segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Fernando Gabeira: Vírus, chuva e calor

O Globo

Gostaria de abordar as chuvas de forma poética, como Elizabeth Bishop em sua “Canção do tempo das chuvas”. Mas agora elas assumem um aspecto dramático, matando e destruindo.

Joe Biden, visitando o Kentucky, associou o tornado que devastou a região e as chuvas no Brasil às mudanças climáticas.

Sinto que há algo parecido, mas ainda esbarro num monte de dúvidas. Sei que as chuvas estão sendo provocadas por um sistema meteorológico chamado Zona de Convergência do Atlântico Sul. É uma grande extensão de nuvens movidas por um coquetel de ventos: do Sudeste, Nordeste e até das altitudes bolivianas.

Essas chuvas são influenciadas por La Niña, um fenômeno, assim como El Niño, que acontece no mar.

Desde quando li as intervenções dos cientistas numa conferência sobre o clima, aprendi que o aquecimento global seria irreversível quando houvesse mudanças nas famosas correntes marinhas. Não tenho condição de afirmar que a velha La Niña tenha se alterado por influência de correntes. Sei que, assim como El Niño, quando traz chuvas numa região do Brasil, leva seca para outras.

No momento, chove no Sudeste, e há escassez de chuvas no Sul do Brasil.

Além da destruição dos corais, do derretimento das geleiras, da poluição humana, há coisas acontecendo nos mares. Cientistas descobriram que a velocidade das correntes tem aumentado, ainda não sabem precisamente as consequências disso.

Miguel de Almeida: Bocage e o Rio de Janeiro

O Globo

O que personagens como Humboldt, Lebreton, Bocage e mesmo Napoleão têm em comum com o Rio de Janeiro e o Brasil?

De um jeito ou de outro, contribuíram para deixar o país menos mané, mais ilustrado e não tão sujeito às superstições trazidas pela ignorância e vocalizadas sob o manto religioso.

Só que poucas andorinhas não fazem uma nação.

Neste ano do Bicentenário da Independência, o Brasil talvez pudesse se encontrar com seu destino ao buscar onde ocorreram os descarrilhamentos e por que sempre voltamos tantas casinhas.

As datas por vezes ajudam a repensar os fatos, mas mesmo a História precisa contar com a sorte.

No Cinquentenário da Independência, embora Machado de Assis escrevesse sobre o “Instinto de Nacionalidade”, no jornal dirigido por Souzândrade em Nova York, o Império brasileiro incensava a figura de Dom Pedro II e sua miopia diante da Revolução Industrial.

Em 1922, ainda que houvesse a importante Exposição do Centenário, com mais de 3 milhões de visitantes, o governo de Epitácio Pessoa representava uma elite atrasada e avessa às ideias de caráter social. Aquele tipo de República cairia oito anos depois.

No sesquicentenário, em 1972, o Brasil vivia sob a ditadura militar, com o general Médici à frente da tentativa de eliminar à bala os adversários do regime.

Bruno Carazza*: Os ventos da mudança

Valor Econômico

Intervencionismo no exterior e aqui, na campanha eleitoral

De tempos em tempos, os ventos da política e da economia mundiais mudam de direção. Pode demorar um pouco, mas a viragem sempre chega por aqui, com maior ou menor intensidade.

O desenvolvimentismo brasileiro, de Vargas a Geisel, foi forjado pelo casamento entre estatais, empresas multinacionais e grupos brasileiros. Longe de ser uma receita original e local, era fruto de seu tempo - no imediato pós-guerra, o braço forte do Estado se aliou ao grande capital para produzir as três décadas de ouro do século XX (1945-1975).

Os desequilíbrios desse modelo de desenvolvimento se tornaram evidentes após os choques do petróleo dos anos 1970, e a chegada ao poder de Margareth Thatcher e Ronald Reagan geraram um terremoto liberalizante que abalou as estruturas estatais em diferentes graus, provocando réplicas ao longo das décadas seguintes.

Privatização, desregulamentação, restrições nos gastos governamentais, redução da tributação sobre as empresas e globalização levaram a uma onda de retração do intervencionismo governamental nas economias. O capítulo da ordem econômica da Constituição de 1988 resumem essa influência liberal em terras brasileiras: a exploração de atividades econômicas por estatais seria exceção (art. 173) pois o papel do Estado deveria se concentrar na regulação e incentivo ao setor privado (art. 174).

Esse modelo, é bem verdade, nunca foi plenamente implementado por aqui. Mas se não estivesse conectado ao espírito de seu tempo, dificilmente Fernando Henrique teria cumprido seu programa de privatizações ou aprovado as reformas nos setores de petróleo, telecomunicações, elétrico e financeiro.

A maré parece estar virando novamente. A revista The Economist desta semana traz uma série de matérias especiais chamando a atenção para o advento de uma nova era de intervenção estatal na economia.

Francisco Góes: ‘Motor da inovação é a competição’, diz Passos

Valor Econômico

Economia fechada do Brasil limita a capacidade de inovar

O Jockey Club Brasileiro, na Gávea, recebeu de quinta até ontem milhares de pessoas. Quem passasse pelo local poderia pensar tratar-se de festival de música ou de gastronomia, mas o público que ali compareceu, sob o forte calor do verão carioca, foi em busca de conhecimento e de oportunidades em inovação e em tecnologia. Os dois temas estiveram presentes na Rio Innovation Week, evento com apoio do Valor que incluiu debates sobre saúde, educação, finanças, ambiente, agronegócios, startups, marketing e cidades inteligentes, entre uma miríade de outras mesas temáticas.

