Nas
palavras de Albert Camus, ‘a única maneira de lidar com a peste é com decência’
Todo
tempo crítico tem ao menos duas “forças” essenciais: aprendizado e finitude.
Não há tormenta que dure para sempre e ela será tanto menos danosa, e o mais
breve possível, quanto maior for a nossa resiliência, definida como capacidade
de suportar, lidar e reagir positivamente a contextos adversos. No caso de uma
dramática crise sanitária, com milhares de mortos por dia e sem horizonte claro
de fim, essa é uma tarefa ainda mais desafiante.
Em
meio à dor e às perdas impostas pela pandemia, no entanto, o Brasil vem
registrando movimentos, especialmente no âmbito da sociedade civil, no sentido
de produzir saberes e elaborar aprendizados relativamente à tragédia virótica,
até para que possamos sair o mais rapidamente dela e um tanto mais habilitados
a, efetivamente, nos recompormos social e economicamente no pós-crise.
Nesse aspecto ontem foi lançado um livro muito especial, reunindo reflexões acerca da experiência de tempos tão críticos no tocante a diversas áreas das políticas públicas. Trata-se da materialização de um esforço que merece ser celebrado como uma contribuição ímpar do olhar racional para extrair aprendizados de um ano dessa crise aqui, no Brasil, e em favor de uma nova história a partir dela, até mesmo com o objetivo para nos preparar para outros enfrentamentos de natureza similar no futuro.
Legado
de uma Pandemia: 26 Vozes Discutem o Aprendizado para a Política Pública, organizado por
Laura Müller Machado, tem quatro partes, tratando de campos específicos: ordem
social, ordem econômica, organização do Estado, política e comunicação. O
projeto foi viabilizado pelo Insper e pela Fundação Brava.
Na
série de quatro eventos online que
marcam o lançamento e a oferta gratuita do e-book, amanhã, participamos como comentarista dos
cinco capítulos da parte 3, Legado
para a organização do Estado, cujos textos serão apresentados por
seus autores na ocasião.
Em O legado para a governança colaborativa,
Sandro Cabral discute a necessidade impositiva de governos colaborativos, tanto
entre si quanto com as organizações da sociedade civil. Pontua que a
colaboração exige persistência e decisão política, preconiza pouca vaidade e
requer o exercício genuíno da liderança em meio a enfrentamentos agendados por
múltiplos fatores e atores.
Em Covid-19, federalismo e a
descentralização no STF: reorientação ou ajuste pontual?, Diego
Werneck Arguelhes e Natália Pires de Vasconcelos discutem a posição, que consideram
pontual, do Supremo Tribunal Federal (STF) de incrementar a competência
concorrente de Estados e municípios diante da majoritária jurisprudência de
opção pela postura centralizadora e unificadora da Corte.
Marcelo
Marchesini da Costa e Gabriela Lotta, em A gestão pública vigilante, expressam que a pandemia
trouxe à tona o que chamam de burocracia que se posiciona acerca de decisões
das lideranças, seja para enfrentar o que se considera equívoco
administrativo-científico, seja para se insurgir contra determinações de
possível cunho ideológico. Apesar de apontar os riscos desses comportamentos,
que não seriam precípuos da burocracia, o texto sugere que gestões vigilantes
podem ser um contrapeso a desmandos.
Em As lições aprendidas com a resposta do sistema
de saúde, Francisco Inácio Bastos e Elize Massard da Fonseca
pontuam limitações e também ações de alta relevância, em meio a problemas
estruturais e fatores políticos perturbadores. Consideram que um dos aspectos
mais relevantes da resposta do Brasil à covid-19 foi a capacidade de
desenvolver ações de ciência, tecnologia e inovação, permitindo soluções
céleres.
Ricardo
Paes de Barros e Laura Müller Machado, em A pandemia e o início do fim da invisibilidade,
registram que a incapacidade de saber quem são os brasileiros mais empobrecidos
e de levar o Estado até eles acabou revelando a invisibilidade de segmentos
inteiros da sociedade. Dizem que, para um país que destina 25% do produto
interno bruto (PIB) a assegurar direitos sociais, nada justifica a existência
de populações sob a escuridão da identidade e o apagão da comunicação com os
governos – a não ser uma tendência de manter contingentes à margem das
conquistas civilizatórias.
A
partir da leitura do livro se incrementa a certeza de que é urgente um esforço
amplo de modernização do Brasil, movimento que vai do aprimoramento do pacto
federativo, passa pela reforma das estruturas governativas e alcança a
desconstrução dos sustentáculos perversos da desigualdade estrutural, que torna
inviável qualquer projeto de nação justa, cidadã, inclusiva e sustentável em
nosso país.
Esse
livro, para além de sedimentar aprendizados valiosos em tempos tão duros,
merece ser visto como uma inspiração para novas produções. Afinal, como diz uma
das epígrafes da edição, nas palavras de Albert Camus, “a única maneira de
lidar com a peste é com decência”, aqui materializada com o melhor da visão de
origem científica, o convite à prática da resiliência e da empatia e a
valorização imperiosa dos princípios democrático-republicanos a organizar a
vida nacional.
*Economista, presidente executivo da IBÁ, membro do Conselho do Todos pela Educação, foi governador do Espírito Santo (2003-2010 e 2015-2018)
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