandemia de covid-19.

Em meio ao recrudescimento da doença, enquanto governadores e prefeitos enfrentam o desgaste de decretar medidas drásticas para tentar frear o coronavírus e os médicos, em razão da falta de leitos de UTI, são obrigados a escolher quem vai viver e quem vai morrer, o presidente promove aglomerações, desestimula o uso de máscaras, desmoraliza vacinas e atiça a população contra as autoridades que, ao contrário dele, fazem o que precisa ser feito.

A mais recente agressão ocorreu no dia 26 passado, quando Bolsonaro chamou de “politicalha” as medidas restritivas adotadas contra a covid-19 e disse que “daqui para frente o governador que fechar seu Estado, o governador que destrói emprego, ele é que deve bancar o auxílio emergencial”.

A respeito do iminente colapso do sistema de saúde, o presidente disse que “a Saúde no Brasil sempre teve seus problemas” e que “a falta de UTIs era um deles”, como se a atual crise fosse fruto não de sua inépcia, mas do passivo de outros governos. Para completar, ante a informação de que seu governo reduziu drasticamente o financiamento de leitos de UTIs em plena pandemia, Bolsonaro apresentou dados distorcidos sobre repasses de verbas da União aos Estados para insinuar que dinheiro havia, mas não foi usado como deveria.

Merval Pereira - Caindo pelas tabelas

- O Globo

Por onde quer que se pegue, o Brasil está literalmente descendo a ladeira, caindo pelas tabelas das principais estatísticas internacionais. A começar pelo combate à pandemia da Covid-19, passando por questões internas que nos afastam assustadoramente do mundo ocidental civilizado. Em números absolutos, temos o desonroso segundo lugar no mundo, com mais de 255 mil mortes por Covid-19.

Mesmo quando colocado em termos proporcionais, o número no Brasil fica entre os 30 países mais atingidos dos 178 com mais mortes por Covid-19 para cada 100 mil habitantes. Também na comparação proporcional, houve mais mortos no Brasil do que na Argentina, Alemanha e Rússia. Com relação à vacinação em massa, a estimativa é de que só será alcançada em meados de 2022, segundo a Economist Intelligence Unit.

A plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford, indica que o Brasil aplicou, até o momento, 3,97 doses para cada 100 habitantes. O país com a maior taxa de vacinação no mundo é Israel, com 93,5 vacinados para cada 100 habitantes. Não por acaso, o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, faz propaganda na televisão para estimular a vacinação, e o presidente brasileiro usa suas lives na internet para propagar o negacionismo, falar contra o uso de máscaras e sobre os pretensos perigos da vacinação.

Essa calamidade do combate à pandemia no Brasil se refletirá certamente na medição do Índice de Desenvolvimento Humano feito pelo Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (Pnud), que avalia a saúde, a educação e o padrão de vida dos países. O Brasil perdeu cinco posições no ranking mundial na última medição, passou do 79º para o 84º lugar entre 189 países. Perdemos também duas posições na América Latina, ficando atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia.

Míriam Leitão - Vida mais curta e outros recuos

- O Globo

Em 2030 ainda se sentirá o efeito da pandemia nas estatísticas brasileiras. As projeções refeitas da população podem registrar de um milhão e meio a três milhões menos brasileiros do que haveria se não tivesse ocorrido a pandemia. A crise sanitária reduziu a expectativa de vida dos brasileiros em 2,2 anos, segundo cálculos atualizados da demógrafa Ana Amélia Camarano, e isso mexe com todas as outras projeções. Há vários efeitos da pandemia na vida das pessoas. A participação da mulher no mercado de trabalho caiu aos níveis dos anos 1990. A morte dos mais velhos pode impactar fortemente a renda de milhões de famílias.

Há muito tempo os demógrafos calculam o momento em que o número de habitantes do país passará a diminuir anualmente, em vez de aumentar. Cada demógrafo ou instituto faz um cálculo diferente, dependendo das premissas. Mas uma coisa é certa: o encolhimento vai acontecer mais cedo e de forma mais intensa por causa da redução da expectativa de vida que está ocorrendo agora.

— Comparando a projeção que eu fiz em 2018 para a população brasileira com a que faço diante da diminuição da expectativa de vida, concluo que haverá um milhão e meio de brasileiros a menos na população. Na projeção do IBGE, o número pode ser de três milhões de brasileiros a menos. Alguns dados ainda nem se conhece, como a queda da taxa de fecundidade — diz a pesquisadora do Ipea.

Ana Amélia vinha chamando a atenção nos seus artigos e entrevistas para o fenômeno do prolongamento da vida no Brasil, e todas as mudanças decorrentes disso. Os brasileiros vivendo mais mudavam os seus hábitos e isso tem impacto na economia. A demógrafa costuma usar a expressão “os novos velhos” para se referir a pessoas com mais de 60 anos que estão mudando o conceito do que é ser velho:

— A recomendação médica era para a pessoa sair de casa, fazer exercício, encontrar os amigos para ter uma velhice saudável. O mercado de trabalho começava a rever seus conceitos, aceitando pessoas mais velhas. Um mercado de consumo de viagens, turismo e entretenimento se voltava para esse segmento. A pandemia mudou tudo isso.