O evento colocou a inovação e a tecnologia na agenda de um público mais amplo do que cientistas e empresários. É um debate que ajuda a pensar os caminhos do Brasil nessa área.

O entusiasmo do encontro no hipódromo da Gávea contrasta, porém, com o diagnóstico de especialistas sobre o momento do Brasil nesse campo, marcado por cortes de recursos públicos, baixos dispêndios pelas empresas e incerteza sobre os investimentos futuros da pesquisa, desenvolvimento e inovação no país.

As empresas brasileiras fazem mais inovação incremental via compra de máquinas e equipamentos que aumentam a produtividade. Mas investem pouco em inovação “disruptiva”, aquela que faz realmente a diferença na competição pelo mercado global.

Mas afinal o que é inovação? O conceito de inovação tecnológica remete à criação de produto ou de processo produtivo novo para o mercado, diz Fernanda de Negri, coordenadora do centro de pesquisa em ciência, tecnologia e inovação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Essa inovação é fundamental para o crescimento econômico e para se obter ganhos de competitividade.

Marcus André Melo*: Corrupção e eleições

Folha de S. Paulo

Eleições são disputas em torno de quais dimensões devem tornar-se salientes e quais devem ser interditadas

Na Coreia do Sul, o favorito na atual disputa presidencial é o ex-procurador-geral do país Yoon Seok-Youl, que adquiriu popularidade no processo que levou a ex-presidente Park Geun- Hye a sofrer um impeachment e ser presa. O atual presidente, Moon Jae-In, que não é candidato devido à vedação constitucional da reeleição, foi quem nomeou Yoon para o cargo, que agora está na oposição.

Recentemente, Moon concedeu indulto à ex-presidente temendo futuras investigações do ministério público, após uma malsucedida campanha para reduzir o poder dos procuradores (Yoon denunciou seu Ministro da Justiça e braço direito por corrupção). Park é filha do ex-ditador General Park Chung-Hee, que governou o país por 18 anos.

A questão da corrupção é o tema vertebrador da política no país juntamente com a inflação, endividamento familiar e moradia; o combate à pandemia tem sido exemplar mas não tem sido politizado.

O caso sul-coreano é ilustrativo das insuficiências das discussões em torno do significado de esquerda, direita e centro. Como no Brasil, mesclam-se questões relativas a corrupção, autoritarismo, e questões redistributivas. Mas os contrastes com nosso país são evidentes.

Celso Rocha de Barros: Estou errado sobre a democracia brasileira?

Folha de S. Paulo

Fraqueza da centro-direita não é desculpa para ignorar risco que Bolsonaro traz à democracia

Carlos Pereira é um grande cientista político brasileiro. Escreveu com Marcus Melo (o da coluna aqui do lado) um livraço, "Making Brazil Work". Reunindo pesquisas empíricas de alta qualidade, a obra mostrou que o sistema político brasileiro funcionava bem melhor do que se pensava.

O problema é que o livro saiu quando já parava de funcionar. "Making Brazil Work" continua sendo um ótimo estudo dos 20 anos anteriores. Suas conclusões podem voltar a ser aplicáveis quando a crise política passar. Mas é evidente que seu modelo teórico subjacente perdeu poder explicativo na crise política dos últimos anos.

Após a eleição de Bolsonaro, Pereira passou a defender a tese de que Bolsonaro não oferecia risco à democracia brasileira. Afinal, Brazil works. Em sua coluna no Estadão da última segunda-feira (10), Pereira voltou a afirmar que a democracia sobreviveu bem a Bolsonaro, porque o STF conseguiu barrar várias iniciativas do presidente na pandemia e a CPI investigou seus crimes. Criticou quem defende que Bolsonaro ameaça a democracia, dizendo que essa tese não é testável empiricamente a não ser que o golpe ocorra.

O último argumento é claramente falso. Risco é uma probabilidade. Nenhum economista diria, por exemplo, que negócios bem-sucedidos nunca foram arriscados.

Ana Cristina Rosa: Banzo, depressão e morte

Folha de S. Paulo

Pouco ou nada mudou em termos de políticas públicas para a saúde da população negra

Neste "Janeiro Branco", campanha com o objetivo de chamar atenção para os cuidados com a saúde mental, esta coluna adverte: o impacto psicológico do racismo na vida de adolescentes e jovens negros pode ser letal.

Com a autoestima abalada por um sistema cruel, desleal e opressivo, o risco de desenvolver quadros de depressão é 45% maior entre os pretos e pardos na comparação com os jovens brancos. Isso evidencia o efeito devastador do racismo sobre a saúde mental da população negra.

Cartilha do Ministério da Saúde com dados sobre óbitos por suicídio apontava já em 2018 que cerca de 60% das mortes de pessoas entre 10 e 29 anos ocorreram entre negros. Faz todo sentido quando se considera que a depressão é uma das principais causas associadas a esse tipo de óbito.

Catarina Rochamonte: Valeu, Folha!

Folha de S. Paulo

Folha decidiu, corretamente, descontinuar, por este ano, a atividade de seus colunistas que tenham pretensão eleitoral. É o meu caso: sou pré-candidata pelo Podemos, no Ceará, a deputada federal. Assim, escrevo este 85° artigo para despedir-me provisoriamente.

Quando fui convidada a assumir esse pequeno e precioso espaço semanal surpreendi-me. Minha visão destoa da linha editorial deste ilustre jornal. Por isso mesmo foi grande o mérito da Folha em ter mantido essa coluna apesar da forte pressão da patrulha que pedia a minha cabeça em uma bandeja a cada artigo mais polêmico. Esse jornal teve comigo postura impecável: jamais fui pressionada ou sequer sugestionada a modificar uma linha do que pretendia escrever, por mais duro que fosse o texto.

