EDITORIAIS
A tentação de gravar tudo na Constituição
O Globo
Com 250 artigos — acrescidos de mais 118 em
disposições transitórias —, 114 emendas desde a promulgação e 76.413 palavras
na versão mais recente, a Constituição brasileira é a segunda mais extensa do
mundo, perdendo apenas para a indiana. Em escopo temático e direitos
garantidos, poucas chegam perto dela. Estão inscritos na nossa Carta os portos
lacustres, a polícia ferroviária federal e até o Colégio Pedro II. Durante a
Constituinte, nas palavras memoráveis de Roberto Campos, “cada parlamentar
sentia a tentação insopitável de inscrever no texto sua utopia particular”.
O resultado é a profusão de emendas que até
hoje tentam corrigir — e continuam a engordar — o texto constitucional. Cinco
anos atrás, ele tinha 69.436 palavras. Desde então já ganhou quase 7 mil, um
crescimento superior a 10%. A “tentação insopitável” prossegue na forma de
outra expressão consagrada por Roberto Campos: a “fúria legiferante” das
Propostas de Emenda Constitucional, ou PECs. Há 997 em tramitação na Câmara e
344 no Senado. Parece que tudo o que se quer consertar no Brasil envolve alguma
emenda à Constituição. Trata-se, porém, de um trâmite intrinsecamente lento e
politicamente penoso, que envolve duas votações com maioria de três quintos em
ambas as Casas Legislativas. Reformas essenciais poderiam começar sem a
necessidade de mexer na Carta. É o caso de duas das mais urgentes: a tributária
e a administrativa.
No campo tributário, quase todos os
impostos são regidos por leis ordinárias, cuja mudança exige esforço
legislativo bem menor que uma PEC. Mais que isso, boa parte da insegurança
jurídica responsável pelo contencioso recorde no Brasil — R$ 5,4 trilhões em
2019, segundo estimativa do Insper — deriva de interpretações dos milhares de
normas da Receita Federal, decisões do Carf e outras regulações que formam o
proverbial “cipoal tributário”.
O Poder Executivo poderia criar normas para identificar as interpretações que dão mais problema no Carf, exigindo que as regras ficassem claras para todos. A Receita Federal poderia ser obrigada por lei a publicar opiniões mediante questionamentos (avisos aos contribuintes), de modo a evitar práticas que resultem em autos de infração. Nada disso depende de mudar a Constituição — e só isso já traria outro grau de segurança jurídica aos negócios.
Na gestão do funcionalismo, foco da reforma
administrativa, várias mudanças também prescindem de piruetas constitucionais.
Entre oito exemplos elencados numa análise do Instituto República.org, três se
destacam: 1) o projeto que disciplina os supersalários no Executivo e no
Judiciário, eliminando os abusos das verbas indenizatórias; 2) o que estabelece
critérios técnicos para a ocupação dos cargos comissionados; 3) o que enfim
regulamenta o desligamento dos funcionários públicos que apresentem baixo
desempenho, como determina uma Emenda Constitucional de 1998. Nada disso
depende de mexer na Constituição.
A “tentação insopitável” de gravar tudo na
Constituição — para, presume-se, evitar recursos ao Supremo questionando as
novas leis — tem tornado as reformas mais difíceis e custosas. Sobra a “fúria legiferante”
e falta o que a tributarista Vanessa Canado, do Insper, chama de “trabalho de
prancheta”: o estudo paciente e minucioso de medidas que, mesmo não tão
vistosas quanto uma PEC, podem trazer resultados mais rápidos e eficazes.
Avaliar interferência do 5G em aviões é
questão mais jurídica que técnica
O Globo
Fazem bem a Agência Nacional de
Telecomunicações (Anatel) e a Embraer em produzir um estudo detalhado sobre a
possibilidade de as antenas da quinta geração da telefonia celular (5G)
interferirem nos equipamentos de navegação aérea do país. Mas o resultado será
mais uma garantia política e jurídica para evitar problemas, já que a
possibilidade técnica de isso ocorrer foi analisada e descartada por diversos
estudos.