Carlos Andreazza - Um modo de privatizar

- O Globo

O Parlamento esteve paralisado — por mais de semana — em decorrência do caso Daniel Silveira; escada para que Arthur Lira pusesse em marcha o trator que pretendeu alargar a câmara de blindagem que distingue a casta política brasileira. Afinal, a PEC da Impunidade não prosperaria. Mas foi a agenda legislativa do Brasil — ainda sem Orçamento para 2021, ainda sem solução para a volta do auxílio emergencial — na semana em que o país bateu o recorde de mortos pela peste em um só dia.

Nada mais se moveu no Congresso, desde a prisão do deputado, senão a tentativa corporativista de subverter o princípio da imunidade parlamentar para que crimes como o de Silveira — contra a ordem democrática — restassem autorizados. O Parlamento, à cata de escudar seus investigados por corrupção, quase aceitou dar guarida à fábrica de conflitos que ataca a própria democracia representativa. Exemplo perfeito do que produz a sociedade entre bolsonarismo e Centrão. Exemplo também de por que a natureza — para o golpismo — da base social que elegeu Bolsonaro contamina e interdita qualquer pauta reformista.

Avalie-se a constituição da persona do presidente e do fenômeno reacionário que encarna — exercício que mostra como sempre foi improvável crer que um seu governo pudesse reformar o Estado. Um sujeito cuja ignorância econômica forjou-se na segunda metade da década de 1970; péssimo militar cujos rudimentos sobre economia beberam do fetiche de um Brasil Grande induzido pelo governo central.

Eliane Cantanhêde – E daí, deixar pra lá?

- O Estado de S. Paulo

Bolsonaro é contra isolamento, máscara e vacina, mas oferece o que contra a covid-19?

O presidente da Câmara, Arthur Lira, interditou definitivamente a palavra “impeachment” e o do Senado, Rodrigo Pacheco, engavetou indefinidamente a CPI da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro, porém, precisa responder uma pergunta que o Brasil faz e a história ratificará: qual é a política dele para enfrentar a pandemia? Ninguém sabe, ninguém viu.

Sua ojeriza à ciência, à medicina, à pesquisa e às estatísticas é chocante e seu comportamento e suas declarações raiam o patológico. Ele é contra todas as medidas internacionalmente consensuais na pandemia, mas não contrapõe nada, não apresenta uma única proposta no lugar.

Quase um ano, 255 mil mortos e 10,5 milhões de contaminados depois, o presidente ainda trata a Covid-19 como “gripezinha”, anunciou que a doença estava no “finalzinho” exatamente quando ela disparava de novo e é capaz de levar a sério quem chama de “fraudemia” uma pandemia que matou 2,5 milhões de pessoas no planeta. 

Todos os países sérios priorizaram o isolamento social, mas Bolsonaro não seguiu estudos do Exército e da Abin e não liderou o Brasil nessa direção. Ao contrário, trabalhou contra, promoveu aglomerações até diante do QG do Exército e ameaça os governadores: quem decretar lockdown que pague o auxílio emergencial. Sem vacinas suficientes, que alternativa eles têm? Lavar as mãos para as mortes?

No domingo, em pleno caos no País, ele postou imagens de um protesto contra medidas restritivas no DF, com 97% das UTIs lotadas. Assim como os bolsonaristas comemoraram o recuo das restrições no Amazonas, que deu no que deu, os filhos do presidente defendem o recuo do DF, que vai dar no mesmo.

Paulo Hartung* - A necessária resiliência e os aprendizados em travessias tormentosas

- O Estado de S. Paulo

Nas palavras de Albert Camus, ‘a única maneira de lidar com a peste é com decência’

Todo tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude. Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.

Em meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica, até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.

Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.

Pedro Fernando Nery* - Para onde vai o gasto?

-  O Estado de S. Paulo

A discussão sobre um novo benefício social é também uma discussão federativa

O valor recebido por habitante em pagamentos federais é três vezes maior no Rio de Janeiro do que no Pará. Os pagamentos do governo federal por pessoa são 50% maiores no Rio Grande do Sul do que no Rio Grande do Norte. O gasto com cada cidadão no Distrito Federal é 25 vezes maior do que no Amazonas.

Na última semana, defendi na coluna a necessidade de reformas que orientem os gastos públicos para os mais pobres. Um ponto de partida é examinar para onde vai o gasto no espaço. Façamos isso para o gasto direto do governo – deixando para a próxima oportunidade a discussão do gasto indireto, as renúncias de impostos.

A maior parte do gasto federal corresponde a algum tipo de transferência, isto é, um pagamento mensal diretamente na conta de uma pessoa física. São salários de servidores, benefícios de regimes de previdência (aposentadorias, pensões), benefícios trabalhistas do Fundo de Amparo ao Trabalhador (seguro-desemprego, abono salarial) e benefícios assistenciais (Bolsa FamíliaBPC). O grau de contrapartida desses pagamentos, portanto, varia.

Em 2019, somaram R$ 1 trilhão e 100 bilhões – algo como 80% da despesa primária total do governo federal. Por sua natureza, é mais fácil identificar a distribuição regional desses gastos. Por exemplo, quanto vai para cada Unidade da Federação (UF). Como elas possuem populações muito diferentes em tamanho, é pertinente dividir o gasto em cada UF pela sua população. Daí decorrem os dados do primeiro parágrafo, que apontam para como a União distribui seus recursos em termos per capita e como o dinheiro federal afeta as economias locais.