João Doria*: O dia em que a ciência venceu as mentiras

O Estado de S. Paulo.

São Paulo se tornou uma referência mundial em vacinação – 97% dos adultos já estão com o esquema vacinal completo

Lembro de cada instante daquele dia: primeiro, a aprovação da Coronavac, por unanimidade, pela diretoria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Estávamos no Hospital das Clínicas, maior complexo de saúde da América Latina. Passava das 15 horas de 17 de janeiro de 2021, quando a enfermeira Mônica Calazans, que trabalha na UTI do Instituto Emílio Ribas, recebeu, no braço esquerdo, a primeira vacina contra a covid aplicada no Brasil. Era o início da mais ampla campanha de vacinação de nossa história.

Hoje, exatamente um ano depois, está comprovado que as vacinas mudaram a trajetória da pandemia, ao evitar internações e salvar a vida de milhões de pessoas. Mas penso que aquele momento tem ainda mais significados: 17 de janeiro de 2021 foi o dia em que as verdades da ciência derrotaram as mentiras do negacionismo. O dia em que o trabalho venceu a incompetência e a razão superou o medo. Vacina sim, cloroquina não. Há um ano, a compaixão foi maior que o egoísmo, a esperança voltou e os brasileiros viram que, com seriedade e boas políticas públicas, nosso Brasil tem jeito.

São Paulo se tornou uma referência mundial em vacinação – já temos 97% dos adultos com esquema vacinal completo. O trabalho do governo estadual, de prefeituras de todo o Estado e do Instituto Butantan ajudou todos os brasileiros a se protegerem. Antecipamos em pelo menos três meses a vacinação prevista pelo governo federal. Imunizamos os profissionais de saúde do Brasil inteiro, oferecendo a eles a segurança necessária para o enfrentamento da segunda onda da pandemia. Produzimos e entregamos aos brasileiros 100 milhões de doses de vacina. Demos prioridade à imunização dos profissionais da educação, da segurança e dos transportes coletivos, restabelecendo todos os serviços e atividades. Hoje, mais de 145 milhões de brasileiros se encontram totalmente vacinados. Mais de um terço desse total recebeu Coronavac, que evitou formas graves da doença e salvou milhões de vidas.

Denis Lerrer Rosenfield*: O bom debate

O Estado de S. Paulo.

Posição de Lula e PT sobre teto de gastos e reforma trabalhista serviu para outros candidatos comparecerem à cena

É inegável o fato de que Lula e o PT terem suscitado um debate sobre o teto de gastos e a reforma trabalhista produziu um efeito benéfico. Não tanto pelo que disseram, por se tratar do mesmo anacrônico receituário que levou o País à breca no governo Dilma, mas por terem obrigado os outros partidos e contendores a comparecerem à cena. De repente, a discussão foi deslocada para o governo Temer e as suas reformas, tendo o ex-presidente comparecido como ponto de referência daquilo a ser ou não feito. Ao visar às reformas necessárias para o País, seguindo a demagogia do “neoliberalismo”, quando não do “imperialismo” orientando a Lava Jato contra as empresas brasileiras, o PT escolheu como alvo um governo orientado por reformas sensatas, voltadas para o bem do País, independentemente de sua popularidade.

Imediatamente, os candidatos Sérgio Moro e João Doria, em atitudes responsáveis, mostrando que estão preparados para dirigirem o País, saíram em defesa destas reformas. Naquele então, o MDB e a Fundação Ulysses Guimarães ofereceram as bases reformistas graças ao documento “Ponte para o futuro”, destacando também a posição do antigo líder do partido na condução desta reformas, deputado Baleia Rossi, hoje presidente do partido e coordenador eleitoral da campanha da senadora Simone Tebet. Eis as ideias que estão colocadas para um espaço de centro, capazes de viabilizar uma candidatura unificada politicamente neste campo.

Mirtes Cordeiro*: Vacinação, direito da criança e dever do Estado

Fundamental é fortalecer o SUS e garantir informação com transparência à população.

“Vacinação é feita principalmente a partir de campanha, a partir de informação da população. O que é necessário é passar uma mensagem clara e direta para população de que a vacina salva vida, é importante, é segura. Então, é isso que precisa ser feito. A obrigatoriedade sempre existiu. A gente não imagina se vai haver uma fiscalização em torno da obrigatoriedade da vacina. Não é por aí que a vacinação se faz e não foi por aí que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) se tornou um programa exemplar no mundo todo.” A explicação é do advogado e médico sanitarista Daniel Dourado, em entrevista ao G1.

Pois bem. Até que enfim começou a vacinação contra Covid-19 para as nossas crianças com idade entre cinco e 11 anos de idade, em meio a grandes debates negacionistas promovidos pelo presidente da República e seu ministro da Saúde, mesmo considerando que, a vacinação para crianças já teve início, com segurança, em outros países há alguns meses.

Direito da criança e dever do Estado. Está registrado no Estatuto da Criança, Lei n 8.069 de 13 de julho de 1990, Art. 14 parágrafo único.

Esqueceram? É o que parece. Ou nunca tomaram conhecimento.

Da ação do presidente, não adianta falar. É uma questão que só será resolvida no período eleitoral deste ano, tomara, quando cessarão os insultos diários à população brasileira. Mas o ministro tem insistido em manter uma postura caricatural do seu chefe.