A iniciativa das autoridades brasileiras
foi precipitada pela decisão das operadoras americanas de adiar a estreia do
5G, prevista para este mês em várias cidades, diante de um alerta da
Administração Federal de Aviação (FAA) mencionando a “possibilidade” de que os
sinais de 5G interferissem nos altímetros usados para pousar aviões em
situações de baixa visibilidade.
Tais equipamentos funcionam na frequência
entre 4,2 GHz e 4,4 GHz, próxima da usada para a telefonia 5G nos Estados
Unidos, entre 3,7 GHz e 3,98 GHz. Certos altímetros não dispõem, segundo a FAA,
dos filtros necessários para descartar sinais que transbordem sua frequência de
funcionamento, daí o temor de interferência.
A questão foi levantada no início da
implantação do 5G nessa faixa de frequência, conhecida como banda C. A Comissão
Federal de Comunicações (FCC), responsável pela alocação do espectro americano,
deixou uma faixa de segurança de 220 MHz entre as frequências do 5G e dos
altímetros, denominada “banda de guarda”. Na ocasião, a própria Boeing sugeria
que 100 MHz seriam suficientes. A FCC foi além do dobro para garantir a
segurança.
Ainda assim, a indústria aeronáutica baseou
seu pedido contra o 5G num estudo do Instituto de Sistemas para Veículos
Aeroespaciais (AVSI), que apontava problemas nas simulações para o pior
cenário. “Mentes claras precisam saber separar o que é só uma possibilidade
hipotética baseada nas premissas do pior caso do que é altamente provável com
base no uso no mundo real”, escreveu o ex-presidente da FCC Tom Wheeler em
análise da questão.
Outro estudo, da empresa de engenharia
Alion, criticou as hipóteses extremas do estudo da AVSI e descobriu que os
altímetros falhavam em virtude da interferência de outros altímetros, não dos
sinais do 5G. Ao analisá-lo, os técnicos da FCC descartaram que a interferência
pudesse ocorrer em “cenários razoáveis” ou mesmo em “imagináveis dentro da
razoabilidade”.
No Brasil, a interferência é ainda menos
provável, pois a “banda de guarda” entre as faixas de frequência dos altímetros
e do 5G é bem maior: 500 MHz. Isso acontece porque, no Brasil, a banda C para o
5G foi liberada entre 3,5 GHz e 3,7 GHz (essa faixa é reservada para múltiplos
usos nos Estados Unidos). Os problemas na alocação do espectro são, desde o
início, a principal razão para o atraso dos americanos na tecnologia 5G. Por
operar na faixa de 3,5 GHz, a China conseguiu desenvolver equipamentos melhores
e mais baratos. Não se tem notícia de que por lá, onde o 5G está em
funcionamento desde 2019, tenha causado algum problema no pouso dos aviões.
Diagnóstico de terra arrasada é enganoso
O Estado de S. Paulo.
Ignorar o muito que se fez nas últimas décadas é um modo certeiro de impedir a resolução dos problemas que ainda persistem. Houve progressos relevantes em muitas áreas
A crise social e econômica, aliada a
contínuas confusões e manobras políticas, tem sido ocasião para o surgimento de
diagnósticos acentuadamente negativos sobre o País. Não são meras avaliações
pessimistas ou que dão ênfase a alguns aspectos especialmente dramáticos da
realidade contemporânea. Trata-se de outra modalidade de diagnóstico. De forma
categórica, tais diagnósticos negam a existência – nos últimos 30 anos ou mesmo
nos últimos 40 anos – de qualquer avanço significativo para a população.
Segundo essa tese pretensamente realista, as últimas décadas do País teriam
sido rigorosamente perdidas.
São muitos os problemas que precisam ser
enfrentados. Além disso, a história nunca é uma linha contínua de progresso. Ao
olhar a trajetória nacional dos últimos anos, detectam-se vários casos de
retrocesso institucional, social, político e econômico, alguns deles recentes e
muito prejudiciais. De toda forma, não corresponde aos fatos a avaliação de
que, desde os anos 80 do século passado, não teria havido avanços
significativos para a população.