Hélio Schwartsman – Quando Deus mata

- Folha de S. Paulo

Judeus ultraortodoxos apostam na proteção de Deus contra o vírus

Deu no New York Times. Em Israel, religiosos ultraortodoxos representam 12,6% da população, mas respondem por 28% das infecções por Covid-19.

Não é difícil entender as razões físicas para o excesso de contágio. Os ultraortodoxos, também conhecidos como "haredim" (tementes), tendem a constituir famílias numerosas, que dividem habitações de poucos cômodos. Desconfiam profundamente de tudo o que venha do Estado, incluindo recomendações sanitárias. Alguns até usam máscaras, mas fazê-lo está longe de ser a regra.

Talvez mais importante, os "haredim" não renunciam à vida comunitária, cujas práticas frequentemente os colocam em aglomerações. Ironia perversa, dão grande valor aos ritos fúnebres, que exigem que cada fiel abra caminho na multidão para tocar o esquife do morto. "Quantos funerais este funeral irá ocasionar?", perguntou-se uma "haredi" chocada com as cenas de empurra-empurra em um enterro.

Alvaro Costa e Silva – De velhinho a brotinho

- Folha de S. Paulo

Com a vacinação, idosos retomam sua vida no bairro

Alguém deve se lembrar de "Cocoon". Lançado em 1985, fez sucesso, teve uma continuação, deu um Oscar de ator coadjuvante a Don Ameche, volta e meia reaparece numa vadia sessão da tarde. No streaming, como acontece a qualquer filme com mais de 30 anos, é considerado um "clássico".

Valendo as etiquetas das antigas locadoras de vídeo, é uma comédia dramática, com toques de ficção científica: extraterrestres têm a missão de resgatar casulos que estão na piscina de uma casa abandonada. Sem desconfiar de nada, três aposentados que vivem num asilo da Flórida banham-se nela e descobrem, na água energizada, a fonte da juventude. Da noite para o dia, os velhinhos tornam-se brotinhos, fazendo de novo todas as estripulias de que sentiam saudade.

Um bairro do Rio, hoje, é um cenário real de "Cocoon": Copacabana, com a maior concentração de idosos do país (quase um terço dos moradores tem mais de 60 anos) e que, no ano passado, chegou a liderar na cidade o número de casos de mortes pela Covid-19. À medida que a vacinação avançar, eles deixarão o casulo dos apartamentos. Não só para ir ao posto de saúde como para retomar suas atividades --a maioria usando máscara e respeitando o distanciamento social.

Joel Pinheiro da Fonseca* - Os limites da liberdade de expressão

- Folha de S. Paulo

Cerceamento do extremismo desonestos é bem-vindo

As empresas de redes sociais, bem como os Estados nacionais, têm tomado medidas que na prática limitam o debate público. Negacionismo, cloroquina, desejo de matar ministros; tudo isso vem sendo cerceado. Devemos nos preocupar pela liberdade de expressões tolhida?

A ciência, e o pensamento humano de maneira geral, precisa do contraditório para progredir. A defesa de hipóteses minoritárias, teses ousadas e mesmo dissidentes é benéfica para o conhecimento. Por vezes, a posição minoritária pode estar certa. Mesmo quando errada, pode ter alguns elementos corretos, ter identificado falhas reais na tese dominante. E, mesmo quando a tese majoritária está correta, a necessidade de defendê-la fortalece os argumentos a seu favor.

Uma das características da real discussão de ideias é que ela se dá longe da pressão popular. Seu objetivo é a verdade (nunca plenamente alcançada), e não a popularidade, o dinheiro ou o poder. Ela se dá prioritariamente entre especialistas e outros interlocutores já familiarizados com a fronteira do conhecimento. Esses são sempre poucos, ao contrário do grande público, incapaz de acompanhar o estado atual da discussão.

Luiz Carlos Azedo - O retrato da (in)governança

- Correio Braziliense

 “A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país”

A foto divulgada pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, na noite de domingo, com as sete pessoas mais importantes da República –– excluídos o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, e vice-presidente Hamilton Mourão ––, após uma reunião fora da agenda no Palácio da Alvorada, diz muito mais sobre o que se deixa de fazer do que sobre qualquer outra coisa. Embora os assuntos tratados, segundo o post, fossem muito relevantes: vacina, auxílio emergencial, emprego e situação da pandemia. As conclusões da reunião são um mistério.

Quem são as autoridades na foto? Além de Bolsonaro, os generais Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Eduardo Pazuello (Saúde), todos sem máscara, a atitude mais negativista possível em relação à pandemia; os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, esses com máscaras. Evidentemente, a foto sinaliza força política, os pilares da governabilidade: a união entre os generais do Palácio do Planalto e os chefes do Legislativo, além do homem que toma conta do cofre da União, em torno do presidente da República.

Mais governabilidade, impossível. Entretanto, a foto é o retrato da crise de governança em que o país está sendo lançado. A reunião não apontou um rumo. Muito pelo contrário, a crise sanitária se agrava, a escassez de vacinas retarda a imunização em massa, permanece o impasse sobre a PEC Emergencial, a economia desanda. Não foi à toa que o dia de ontem foi pautado pelas manifestações de governadores e prefeitos cobrando mais responsabilidade do governo federal e do Congresso no enfrentamento da crise sanitária. Na semana passada, como em outras, não era essa a prioridade de Bolsonaro e das principais lideranças do Poder Legislativo.