O que um médico ganha com isso, já no fim da carreira? Como diria o presidente, o que está por trás? Ninguém sabe. Cidadãos de bem enxergam melhor com atitudes transparentes.

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Cerco aos não vacinados se fecha em todo o mundo

O Globo

À medida que a variante Ômicron se espalha, produzindo recordes de infecções, aumenta o cerco de governos e autoridades sanitárias aos não vacinados. Graças aos benefícios trazidos pelas vacinas, que reduzem hospitalizações e mortes, as estratégias para prevenir a Covid-19 passaram a dar mais ênfase à imunização que a medidas de restrição ao comércio e serviços. Em todo o planeta, a recomendação para vencer o vírus tem sido clara: vacinar, vacinar e vacinar.

Como ficam os não vacinados e defensores das campanhas antivacina? Com espaço cada vez mais reduzido. Se os negacionistas, alegando defender uma pretensa liberdade individual, podem ter direito a não comparecer aos postos, então as autoridades têm o dever de barrá-los em locais de grande frequência em nome da saúde coletiva. Assim tem sido. Os passaportes sanitários para comprovar a vacinação se tornaram fundamentais para aumentar a segurança em lugares de grande afluxo.

Em que pese o caráter midiático da decisão, o veto do governo da Austrália à entrada do tenista Novak Djokovic, número um do ranking, por não apresentar o passaporte de vacinação, pôs a questão na ordem do dia. Negacionista conhecido, ele alegou que tinha autorização de exceção dada pelos organizadores e obteve uma liminar da Justiça para participar do Aberto da Austrália, depois revogada em instância superior. Djokovic foi deportado ontem do país e se tornou um pária no esporte.

Cacá Diegues: O livre canto

O Globo, 16/01/2022

O maior adversário da cultura, em todos os regimes que o homem conheceu em sua História, sempre foi o poder

O assunto da semana foi a série documental, realizada por Renato Terra para a televisão, sobre Nara Leão. Conforme nossa disposição, o título do programa já nos provoca uma reflexão indispensável sobre o que fazer de nosso eventual silêncio: “O canto livre de Nara Leão”.

Se ela nos propunha um “canto livre”, só podia ser porque havia de haver na sociedade em que vivíamos um espaço em que não tínhamos liberdade para cantar o que desejávamos. Onde cantar o que gostaríamos de cantar seria um projeto de rompimento com algum tipo de poder. E o maior adversário da cultura, em todos os regimes que o homem conheceu em sua História, sempre foi o poder. Uma cultura a serviço do poder, será sempre um compromisso da imaginação com as garras da política, um acordo criminoso entre a força da criação e o fortalecimento de quem manda.

O que as pessoas que andei ouvindo sentiram foi, da parte de nossa geração, que viveu intensamente aqueles anos com o apoio do que faziam seus ídolos, uma enorme saudade de um tempo em que as manifestações culturais tinham um peso e evidente cobertura da sociedade, que pensava pensar o país como nós fazíamos. Ou a partir do que poderíamos oferecer como alternativa de ideal “politizado”.

E, por outro lado, a ignorância das novas gerações sobre um período que elas não viveram, mas do qual ouviram falar intensamente. Tenho a impressão de que, para esses, o que mais se destaca no consumo daquele documentário é a súbita descoberta de uma articulação fértil entre cultura e política. Como se essas duas manifestações humanas, independente da conciliação de políticos ou do oportunismo de artistas, acabassem por “dar uma alma ao Brasil”.

Renato Terra*: O que Nara Leão tem a dizer em 2022?

O Globo, 16/01/2022

Cantora era tão à frente de seu tempo que ainda tem novidades para nos contar

Na sexta-feira retrasada, dia 7 de janeiro, estreou no Globoplay a série “O canto livre de Nara Leão”, que realizei junto com uma equipe dos sonhos do núcleo de documentários do “Conversa com Bial”, o Conversa.doc.

Recebi uma enxurrada de mensagens profundamente emocionadas e aproveito para agradecer. Muita gente descobriu Nara Leão. Muita gente se identificou com Nara. Se apaixonou, chorou, se inspirou.

Nara era tão à frente de seu tempo que ainda tem novidades para nos contar. Algumas questões centrais na sua obra tocam fundo no Brasil de 2022.

A diversidade brasileira é um trunfo, Nara. É a palavra nova que podemos dar ao mundo. Da união de ritmos africanos com europeus, criamos, aqui, o samba. O samba, com o jazz, deu na nossa bossa nova. Ao juntar a bossa nova com os sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Keti, Nara fundou a MPB. O samba, a bossa nova e a MPB são as realizações mais bem-sucedidas de nossa vocação como país. É o que exportamos com mais orgulho. Quantas palavras novas ainda podemos criar?

Música | Nara Leão: Grândola Vila Morena

 

domingo, 16 de janeiro de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto*: A encruzilhada de Lula

Os resultados da primeira grande pesquisa do ano de 2022 envolvendo intenções de voto para a eleição presidencial (da Quaest, consultoria e pesquisa) registraram uma estabilidade do quadro virtual da competição que não dá lugar a comentários novos. Continua a valer a distinção feita, nesta coluna, na semana passada, entre conjuntura e cenários. Mas é fato que, dentre os cenários possíveis, o correr do tempo, até aqui, sugere como mais provável o mesmo que, em linhas gerais, há meses está posto por pesquisas dessa mesma fonte e outros institutos de análoga credibilidade.  O céu aparentemente sem nuvens que sorri ao ex-presidente Lula instiga o analista a desviar o olhar prospectivo de conjecturas sobre possíveis cenários alternativos de competição e a fixá-lo nos movimentos do ex-presidente e do seu entorno, tentando analisar as tendências da sua campanha eleitoral e de um eventual governo seu. Se essa é, até aqui, a hipótese mais provável, é interesse público especular sobre sentidos que ela pode assumir, a depender de movimentos que fazem e dos que podem fazer o próprio Lula e outros atores.