Nos últimos 40 anos, houve progressos
relevantes em muitas áreas; por exemplo, no funcionamento das instituições, no
exercício das liberdades cívicas e, muito especialmente, na imensa maioria dos
indicadores sociais e econômicos. Basta ver que, no período, o País reduziu a
mortalidade materna e infantil, o analfabetismo e o número de famílias em
situação de miséria.
O momento atual, em que muitos brasileiros
voltaram a passar fome ou não têm perspectiva de emprego, não é muito propício
para louvar os indicadores sociais nacionais. Velhas e novas desigualdades
estão escancaradas nas ruas de todas as cidades. No entanto, ignorar os
progressos realizados nas últimas décadas é um modo certeiro de impedir o
enfrentamento dos problemas que ainda persistem.
Desde os anos 80, foram feitas importantes
reformas, que trouxeram benefícios significativos para a população. São muitos
os exemplos: a extinção da chamada “conta movimento” do Banco do Brasil, a
estabilidade graças ao Plano Real, a legislação referente à responsabilidade
fiscal, as privatizações dos anos 90, o marco jurídico das agências
reguladoras, a universalização do ensino fundamental, a legislação ambiental e
o marco civil da internet. Tudo isso proporcionou melhorias importantes para o
País.
Além disso, os diagnósticos que pretendem
transformar o País em terra arrasada ignoram um aspecto importante da vida
nacional. Nos últimos 40 anos, houve muitas políticas públicas que deram certo.
No período, Executivo e Legislativo – nas esferas federal, estadual e municipal
– acertaram muitas vezes. O País tem hoje experiências muito positivas, que se
mostraram altamente eficazes, no campo da educação, da saúde e da
infraestrutura, por exemplo.
Há muito o que avançar, mas seria injusto
ignorar o muito que se fez. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem muitas
deficiências, mas é inegável que a população tem hoje um atendimento de saúde
muito melhor do que há 40 anos. E isso não é resultado da sorte ou da mera
passagem do tempo. É fruto de decisões políticas corretas e, de forma muito
especial, do trabalho dedicado de muita gente séria e competente, ao longo de
todo esse tempo. Há ineficiência, desperdício e malfeitos no setor público, mas
há também excelência, compromisso e persistência.
O diagnóstico que não vê nenhum avanço não
é apenas equivocado. Ele difunde implicitamente – às vezes, de maneira
explícita – a mensagem de que as instituições não funcionam, de que o serviço
público não funciona e de que o Estado é um fracasso. Todas essas ideias são
utilizadas depois para sustentar a causa da antipolítica e, em último termo,
para desmerecer o regime democrático. É um sofisma perigoso que, com sua
parcial verdade aparente (destaca os problemas) e sua mentira oculta (ignora os
avanços), ataca não apenas os princípios do Estado Democrático de Direito, mas
corrói o próprio tecido social, ao reduzir a coletividade à dimensão da
inutilidade. Há muito a avançar e, precisamente por isso, não se deve destruir
o que foi feito.
A ofensa de cada dia de Bolsonaro
O Estado de S. Paulo.
Em tática diversionista, Bolsonaro agride
quem vê como adversário. Sem fundamento, inventa acusações contra ministros do
STF, assim como havia feito com a Anvisa
No início do quarto ano de governo, Jair
Bolsonaro deixa claro que não tem nenhuma intenção de mudar seu comportamento.
Seus recentes atos consolidam a imagem do governante que não governa, desejando
manter-se tanto quanto possível alheio às responsabilidades do cargo. E, quando
as circunstâncias lhe são desfavoráveis – afinal, suas confusões e omissões
produzem consequências –, Jair Bolsonaro reage agredindo e fazendo insinuações
contra quem considera seu adversário.
Há um país a ser governado, com problemas a
serem enfrentados. A fome voltou. A taxa de inflação ultrapassou os dois
dígitos. O desemprego continua dramaticamente alto. Diante dessa situação, Jair
Bolsonaro opta pela tática diversionista. Sem nenhum fato novo por parte do
Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente voltou a agredir os ministros
Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso, vinculando-os à campanha do PT ao
Palácio do Planalto.