Ricardo Noblat - Quem desconhece o passado é incapaz de enxergar o futuro

- Blog do Noblat / Veja

Que país é o Brasil?

Que país é este onde a Independência foi proclamada por um estrangeiro e a República por um general monarquista? Onde um presidente se suicida para não ser deposto, outro renuncia na esperança de voltar nos braços do povo e não volta, e um terceiro baixa ao hospital 24 horas antes de tomar posse e morre?

Que país é este onde militares cancelam a democracia a pretexto de defendê-la, implantam uma ditadura que dura 21 anos, expulsam do Exército um capitão que planejara atentados a bomba a quartéis, e depois de marginalizá-lo por décadas o ajudam a se eleger presidente da República, a governar e a comandá-los?

Que país é este onde a maior parte do povo, ou parte expressiva dele, ameaçada de morte por um vírus há mais de ano, dá ouvidos e poderá em breve dar seus votos para reeleger um presidente que só faz mentir desde que assumiu o cargo, e que prefere sacrificar vidas a reconhecer e corrigir a tempo os erros que comete?

Que país é este onde a assaz louvada maior operação de combate à corrupção jamais vista no mundo desmorona à luz da descoberta de que seus condutores violaram princípios do Direito aprendidos nos bancos escolares e ultrapassaram limites impostos pelas leis que tinham a obrigação de respeitar com o máximo rigor?

Este país é o nosso, que se dizia antigamente o país do futuro, há séculos dividido entre os poucos ricos e os milhões de pobres, entre os brancos que ocupam os postos mais elevados na órbita dos poderes e os pretos contados que conseguem chegar lá, entre os que toleram o intolerável e os que a ele resistem a duras penas.

Andrea Jubé - A pandemia pela cartilha do coronel

- Valor Econômico

Para Randolfe Rodrigues, últimos fatos precipitam CPI da covid

O Coronel Emílio é um chefe político de prestígio local, cujos domínios se estendem pelas fazendas de gado e metade da vila. Certo dia, ele recebe a notícia do assassinato de Bento Porfírio, um de seus capatazes, que estava de chamego com a prima De-Lourdes, casada com o Xandão Cabaça.

Quando o marido descobriu a traição, espreitou o detrator em uma pescaria, golpeou-o pelas costas com uma foice e fugiu sem deixar rastro.

Ao ser informado pelo sobrinho da tragédia envolvendo um de seus empregados mais antigos, Tio Emílio reagiu com fleuma: “Boi sonso, marrada certa”.

Perplexo, o sobrinho cobrou compaixão: “O senhor que é tão justiceiro e correto, e que gostava tanto do Bento Porfírio, vai deixar isto assim?”

De súbito, entretanto, o coronel bateu na testa, saltou da cadeira, e ordenou que os jagunços fossem ao encalço do fugitivo da lei.

O objetivo da ordem, entretanto, não era fazer justiça à vítima. O coronel estava preocupado em mitigar danos eleitorais. “Já perdi um voto, e, se o desgraçado fugir para longe, são dois que eu perco!”, desabafou com o sobrinho.

Pela cartilha do velho coronel político, retratado por Guimarães Rosa em “Sagarana” (1946), uma vida vale um voto. No Brasil da pandemia, a impressão que se tem é que a vida não vale nem isso mais. Se valer, os políticos já perderam pelo menos mais de 200 mil votos.

A diferença entre o Coronel Emílio e uma ala de políticos da vida real é que pelo menos o personagem se preocupava com a preservação da vida de seus eleitores, ainda que por razões pragmáticas.

Pedro Cafardo - Emergente apático e com cara de subdesenvolvido

- Valor Econômico

País não demonstra a gana necessária para emergir e parece resignado com seu próprio subdesenvolvimento

O programa liberal do governo Jair Bolsonaro levou uma surra do “mercado” na semana passada. Bastou o presidente anunciar a troca do presidente da Petrobras, que havia sido indicado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para que a bolsa desabasse e o dólar subisse.

O “mercado” parece não acreditar mais na palavra de Bolsonaro, que se elegeu presidente, a despeito de sua biografia autoritária, com o discurso de que as decisões econômicas seriam do liberal Guedes. Na sua santa ingenuidade, o “mercado” acreditou e o ajudou a se eleger.

Se o mercado fosse sem aspas, daria importância também ao que a atual gestão do governo não está fazendo. É absurdo que no debate econômico de hoje sejam considerados relevantes, como escreveu o economista André Lara Resende, apenas o risco fiscal e o equilíbrio das contas públicas.

Ainda que as reformas sejam feitas e que o risco fiscal seja debelado, o país não estará salvo nem pronto para virar potência econômica. O leitor atento já viu neste espaço que o presidente dos EUA de 1933 a 1945, Franklin Roosevelt, aconselhava seus auxiliares a ousar e persistir na adoção de políticas de desenvolvimento. Mesmo que algumas fracassassem, a ideia era tentar outros modelos e buscar obstinadamente o crescimento. Detalhe: a economia americana cresceu, em média, mais de 8% ao ano durante seus 12 anos de governo.