De início é preciso registrar e honrar a presença, também nesse assunto, dela, da incerteza - a onipresente companhia da qual nenhum assunto político se separa. A pergunta talvez mais relevante no momento seja se Lula está indo/irá ao centro em busca de uma eleição numericamente consagradora e indiscutível ou se buscará outro tipo de consagração, por vencer um terceiro turno da eleição de 2018. Nesse último caso, um acerto de contas em torno do passado recente, seu e do seu partido; no primeiro caso, a busca de liderar diferentes forças civis e políticas do país numa quadra de reconstrução nacional.

Personagem muito apetente, do ponto de vista político, Lula parece perseguir ambas as consagrações, para ser ao mesmo tempo amado como pacificador da pátria e temido como vencedor de uma revanche. Ao seu redor há coadjuvantes adequados e figurantes aptos para cada um dos dois scripts, embora os da revanche façam, por hábito e vocação, bem mais barulho. A trama ambígua, aos poucos, começou a chegar a públicos mais amplos, nos estertores do ano passado e nesses primeiros dias de 2022.  

O barulho da esquerda negativa às vezes confunde e leva gente de opinião ponderada e progressista a improvisar juízos reativos rápidos que terminam se somando à histeria que acomete a direita negativa. É precisamente o caso da discussão instalada a respeito de uma eventual revisão, ou revogação, da reforma trabalhista de 2017. É possível, em meio à cacofonia, ter juízo racional sobre o tema. Como teve o ex-presidente Michel Temer, personagem implicadíssimo no enredo, em recente entrevista concedida à jornalista Daniela Lima e seus colegas Renata Agostini e Leandro Rezende. Pelo conteúdo esclarecedor e politicamente lúcido da fala, vale, quem não assistiu, dar uma busca nos arquivos de vídeo da CNN. Ajudará a distinguir, no debate atual, visões de quem quer debate público das de quem quer revanche.

Luiz Sérgio Henriques*: Chile, Itália, Brasil

O Estado de S. Paulo.

A ‘reflexão sobre os fatos do Chile’ se impõe como necessidade para nós, brasileiros. Um país partido ao meio é a antessala do caos e da regressão

Palcos de acidentada história política, Chile e Itália compartilharam, nos anos 1970, desafios que de triviais nada tinham. Descontada a diversidade institucional – entre um presidencialismo latino-americano e um parlamentarismo quase clássico –, havia ainda assim similitudes.

Nosso vizinho chileno vivia o embate entre forças de esquerda, como o Partido Socialista e o Partido Comunista, e de centro ou centro-direita, a principal das quais a Democracia Cristã. A paisagem italiana, até nominalmente, parecia replicar a disputa, uma vez que lá também se defrontavam uma democracia cristã de profundas raízes populares e o mais criativo dos partidos comunistas do Ocidente – duas agremiações, de resto, corresponsáveis pela reconstrução no pós-guerra.

Natural que a atenção dos italianos se voltasse para a experiência de mudança que transcorria no outro lado do oceano. Contando com maioria relativa, não passava pela cabeça do presidente Allende implantar uma “segunda Cuba”, o que lhe era substantivamente estranho, mas, antes, discernir uma via original para algum tipo de socialismo, obviamente imaginado segundo os parâmetros da época.

O golpe pinochetista de 1973 iria alarmar Enrico Berlinguer, o Partido Comunista Italiano (PCI) e seu eurocomunismo. A “reflexão sobre os fatos do Chile” que o dirigente italiano logo empreendeu o fez proclamar que, até para introduzir modestos “elementos de socialismo”, não bastava conseguir metade mais um dos votos. Simplesmente inaceitável cortar ao meio um país para levar adiante a boa transformação.

Contemporâneos costumam se iludir, no todo ou em parte, sobre o combate que travam. O finalismo socialista – a ideia de uma sociedade superior inscrita nas coisas, uma espécie de meta histórica in progress – já começara a definhar, e disso nem sempre os atores se davam conta. Mas conceitos que circularam, como o “compromisso histórico” ou a “solidariedade nacional”, ajudaram a Itália a suportar as ações torpes do terror, como o sequestro de Aldo Moro, dirigente democrata-cristão protagonista do diálogo com os comunistas. (No Brasil do regime de 1964 – cabe lembrar – a parte mais lúcida da esquerda reiterava o adeus às armas e a condenação da violência política, fosse qual fosse, mesmo quando aparentemente “justificada”.)

Luiz Carlos Azedo: Nunca os conflitos do Cáucaso estiveram tão perto de nós

Correio Braziliense / Estado de Minas

Estados Unidos acusam a Rússia de preparar uma invasão da Ucrânia, enquanto Putin ameaça instalar bases militares na Nicarágua e na Venezuela. E nós com isso?

O escritor Nikolai Vassílievitch Gogol (1809-1852) é considerado um dos pais da literatura russa. Segundo Fiódor Dostoiévski, autor de Crime e Castigo, todos os grandes autores russos que conhecemos saíram do conto O capote, de Gogol, a história tragicômica de Akaki Akakiévitch, um funcionário público na Rússia czarista, cuja maior ambição era comprar um capote novo: “Não, é melhor não dizer seu nome. Ninguém é mais suscetível do que funcionários, empregados de repartições e gente da esfera pública. Nos dias que correm, todo sujeito acredita que, se nós atingimos a sua pessoa, toda a sociedade foi ofendida”. A novela mostra a frieza e a futilidade da aristocracia do Estado tzarista, em São Petersburgo.