“Quem é que esses dois pensam que são? Quem
eles pensam que são? Que vão tomar medidas drásticas dessa forma, ameaçando,
cassando liberdades democráticas nossas, a liberdade de expressão?”, questionou
Jair Bolsonaro em entrevista à Gazeta Brasil, um site que o apoia. “Eles têm
candidato. Os dois, nós sabemos, são defensores do Lula, querem o Lula
presidente”, disse.
A afirmação de Bolsonaro não tem nenhum
apoio nos fatos. Tivesse prevalecido no Supremo o entendimento jurídico do
ministro Luís Roberto Barroso, Luiz Inácio Lula da Silva ainda estaria preso e
inelegível. Ou seja, Jair Bolsonaro simplesmente inventa uma acusação
irresponsável.
Mesmo que não tenha qualquer credibilidade,
a insinuação de Jair Bolsonaro é gravíssima. Com todas as letras, o chefe do
Executivo federal afirmou que dois ministros do Supremo estão atuando, em sua
atividade jurisdicional, para favorecer determinado político. Trata-se de
acusação que fere não apenas a honra de integrantes do STF – o que por si só é
grave e ofende direitos –, mas ataca o próprio Judiciário.
Ao difundir, sem nenhuma base factual,
desconfiança sobre a isenção e a independência do Supremo, Jair Bolsonaro
descumpre o compromisso que fez de defender a Constituição. A credibilidade da
Justiça, assim como a do sistema eleitoral, é elemento essencial de um Estado
Democrático de Direito. Não pode o presidente da República, como se fosse algo
banal, sem importância, difamar a honra de ministros do STF, acusando-os de
descumprir a Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura.
Dias antes, Jair Bolsonaro havia usado a
mesma tática pouco honrosa. Ao criticar a recomendação da Anvisa sobre a
vacinação infantil contra a covid, fez insinuações sobre a honestidade de
funcionários e dirigentes da agência. Não havia nenhum fundamento para a
acusação. Era apenas leviandade. Era apenas o presidente Bolsonaro reagindo por
ter sido contrariado pela Anvisa.
Espera-se mais, muito mais, de um
presidente da República. A batalha política, por mais dura e intensa que possa
ser, não autoriza esse tipo de comportamento que, alheio aos fatos, ao Direito
e às regras mínimas de civilidade, agride e ofende gratuitamente o outro. Não é
assim que se faz política. Não é assim que se vive em sociedade. Mesmo que Jair
Bolsonaro não tenha especial apreço por suas palavras, estas continuam
provocando muitos danos.
Há quem diga que, com seus recentes atos,
Jair Bolsonaro sinaliza como será o tom da sua campanha de reeleição. A rigor,
infelizmente, o presidente da República nunca deu motivo para se pensar que
atuaria de forma diferente. Sua trajetória política, desde os primeiros
mandatos no Legislativo, é uma linha ininterrupta de ofensa ao outro, a quem
não compartilha com suas ideias e alucinações. Tal comportamento sempre foi
grave, mas na presidência da República ganha tons ainda mais dramáticos.
A completar a farsa, aquele que ofende e
difunde inverdades é todo suscetível quando lhe perguntam sobre proximidade com
milicianos, salários de assessores ou cheques na conta da esposa. Felizmente,
engana cada vez menos gente.
Clareza de propósito
Folha de S. Paulo
Frente ao quadro econômico, é fundamental
que candidatos ao Planalto detalhem planos desde já
Na partida do ano eleitoral, esta Folha publicou artigos e entrevistas com
os assessores econômicos de quatro dos candidatos mais bem posicionados nas
pesquisas.
Participaram os colaboradores de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT), Sergio Moro (Podemos), Ciro Gomes (PDT) e João Doria
(PSDB). Assessores dos demais candidatos, assim como do presidente Jair Bolsonaro
(PL), não quiseram se manifestar.
Embora a lógica convencional diga que não
há incentivo para as campanhas anteciparem propostas, a emergência nacional
exige transparência desde cedo para que o país faça uma escolha informada. As
transformações globais, aceleradas pela pandemia, demandam disposição política
para amplas reformas que precisam ser debatidas já.
As análises das candidaturas têm pontos em
comum. O principal é a necessidade de recuperação da capacidade do Estado em
fazer políticas públicas. Requalificar a ação estatal, de fato, é condição para
que o país possa reverter os retrocessos do governo atual e superar o quadro de
estagnação e concentração de renda das últimas décadas.