Promover reformas é saudável, mas fazer só isso e esperar a pandemia passar para começar a pensar no planejamento econômico constituiu omissão. Mesmo antes do fim da pandemia e da conclusão das reformas, o país precisa se preparar para uma fase em que o investimento público vá puxar o crescimento da economia e do emprego. [Cabe aqui uma reflexão, entre colchetes: será que algum dia as reformas vão terminar? Desde 1964, quando João Goulart propagava suas reformas de base, nunca mais paramos de ouvir falar nelas]. Não se pode esperar, ingenuamente, que o desenvolvimento se dê num passe de mágica, por obra e graça do “mercado”. A recuperação pós-pandemia depende de ações obstinadas do setor público.

Luiz Gonzaga Belluzzo* - O coração e a razão

- Valor Econômico

Para Hayek, as políticas de combate à desigualdade abafam o impulso inovador dos indivíduos

Leio na “Folha de S. Paulo”: na posteridade do debate promovido pelo Valor, a economista Monica De Bolle foi às redes sociais para se queixar do machismo de Arminio Fraga.

A faísca, informa a Folha, foi o ex-presidente do Banco Central classificar um discurso de De Bolle como sendo do “coração”. “É fácil fazer esse discurso e ele mexe no coração da gente. Só acho que é preciso certo cuidado”, afirmou Arminio após uma longa fala da professora da Universidade Johns Hopkins.

Monica defendia auxílio emergencial sem condicionalidades e criticava o esvaziamento do debate sobre responsabilidade fiscal. Segundo ela, a discussão de política orçamentária não coloca a sociedade e a campanha de vacinação como elementos centrais e tem sido usada para a “relativização das mortes”.

Diante do episódio, acudiu-me relembrar o filme “As Confissões”, de Roberto Andò. A atriz, que encarna a ministra das Finanças do Canadá, reproduz uma piada contada por outro personagem, o diretor-gerente do FMI, apelidado Daniel Roché: “Um candidato a transplante de coração recusa uma oferta de órgão retirado de um menino: não quero, é muito jovem. Em seguida, os médicos oferecem o coração de um gestor de hedge fund. Ele recusa porque o tipo não tem coração. Os médicos insistem: aceite o coração de um banqueiro central. Ele aceita porque esse coração nunca foi usado”.

As desavenças com o coração também frequentam as sabedorias de Paulo Guedes. O Estadão de 11 de fevereiro da 2019 registra a entrevista concedida ao Financial Times pelo ministro da Economia. O jornal britânico relata que ele toca um dedo em sua têmpora. “As pessoas da esquerda têm cabeças 'fracas' e bom coração”, diz ele. “As pessoas da direita têm cabeças fortes e...” Ele procura a frase correta. "Corações não tão bons”.

Música | Teresa Cristina - Último Desejo (Noel Rosa)

 

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Mãos dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.

 

segunda-feira, 1 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

A decepção com Bolsonaro – Opinião / O Estado de S. Paulo

Por diferentes motivos, mesmo os crédulos que confiaram nas promessas liberais e modernizantes de Bolsonaro começam a suspeitar que foram enganados

O desapontamento com o governo Bolsonaro não é um fato novo. Há quem tenha se desencantado com Jair Bolsonaro em razão, por exemplo, da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça em abril de 2020. Na ocasião, o ex-juiz da Lava Jato relatou tentativas de interferência por parte do presidente na condução da Polícia Federal. O episódio levou a que muita gente revisse sua ideia sobre a suposta carta branca que Jair Bolsonaro teria dado a Sérgio Moro para o combate à corrupção.

Na semana passada, a interferência de Jair Bolsonaro na presidência da Petrobrás produziu uma nova onda de decepção. Além dos efeitos devastadores sobre a empresa, com prejuízos muito concretos para as centenas de milhares de acionistas minoritários, a ordem para mudar a chefia da empresa consolidou a percepção de que Jair Bolsonaro não tem nenhum compromisso com a agenda liberal proposta na campanha de 2018. Não há mais nem mesmo o cuidado de manter as aparências.

Sempre houve bons motivos para desconfiar da adesão de Jair Bolsonaro a uma pauta de reformas. Basta pensar, por exemplo, que, por mais de duas décadas, a atuação do ex-capitão na Câmara dos Deputados foi oposta a todo o conjunto de reformas anunciado por Paulo Guedes na campanha eleitoral do então candidato do PSL à Presidência da República.

O fato, no entanto, é que muita gente confiou em Jair Bolsonaro: em sua disposição e capacidade de promover uma profunda mudança liberal no Estado brasileiro. A ideia era a de que, sob a batuta de Paulo Guedes, haveria um choque de gestão. O déficit fiscal acabaria, muitas privatizações seriam feitas, o poder público seria mais eficiente e o ambiente de negócios sofreria uma revolução.

“Quando candidato, Bolsonaro falava em privatização, e o ministro Guedes, que é liberal, defendia a tese da redução do tamanho do Estado. Me senti motivado a deixar meus negócios para contribuir com isso”, disse o empresário Salim Mattar ao Estado. De janeiro de 2019 até agosto de 2020, Salim Mattar foi o secretário especial de Desestatização e Privatização do Ministério da Economia.