Notável contista, os romances mais famosos de Gogol são Tarás Bulba (1834) e Almas Mortas (1842). Maria, um dos seus contos, descreve o drama da filha de um chefe cossaco aliado do Pedro, o Grande, e casada com um dos generais de Carlos XII da Suécia. A filha presencia o marido matar seu pai num duelo e fugir com o exército inimigo. A jovem enlouquece. É uma alusão à fuga de Ivan Mazepa, um general cossaco do Exército sueco. E uma alegoria da histórica divisão da Ucrânia.

Após derrotar a Saxônia, a Dinamarca e a Polônia, aliados de Pedro, o rei Carlos XII da Suécia tentara pôr fim à guerra invadindo a Rússia, em 1708. Em abril de 1709, Carlos XII, com o apoio do líder cossaco Ivan Mazepa, atacou o forte de Poltava no Hetmanato Cossaco. Os suecos atacaram o campo entrincheirado dos russos, que era defendido por 42 mil soldados. A vitória russa obrigou Carlos e Ivan Mazepa a fugirem para o Império Otomano.

Eliane Cantanhêde: Não tem jeito?

O Estado de S. Paulo.

Ao jogar a toalha antes do tempo, o defensor da terceira via cristaliza o Lula x Bolsonaro

A eleição presidencial deu um salto no fim do ano e congelou no ar, com Lula confortavelmente na frente, Jair Bolsonaro mantendo um quarto do eleitorado apesar de tudo, Sérgio Moro em terceiro, mas sem chegar a dois dígitos, Ciro Gomes entre ser ou não ser e João Doria estranhamente quieto, fiandose num selo, “pai das vacinas”.

À vontade, Lula parte para investidas internacionais, discute a sério o nome do (ou da) vice, consolida alianças no Nordeste e avança no Sudeste, enquanto Bolsonaro atira a esmo e acerta o próprio pé, ajoelha para o Centrão e afugenta militares, empresários, banqueiros, grandes produtores rurais...

Quanto mais gente torce para viabilizar uma opção aos extremos, mais cresce a angústia e dispara a precipitação. Uns dizem: “O Brasil não merece Lula nem Bolsonaro, mas, se for assim, vou com Lula”. Outros: “Esse presidente é um doido, mas entre ele e Lula, fico com ele. No Lula, não voto de jeito nenhum”.

Ou seja: os que mais querem a terceira via são os que cristalizam a polarização entre Lula e Bolsonaro, jogando a toalha, disseminando o mantra de que “não tem jeito” e antecipando o segundo turno.

Celso Lafer*: Liderança, conhecimento e negacionismo

O Estado de S. Paulo.

Conduta de Bolsonaro prejudica o País e a capacidade da sociedade brasileira de encontrar rumos presentes e futuros

Uma das características da liderança é a capacidade de indicar rumos. Na especificidade do mundo da política, espera-se de uma liderança qualificada que tenha antenas para perceber o sentido e o movimento dos acontecimentos, o que sente e toca a população e, em função destas percepções, tenha aptidão para engendrar os meios para dar um rumo à sociedade. No desincumbir-se da gestão, uma liderança, à luz das circunstâncias e da estratégia de sua personalidade, pode dar mais ou menos ênfase à inovação e à transformação ou à preservação e à estabilização da sociedade. Usualmente, uma liderança bem-sucedida sabe criativamente combinar as duas facetas, como é caso, por exemplo, do presidente americano Franklin D. Roosevelt.

Numa democracia, é parte integrante da responsabilidade, da liderança presidencial, não destruir e pelo menos conservar e, se possível, ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre seus rumos.

Decorridos três anos da gestão de Bolsonaro, o saldo do que encontrou e do que está deixando é francamente negativo, para valer-me da medida preconizada por Joaquim Nabuco em Balmaceda, para julgar o valor de um chefe de Estado. Ele nem conservou nem ampliou o controle do País sobre os seus caminhos em todas as esferas em que vem, direta ou indiretamente, atuando.

Dorrit Harazim: Liberdades

O Globo

Durante uns poucos dias, duas tribos humanas estiveram lado a lado numa rua de Melbourne, na Austrália, para clamar por mais justiça e mais liberdade. Pareciam comungar do mesmo ideário, apesar de a parceria ter durado apenas umas 80 horas — já foi muito, visto que tinham pouco em comum. A tribo mais antiga há muito deixara de atrair jornalistas, pois protestam desde dezembro de 2020, todo santo dia (as normas da Covid-19 permitindo), em frente ao antigo Carlton’s Park Hotel, transformado em centro de internação compulsória. Exigem a libertação de refugiados estrangeiros que buscaram abrigo na Austrália e ali estão confinados sem prazo para sair.

A segunda tribo, energizada e ruidosa, apareceu de supetão no mesmo endereço, com a mídia mundial. Juntou compatriotas, admiradores e simpatizantes do sérvio Novak Djokovic, um dos atletas mais celebrados do planeta. Como se sabe, o extraordinário tenista havia sido interceptado pela imigração australiana na semana passada e, por não estar vacinado nem apresentar a documentação adequada de exceção, fora encaminhado ao local de confinamento dos refugiados. Entre espetaculosas idas e vindas judiciais em torno da deportação ou não do astro, e de sua eventual exclusão do Aberto da Austrália, que se inicia amanhã (esta noite no Brasil), apenas uma das duas tribos permanecerá no local — a dos invisíveis.