A recuperação da estabilidade fiscal se
insere nesse contexto, pois sem ela não será possível controlar a inflação e
manter os juros baixos.
As divergências quanto aos meios para
obtê-la logo aparecem, sobretudo em relação à atual âncora fiscal, o teto
de gastos, defendido pela candidatura Doria, mas que, na opinião de Lula e
Ciro, deveria ser reformado, especialmente no que tange aos investimentos
públicos.
De um modo geral, os economistas ligados à
centro-direita pregam um Estado enxuto, com ação focada em áreas de alto
retorno social, além de boa regulação para incentivar investimentos privados.
Para a centro-esquerda, o papel do Estado é
mais amplo. Na plataforma de Ciro, além da estabilidade macro, seria necessária
a retomada dos investimentos públicos em larga escala, coordenando a iniciativa
privada num plano nacional de desenvolvimento. O foco na indústria, caro ao
desenvolvimentismo, aparece com clareza.
O tema do meio ambiente também figura com
ênfases distintas, mas não deixa de ser curioso que tenha sido a direita a
falar em carbono e desmatamento zero.
No entanto, é
o artigo de Guido Mantega,
representante de Lula, que destoa ao ignorar erros petistas sem apresentar
propostas para o futuro. As pertinentes críticas ao governo Bolsonaro logo dão
lugar a um resgate das mesmas receitas de tutela do Estado sobre investimentos
e a retomada de políticas industriais, apesar dos repetidos fracassos nessa
área.
O ano eleitoral está só começando, mas será
fundamental que as campanhas desçam cada vez mais aos detalhes daqui para
frente.
Agenda papal
Folha de S. Paulo
Ao condenar fake news e cancelamentos,
Francisco se mostra atualizado, mas igreja tem suas falhas
Em discurso dirigido a diplomatas, o papa
Francisco criticou a cultura do cancelamento, o pensamento único, o
anacronismo historiográfico e as fake news, em especial aquelas contra a
vacinação. No mérito de cada uma dessas questões, não há como discordar
substancialmente do sumo pontífice.
No caso do cancelamento, muito melhor do
que tentar destruir a reputação de um adversário é rebater os seus argumentos.
Fosse o papa Francisco um cidadão
particular ou um ativista de ONG, só poderíamos louvar-lhe as agudas
observações —bem mais pertinentes do
que quando chamou de "egoístas" os que preferem animais de
estimação a filhos, sendo que os próprios padres não estão autorizados a
gerá-los.
Mas Francisco é também o líder da Igreja
Católica, o que significa que ele carrega 2.000 anos de bagagem. E, se há uma
instituição que, ao longo de sua história, abusou de cancelamentos e exceleu em
impor o pensamento único, é a Igreja Católica.
Não se trata aqui de aderir àquelas
correntes que abraçam o maniqueísmo histórico, segundo o qual a religião seria
sempre uma força do atraso que bloqueou o quanto pôde o avanço da ciência e a
liberalização dos costumes. A realidade é infinitamente mais complexa e
nuançada do que isso.
O ponto central é que, mesmo com abertura
para essas ponderações, não há como negar que a igreja esteja por trás de autos
da fé e muitas outras manifestações de intolerância. Queimar hereges é, por
qualquer ângulo, levar o cancelamento a seu estágio final.
Não é difícil, para quem abraça doses
moderadas de relativismo, conciliar as coisas. A igreja agiu dessa forma numa
época em que todos os poderosos o faziam.
Mas, para os que defendem que a moral é
absoluta, como os religiosos, não é tão simples. É complicado afirmar que
queimar pessoas vivas é um problema hoje, mas não era tanto no passado.
Tais considerações não têm o propósito de
silenciar o papa Francisco. Seria injusto responsabilizá-lo pelos atos de seus
correligionários pregressos. Mas, até para dar maior concretude a seu apelo por
contextualização histórica, ele poderia ter abordado alguns desses problemas em
seu discurso.
Seja como for, é alentador constatar que
temos hoje um papa muito mais
preocupado com os grandes desafios do presente do que com os dogmas do
passado.
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