Fernando Gabeira - Bolsonaro e a construção do caos

- O Globo

Na semana em que as mortes pela pandemia atingem a marca de 255 mil, toda a atmosfera política parece sombria. Não é caso de desespero, apenas a constatação de que vivemos um momento especialmente difícil.

Enquanto sonhamos com a imunização do povo contra a Covid-19, quem recebe vacinas é Flávio Bolsonaro, filho do presidente, e os congressistas do Brasil. Flávio ganhou uma vacina contra a punição no caso das rachadinhas. Os congressistas foram mais longe e produziram um projeto que os vacina contra a prisão em flagrante.

Impressionante ver como o populismo de direita se associa aos políticos tradicionais para criar uma intransponível blindagem para toda sorte de crimes.

E logo eles, os populistas de direita, que afirmam a decadência de um mundo materialista, distante dos valores espirituais que pretendem restaurar.

Acabo de ler “Guerra pela eternidade”, um livro de Benjamin Teitelbaum. O livro fala do retorno do tradicionalismo e da ascensão da direita populista. Infelizmente, não posso fazer uma resenha aqui, senão meu espaço iria para o espaço, se me perdoam o jogo de palavras.

Teitelbaum é etnógrafo, e seu método de pesquisa consiste em observar e interagir com as pessoas que estuda. Dois personagens, entre outros, se destacam em seu livro: Steve Bannon e Olavo de Carvalho. A leitura do livro me ensinou alguma coisa sobre o pensamento da direita, embora a tese central não tenha me parecido muito sólida. Ele tenta enquadrar Steve Bannon e Olavo de Carvalho no figurino do tradicionalismo, mas algumas partes do corpo ficam do lado de fora, não cabem exatamente.

Cristovam Buarque* - Um órfão chamado Brasil

- Correio Braziliense

O Brasil está órfão: sem oxigênio, sem responsável para cuidar do tratamento que precisa, nem tem quem lhe assegure vacina. Não teve um responsável que alertasse com autoridade que a doença era grave. Não recebeu as recomendações preventivas, nem os cuidados no período inicial. O Brasil não teve um responsável que lhe alertasse dos riscos. Ao contrário, ouviu “não fique em casa”, “vá para a rua”, “é uma gripezinha”. O oposto do que dizem pai e mãe preocupados com filho.

O Brasil não teve um responsável, um líder, um governante que o protegesse da doença e estivesse atento para obter e aplicar a vacina. Qualquer pai ou mãe ou tio ou padrinho protege o filho, natural ou adotado, cuida para ele ficar em casa, usar máscara, álcool em gel, e o leva para tomar a vacina.  O Brasil não tem quem cuide dele neste momento em que está sofrendo os horrores de uma epidemia. A orfandade não decorre apenas da falta de governante que cuide dele com amor e competência neste momento de epidemia. O atual governante não cuida do presente, nem formula rumos para o futuro.

O Brasil está órfão. Mas a orfandade é anterior. Se o Brasil não fosse órfão antes, não teria preferido o atual governante. Foi o órfão que buscou ser adotado por ele, com o voto de milhões de eleitores descontentes. O Brasil sentia-se abandonado: 12 milhões de analfabetos, 100 milhões sem rede de esgoto, 35 milhões sem água, 12 milhões de desempregados, a mesma concentração de renda e persistência da pobreza de que sofre desde sua origem.

Entrevista | Anne Applebaum: ‘Chegou a hora de regular as redes sociais’

A jornalista e historiadora americana adverte que o radicalismo é capaz de matar

Por Marcelo Marthe / Revista Veja

A americana Anne Applebaum, de 56 anos, é estrela indisputável da intelectualidade conservadora. Como jornalista, foi editora de dois tradicionais baluartes, as revistas The Economist e The Spectator. Mas foi como historiadora que consolidou seu prestígio. Seus estudos sobre os gulags, as temidas prisões soviéticas, e a fome da Ucrânia nos anos 30 renderam-lhe prêmios e expuseram os horrores do stalinismo. Em seu novo livro, O Crepúsculo da Democracia (Record), narra em tom pessoal um novo fenômeno: a adesão de muitos intelectuais às ideias autoritárias de governos populistas, dos Estados Unidos à Polônia — seu marido, Radoslaw Sikorski, é um político e ex-ministro do país europeu. Nesta entrevista a VEJA, ela fala sobre temas como as consequências da queda de Donald Trump, a sobrevivência dos líderes populistas na pandemia e a chamada cultura do cancelamento.

Em O Crepúsculo da Democracia, a senhora alerta sobre a escalada do populismo e do autoritarismo no mundo. A derrota de Donald Trump não sinaliza justamente o declínio dessa onda? 

É cedo para comemorar. A eleição de Trump, em 2016, refletiu uma insatisfação latente com muitas coisas, inclusive com a democracia e o sistema político. Apesar de sua derrota em 2020, o desapontamento com a democracia ainda está vivo nos Estados Unidos, na Europa e em muitos outros países com eleições livres, até mesmo no Brasil. As ideias autoritárias se alimentam de uma insatisfação profunda de muitas pessoas com os rumos da vida moderna e as dramáticas mudanças sociais e demográficas das últimas décadas. Esse mal-estar não sumirá com a queda de Trump.