Elio Gaspari: O mico da fábrica de fertilizantes

O Globo

O atual governo é amigo do agronegócio, a Petrobras é administrada como uma empresa, o ministro da Economia é um campeão da iniciativa privada, e na cidade de Três Lagoas (MS) há um elefante branco, candidato a fóssil.

Com nome de vírus, é a UFN3, ou Unidade de Fertilizantes Nitrogenados, projetada pela Petrobras para produzir ureia e amônia suficientes para reduzir o gargalo das importações. Sua história completou doze anos e retrata a bagunça da administração pública nacional, onde todos têm razão, mas produzem maluquices.

As obras da UFN3, em terreno doado à prefeitura, começaram em 2011, a cargo da empreiteira Queiroz Galvão e de um consórcio chinês. A obra chegou a ter sete mil trabalhadores, mas os seus responsáveis começaram a calotear fornecedores e operários, provocando greves e até mesmo desordens. Em 2014, a Petrobras rescindiu o contrato com os empreiteiros, e a obra parou, com 83% do serviço já concluído. Àquela altura, UFN3 já havia consumido cerca de R$ 3 bilhões.

Passaram-se três anos, e em 2017 a Petrobras anunciou que venderia a fábrica. Faltou combinar com o Supremo Tribunal Federal, e no ano seguinte o ministro Ricardo Lewandowski bloqueou o feirão das privatizações da petroleira. Em 2019, esse bloqueio foi levantado e começou a caça a um comprador, com uma novidade: a Petrobras anunciou que sairia do mercado de fertilizantes.

Janio de Freitas: Brasil made in US

Folha de S. Paulo

Risco a que Bolsonaro e seguidores submetem a eleição reproduz o que levou à insegurança americana

Os americanos estão vivendo um sadomasoquismo nacional com fins imprevisíveis: experimentam as aflições latino-americanas incutidas pelos Estados Unidos por mais de um século. Sem interrupção, sem que um só dos países independentes na região, ou em vias de sê-lo, passasse à história como virgem na violação em massa do direito de conduzir-se.

O suspense dos Estados Unidos entre a salvação do seu sistema legal e a vitória da irracionalidade despertada por Trump é, na essência, um sentimento latino-americano, lá vivido com características locais.

A passividade dos latino-americanos ante sua expectativa é, nos americanos, uma queda livre desde as alturas de sua autoimagem até ao estranhamento da própria identidade. A pessoal e a do país. Perplexidade diferente, mas não ausente no lado insurreto, cuja fúria não tem fins definidos, nem nos incapazes de defesa eficaz.

Nesse estado confuso, os poderes políticos, da imprensa/TV e dos demais setores influentes nem sequer foram capazes de ir além da expressão "ameaça à democracia americana", para rotular sua percepção temerosa. O como, o porquê e o para quê não atravessam o choque de realidade ou a incredulidade forçada.

À margem, cresce o uso da expressão "ameaça de guerra civil", impossível saber se por exagero ou lucidez no país belicoso e de população armada. Mas tanto os reprimidos como os avançados buscam socorro, em vão, na pergunta a que muitos nem quereriam responder: como foi possível os Estados Unidos chegarem a isso?

Vinicius Torres Freire: Bolsonaro golpista na eleição

Folha de S. Paulo

Ataque a urnas, ao STF, favor para amigos e loucura antivacina estão no menu

Na semana passada, Jair Bolsonaro voltou a dizer que roubaram seus votos em 2018 —sua vitória teria ocorrido no primeiro turno, caso as eleições fossem "limpas". Voltou a atacar ministros do Supremo Tribunal Federal. Disse que Alexandre de Moraes e Luís Barroso são lulistas.

O Bolsonaro freneticamente golpista de setembro de 2021 volta a botar as asinhas de fora. O arroz com feijão bolsonarista está no prato —ou, melhor dizendo, o pão com leite condensado está na mesa. São mais pistas do que deve ser a campanha da reeleição, sinais visíveis desde a virada do ano de vadiagem e desumanidades. Parece que Bolsonaro e sua turma querem garantir votos para passar para o segundo turno e ver o que dá no mata-mata final.

Como? Com favores localizados e loucura generalizada. Quer garantir aqueles eleitores que, depois de tudo, ainda o apoiam, cerca de 25%, o bastante provavelmente para jogar para fora da pista o pessoal da "terceira vida", apesar de dois terços do eleitorado o rejeitarem.

Bruno Boghossian: Atalho pelo lamaçal

Folha de S. Paulo

Ex-juiz repete Bolsonaro e fala em combater fantasma da 'sexualização precoce' de crianças

Nenhuma investida de Sergio Moro na corrida presidencial pareceu tão intensa até aqui quanto a busca pelo voto conservador. O ex-juiz escalou um advogado evangélico para coordenar essa área da campanha e se reuniu com mais de 50 líderes religiosos. Na última semana, ele disse que pretende lutar contra a "sexualização precoce" de crianças.

Não há candidato que defenda o contrário, então a promessa de Moro poderia ser encarada como uma proposta vazia para enfrentar um problema inexistente. Essa plataforma, no entanto, lembra o jogo sujo que o bolsonarismo explorou para demonizar adversários e assegurar o domínio do eleitorado conservador.

Em 2018, Jair Bolsonaro transformou a questão num ponto central da campanha. Ele dizia que a esquerda distribuiu na rede pública de ensino um livro infantil que "estimula precocemente as crianças para o sexo". Depois de eleito, usou o tema para esconder os fracassos de seu governo e afirmou ter zerado "aquela sexualização na escola".

