Para Hayek, as políticas de combate à desigualdade abafam o impulso inovador dos indivíduos
Leio
na “Folha de S. Paulo”: na posteridade do debate promovido pelo Valor, a economista Monica De
Bolle foi às redes sociais para se queixar do machismo de Arminio Fraga.
A
faísca, informa a Folha, foi o ex-presidente do Banco Central classificar um
discurso de De Bolle como sendo do “coração”. “É fácil fazer esse discurso e
ele mexe no coração da gente. Só acho que é preciso certo cuidado”, afirmou
Arminio após uma longa fala da professora da Universidade Johns Hopkins.
Monica
defendia auxílio emergencial sem condicionalidades e criticava o esvaziamento
do debate sobre responsabilidade fiscal. Segundo ela, a discussão de política
orçamentária não coloca a sociedade e a campanha de vacinação como elementos
centrais e tem sido usada para a “relativização das mortes”.
Diante
do episódio, acudiu-me relembrar o filme “As Confissões”, de Roberto Andò. A
atriz, que encarna a ministra das Finanças do Canadá, reproduz uma piada
contada por outro personagem, o diretor-gerente do FMI, apelidado Daniel Roché:
“Um candidato a transplante de coração recusa uma oferta de órgão retirado de
um menino: não quero, é muito jovem. Em seguida, os médicos oferecem o coração
de um gestor de hedge fund. Ele recusa porque o tipo não tem coração. Os médicos
insistem: aceite o coração de um banqueiro central. Ele aceita porque esse
coração nunca foi usado”.
As desavenças com o coração também frequentam as sabedorias de Paulo Guedes. O Estadão de 11 de fevereiro da 2019 registra a entrevista concedida ao Financial Times pelo ministro da Economia. O jornal britânico relata que ele toca um dedo em sua têmpora. “As pessoas da esquerda têm cabeças 'fracas' e bom coração”, diz ele. “As pessoas da direita têm cabeças fortes e...” Ele procura a frase correta. "Corações não tão bons”.
Em
depoimento no Congresso em 30 de junho de 2020, Paulo Guedes sapecou: “Você se
torna um liberal ao longo de muitas décadas. Fazer um socialista leva 5 minutos
porque ter um bom coração, querer ajudar os outros, isso tá nas grandes
religiões, isso tá na solidariedade, na fraternidade, nós nascemos assim”.
Depois
da crise financeira de 2008, Willem Buiter, ex-economista-chefe do Citigroup,
hoje professor visitante na Universidade de Columbia, manifestou sua
discordância com as ‘cabeças fortes’ de Paulo Guedes. Buiter apontou as armas
da crítica na direção dos idealizadores e operadores dos sistemas financeiros
“intrinsecamente disfuncionais, ineficientes, injustos e regressivos,
vulneráveis a episódios de colapso”, um exemplo de “capitalismo de compadres”,
sem paralelo na história econômica do Ocidente.
“É
uma questão interessante, para a qual não tenho resposta... Não sei se os que
presidiram e contribuíram para a criação e operação [desse sistema] eram
ignorantes, cognitivamente e culturalmente capturados ou, talvez, capturados de
forma mais direta e convencional pelos interesses financeiros”.
Imagino
que na Universidade de Chicago de Paulo Guedes o curso de História do
Pensamento Econômico tenha contemplado a leitura da Fábula das Abelhas de
Bernard de Mandeville. Já na aurora do século XVIII, o autor desconfiava dos
enganos do coração e levou a extremos a moral individualista, racionalista,
utilitarista do liberalismo. Vícios privados se transmutam em virtudes
públicas. Mandeville conta a história de uma colmeia próspera e progressista,
ambiente em que prevaleciam os vícios egoístas de todos as habitantes. Esse
comportamento de coração duro foi interceptado, em certo momento, pela
nostalgia da moral cristã, a nostalgia dos bons sentimentos. As abelhas
resolveram retroceder, voltar às práticas do coração. A prosperidade se
converteu em decadência.
Jeremy
Bentham prosseguiu na faina Iluminista de desvencilhar o homem ocidental do
Império da Crença para entregá-lo ao Reino do Cálculo. Em seu avanço, o
racionalismo Iluminista rasgou a cortina da Ordem Revelada que enclausurava os
homens e mulheres nas crenças e sentimentos no propósito de emparedá-los nos
calabouços do Cálculo.
No
livro “As paixões e os Interesses”, Albert Hirschman discorre criticamente a
respeito da contraposição entre as paixões nefastas e viciosas do Ancien Régime
e os interesses racionais mediados pelas trocas da sociedade mercantil. As
paixões eram necessariamente violentas, pois realizavam seus propósitos
diretamente no corpo e no espírito do semelhante. Entre esses desatinos estavam
os prazeres da luxúria, o ódio descarregado sobre o corpo de outro, a paixão
patriótica que levava à guerra.
Friedrich
Hayek desdenha os corações confrangidos pela desdita do próximo. Em seu livro
“The Road to Serfdom”, Hayek exalta o empreendedor, o indivíduo independente
“empenhado em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores
cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada”. Hayek considera a
concorrência como a única forma social que estimula a inovação inédita sem a
ingerência coercitiva e arbitrária da autoridade. As políticas de combate à
desigualdade abafam o impulso inovador dos indivíduos.
As
manifestações de Arminio, Paulo Guedes e do guru Hayek sugerem uma rápida
incursão às páginas do livro “A Dialética do Esclarecimento” de Theodor Adorno
e Max Horkheimer. Aí, os autores palmilham os caminhos que levaram o projeto
das Luzes a se precipitar nos braços do mito. A recaída do Esclarecimento na mitologia,
diz ele, não deve ser buscada tanto nas ideologias nacionalistas, pagãs e em
outras mitologias modernas, mas no próprio Esclarecimento paralisado pelo temor
da verdade.
“Paralisadas
pelo temor da verdade”, as teorias econômicas liberais e suas políticas
permanecem espremidas entre a mitologia do equilíbrio e os manuais de instrução
das arrumadeiras ou de alfaiates especializados em ajustar fatiotas. A Economia
confirma e reafirma Adorno e Horkheimer: “No trajeto para a ciência moderna, os
homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa
pela regra e pela probabilidade”. Viva o Teto de Gastos.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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