Por que a democracia liberal, que trouxe tanto progresso ao Ocidente, passou a ser questionada? 

Por diversos motivos. Nos Estados Unidos, existe a frustração de parte da população com as complicações para aprovar novas leis, e isso dá a sensação de que o Congresso é inoperante. A polarização de nosso sistema político também amplia a percepção de que o Estado não tem força. Se tudo se encontra paralisado, por que não cogitar que uma liderança centralizada e autoritária possa fazer o que os políticos não conseguem? Na maioria das democracias liberais, as pessoas também passaram a achar que seus líderes, de quem esperam atitudes de mudança, não detêm o controle do governo.

A invasão do Capitólio por apoiadores de Trump representou um risco real à democracia americana? 

A invasão do Capitólio foi uma consequência palpável, e perigosa, da polarização política. Aquela gente falava a sério ao proclamar que desejava matar integrantes do Congresso. Eles não obtiveram êxito, felizmente, mas restaram cinco mortos ao fim do caos. Não se tratava de republicanos atacando democratas, mas de uma horda de loucos antissistema que tinham as instituições como alvo. Foi uma explosão de toda a raiva insuflada ao longo de anos de polarização nas redes sociais.

José Eduardo Faria* - Qual é o rumo da democracia brasileira?

- Horizontes democráticos

Entre os diferentes modos de compreender o que é a democracia, em termos funcionais, destaca-se o que a encara como um regime de dispersão e neutralização de confrontos que podem colocar em risco as estruturas sociais. Nessa perspectiva, a democracia é vista como um entrechoque entre interpretações e aspirações, entre alternativas e opções, percepções e convicções, que se desenvolve em espaços públicos sujeitos a extravasamento de paixões, aspirações, reivindicações, promessas, dissimulações, maniqueísmos, agressões morais e mentiras.

Para neutralizar os riscos de corrosão do pacto social daí decorrentes e viabilizar a construção de decisões coletivas com base em diálogos construtivos, evitando o retrocesso do Estado civil para o estado da natureza, a democracia desenvolveu um sistema de freios e contrapesos — ou seja, regras e procedimentos, como o voto universal, eleições livres e o princípio da maioria, que canalizam reivindicações e desarmam insatisfações, ao mesmo tempo em que permitem construção de acordos coletivos e de deliberações públicas.

Se em vários momentos na segunda metade do século XX a democracia foi marcada por embates ideológicos profundos e acirrados, ainda que por vezes sem que os líderes políticos e partidários se desqualificassem reciprocamente no plano moral, nas duas primeiras décadas do século XXI isso mudou. Em decorrência dos avanços das tecnologias de comunicação e de informação, os partidos se fragmentaram, as linhas de demarcação que separam responsabilidades e delimitam as diferentes zonas de poder se tornam mais porosas e novos espaços políticos surgiram, intercruzando-se e se justapondo, enfraquecendo com isso a mediação parlamentar.  No mesmo sentido, a imprensa tradicional, as novas mídias e os antigos e novos espaços políticos justapostos foram sendo progressivamente envolvidos por atitudes cada vez mais polarizadas e por retóricas cada vez mais agressivas de políticos cuja identidade é forjada mais pelo que negam e agridem do que pelas ideias que defendem. Em vez de uma convivência democrática entre adversários, ao destilar o ódio e recorrer a agressões morais e à mentira sistemática uma corrente entre os novos atores converteu a política não em disputa ou competição, mas numa guerra, em cuja dinâmica quem não é amigo é inimigo e como tal tem de ser liquidado.

Foi o que se viu, por exemplo, nas atitudes do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán logo após sua reeleição, em 2014, descrevendo o futuro de seu país na perspectiva de um Estado autocrático, que não rejeitaria os valores da democracia liberal, mas não os adotaria como elemento estruturante da organização das instituições húngaras. Foi o que também se viu no final do governo Trump, com o triste espetáculo da invasão do Capitólio, em janeiro.

Marcus André Melo* - Vacina política

- Folha de S. Paulo

A vacina contra a hiperfragmentação não pode ser cancelada

O que há em comum entre a bancada federal de Espírito Santo, Roraima, Rondônia, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas e Amapá? E de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, e Mato Grosso do Sul, Acre, Amazonas, e Piauí?

No primeiro grupo todos os deputados provêm de partidos diferentes; a fragmentação alcançou o maior valor matematicamente possível. No segundo, a situação é marginalmente diferente: o maior partido da bancada tem dois representantes, os demais um. Sim, a hiperfragmentação política entre nós ultrapassou as raias do absurdo.

O número efetivo de partidos na Câmara Federal alcançou em 2018 o maior valor já registrado em qualquer país, 16,46. Não me refiro ao número nominal de partidos mas ao número efetivo, uma métrica que pondera os partidos pelo seu tamanho. O número nominal não importa: o Reino Unido tem 408 partidos registrados, inclusive o Church of the Militant Elvis Party; dez possuem pelo menos um representante no parlamento. Os EUA têm 61 nominais, inclusive o Marijuana Reform Party. O número efetivo no Reino Unido e nos EUA é 2,4 e 1,99, respectivamente.