O que pensa a mídia: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

A tentação de gravar tudo na Constituição

O Globo

Com 250 artigos — acrescidos de mais 118 em disposições transitórias —, 114 emendas desde a promulgação e 76.413 palavras na versão mais recente, a Constituição brasileira é a segunda mais extensa do mundo, perdendo apenas para a indiana. Em escopo temático e direitos garantidos, poucas chegam perto dela. Estão inscritos na nossa Carta os portos lacustres, a polícia ferroviária federal e até o Colégio Pedro II. Durante a Constituinte, nas palavras memoráveis de Roberto Campos, “cada parlamentar sentia a tentação insopitável de inscrever no texto sua utopia particular”.

O resultado é a profusão de emendas que até hoje tentam corrigir — e continuam a engordar — o texto constitucional. Cinco anos atrás, ele tinha 69.436 palavras. Desde então já ganhou quase 7 mil, um crescimento superior a 10%. A “tentação insopitável” prossegue na forma de outra expressão consagrada por Roberto Campos: a “fúria legiferante” das Propostas de Emenda Constitucional, ou PECs. Há 997 em tramitação na Câmara e 344 no Senado. Parece que tudo o que se quer consertar no Brasil envolve alguma emenda à Constituição. Trata-se, porém, de um trâmite intrinsecamente lento e politicamente penoso, que envolve duas votações com maioria de três quintos em ambas as Casas Legislativas. Reformas essenciais poderiam começar sem a necessidade de mexer na Carta. É o caso de duas das mais urgentes: a tributária e a administrativa.

No campo tributário, quase todos os impostos são regidos por leis ordinárias, cuja mudança exige esforço legislativo bem menor que uma PEC. Mais que isso, boa parte da insegurança jurídica responsável pelo contencioso recorde no Brasil — R$ 5,4 trilhões em 2019, segundo estimativa do Insper — deriva de interpretações dos milhares de normas da Receita Federal, decisões do Carf e outras regulações que formam o proverbial “cipoal tributário”.

O Poder Executivo poderia criar normas para identificar as interpretações que dão mais problema no Carf, exigindo que as regras ficassem claras para todos. A Receita Federal poderia ser obrigada por lei a publicar opiniões mediante questionamentos (avisos aos contribuintes), de modo a evitar práticas que resultem em autos de infração. Nada disso depende de mudar a Constituição — e só isso já traria outro grau de segurança jurídica aos negócios.

Bernardo Mello Franco: Thiago de Mello, o último dos Oito do Glória

O Globo

Nenhum golpista admite que deu golpe. Todo ditador quer ser visto como democrata. A regra foi seguida à risca pelo marechal Castello Branco. Ele assumiu a Presidência em abril de 1964, depois da quartelada que derrubou João Goulart.

Os conspiradores exigiam ser chamados de revolucionários. Diziam defender a liberdade, desde que ninguém ousasse criticá-los. Prometiam restaurar a ordem e devolver o poder aos civis. Mas logo extinguiram os partidos políticos e cancelaram as eleições.

Em novembro de 1965, o Rio sediou uma conferência da Organização dos Estados Americanos. O encontro atraiu delegações de todo o continente ao Hotel Glória. Ao descer do Rolls Royce presidencial, Castello foi surpreendido por uma vaia.

O protesto reunia um pequeno grupo de artistas e intelectuais. Eles abriram faixas com dizeres como “Abaixo a ditadura” e “Viva a liberdade”. A polícia não achou graça e levou oito manifestantes em cana, no episódio que ficaria conhecido como os Oito do Glória.

Foram presos Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Márcio Moreira Alves, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Mário Carneiro, Flávio Rangel e Jayme de Azevedo Rodrigues. O nono elemento da trupe era o poeta Thiago de Mello. Ele conseguiu fugir, mas depois se entregou ao Exército.

Sua passagem pelo cárcere teve lances tragicômicos. Ouvido em Inquérito Policial Militar, Mello disse sentir uma “ternura humana muito grande” pelos companheiros de cela. O coronel Andrada Serpa achou a expressão muito poética. Mandou o escrivão trocá-la por “relações fraternais”.

Ao deixar a cadeia, o amazonense reafirmou suas convicções políticas. Tempos depois, a barra pesou e ele precisou sair do país. Refugiou-se no Chile, onde colaborou com o governo de Salvador Allende antes de enfrentar mais um golpe.

O regime via Mello como um perigoso subversivo. Em 1971, o SNI anotou que ele promovia “a desmoralização da Revolução de 31 de Março”. O dossiê registra, em tom de reprovação, que o poeta tinha “vocação boêmia” e “grande penetração no meio universitário”.

Poesia | Thiago de Mello: Os Estatutos do Homem

 

(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I.

Fica decretado que agora vale a verdade.

que agora vale a vida,

e que de mãos dadas,

trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.

Fica decretado que todos os dias da semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.

Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,

abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.

Fica decretado que o homem

não precisará nunca mais

duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem

como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar,

como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:

O homem confiará no homem

como um menino confia em outro menino.

Artigo V.

Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.

Artigo VI.

Fica estabelecida, durante dez séculos,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.

Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.

Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre

não poder dar-se amor a quem se ama

e saber que é a água

que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.

Fica permitido que o pão de cada dia

tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha sempre

o quente sabor da ternura.

Artigo X.

Fica permitido a qualquer pessoa,

a qualquer hora da vida,

o uso do traje branco.

Artigo XI.

Fica decretado, por definição,

que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo.

muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.

tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:

Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

Artigo XIII.

Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma espada fraternal

para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade.

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).

In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.