Celso Rocha de Barros – Brasil morre, Brasília foge, e Faria Lima vende

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro permanece impune, em troca nenhum político será preso

A semana passada deve ter sido a pior do século 21 brasileiro. Enquanto os primeiros países a se vacinarem já discutem a volta à normalidade, as mortes por Covid-19 crescem aceleradamente no Brasil.

As mortes já começaram a cair em países que também se saíram mal no combate à pandemia, como o México e os Estados Unidos, mas continuam a crescer no Brasil.

Em Manaus, pacientes intubados precisam ser amarrados para suportar a agonia porque a anestesia acabou, como antes havia acabado o oxigênio.

O governo Bolsonaro mandou as vacinas do Amazonas para o Amapá porque errou a sigla. Em várias regiões do Brasil a ocupação de UTIs se aproxima de 100%.

No célebre hospital Albert Einstein, o preferido do presidente, já está em 104%. Se Bolsonaro fosse esfaqueado por Adélio Bispo hoje, morreria sangrando na sala de espera.

Enquanto isso, o auxílio emergencial acabou, e a população brasileira mergulhou na mais profunda miséria.

Catarina Rochamonte - O privilégio da impunidade

- Folha de S. Paulo

Arthur Lira tentou aprovar a toque de caixa proposta para adulterar a imunidade parlamentar

Devido à forte rejeição da opinião pública e oposição firme de alguns poucos parlamentares, foi momentaneamente frustrada a trama conduzida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, para aprovar a toque de caixa —e atropelando os ritos processuais— uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 3/2021) para adulterar a imunidade parlamentar já assegurada pela Constituição.

No seu teor original, a indecorosa proposta —apelidada de PEC da Impunidade e PEC da blindagem—, dentre outras extravagâncias, limita o alcance da Lei de Ficha Limpa, restringe a prisão em flagrante de parlamentar e dispõe que ações judiciais contra eles ficam condicionadas à decisão do plenário do Supremo. Além disso, o deputado ou senador preso em flagrante ficará sob custódia do próprio Poder Legislativo esperando decisão dos colegas acerca do seu futuro. Em suma, a PEC 3/2021 tem o claro propósito de dificultar ao extremo a ação do Judiciário sobre os parlamentares, tornando-os, na prática, inimputáveis.

Ana Cristina Rosa - O inacreditável virou banal

- Folha de S. Paulo

Depois de um ano marcado por mortes e recessão, a sensação é de que pouco ou nada aprendemos

São tantos os absurdos ocorrendo de maneira concomitante ao longo da pandemia de Covid-19 no Brasil que a palavra inacreditável parece ter perdido um pouco do sentido por essas bandas. Quem iria imaginar que transcorridos 12 meses da maior crise sanitária, econômica e social do século seríamos capazes de sincronizar em todo o país a gravidade dos efeitos do coronavírus levando o sistema de saúde nacional à beira do colapso?

De norte a sul, a ocupação das UTIs e das enfermarias margeia o esgotamento, com filas de espera para internação. Tudo pela negligência de medidas básicas que se mostraram eficazes na prevenção da doença mundo afora, como o distanciamento social e o uso de máscara.

Na semana em que o Brasil atingiu a marca de 250 mil mortos por Covid-19 e a Organização Mundial da Saúde resumiu a situação como “uma tragédia”, cerca de quatro centenas de pessoas se aglomeraram, boa parte delas sem máscara, em solenidade oficial na capital federal. Paralelamente, festas clandestinas seguiram bombando por toda parte.

Ricardo Noblat - “Os 7 do Alvorada” discutem o que fazer à falta de vacinas

- Blog do Noblat / Veja

Roteiro da pior qualidade

Na noite em que o filme americano “Os 7 de Chicago” concorreu ao prêmio Globo de Ouro em cinco categorias e ganhou a de melhor roteiro, sete homens posaram para uma foto encostados a uma parede de livros do Palácio da Alvorada – cinco deles de braços cruzados, um com os braços estendidos ao longo do corpo e o outro com as mãos nos bolsos.

O filme foi baseado no caso real do julgamento de um grupo de ativistas políticos acusados pelo governo americano de conspiração e incitação à revolta durante os protestos contra a guerra do Vietnã que marcaram em 1968 a convenção do Partido Democrata em Chicago. Seis deles foram condenados na primeira instância da justiça e absolvidos na segunda.

A foto registrou o final do encontro de “Os 7 do Alvorada” que discutiram por mais de uma hora o que fazer com o agravamento da pandemia da Covid que ontem, pelo segundo dia consecutivo, bateu um novo recorde de mortes. Já são 39 dias seguidos com média móvel acima de mil mortos. Se no futuro “Os 7 do Alvorada” serão julgados ou não, ainda é cedo para prever.

Deles, três são militares (generais Braga Neto, chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo, e Eduardo Pazuello, ministro da Saúde). Um é ex-capitão (Bolsonaro, afastado do Exército por planejar atentados a bomba a quartéis, e presidente da República). E três são civis (o ministro da Economia e os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado).

Bolsonaro começou o domingo afrontando de novo os governadores que adotaram medidas severas de isolamento. Compartilhou vídeo onde manifestantes, muitos sem máscaras, sitiam a casa do governador Ibaneis Rocha, em Brasília. À tarde, soube que a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal, mandou que pagasse por leito de UTI em São Paulo, Maranhão e Bahia.