O Globo, 16/01/2022
O maior adversário da cultura, em todos os
regimes que o homem conheceu em sua História, sempre foi o poder
O assunto da semana foi a série documental,
realizada por Renato Terra para a televisão, sobre Nara Leão. Conforme nossa
disposição, o título do programa já nos provoca uma reflexão indispensável
sobre o que fazer de nosso eventual silêncio: “O canto livre de Nara Leão”.
Se ela nos propunha um “canto livre”, só
podia ser porque havia de haver na sociedade em que vivíamos um espaço em que
não tínhamos liberdade para cantar o que desejávamos. Onde cantar o que
gostaríamos de cantar seria um projeto de rompimento com algum tipo de poder. E
o maior adversário da cultura, em todos os regimes que o homem conheceu em sua
História, sempre foi o poder. Uma cultura a serviço do poder, será sempre um
compromisso da imaginação com as garras da política, um acordo criminoso entre
a força da criação e o fortalecimento de quem manda.
O que as pessoas que andei ouvindo sentiram
foi, da parte de nossa geração, que viveu intensamente aqueles anos com o apoio
do que faziam seus ídolos, uma enorme saudade de um tempo em que as
manifestações culturais tinham um peso e evidente cobertura da sociedade, que
pensava pensar o país como nós fazíamos. Ou a partir do que poderíamos oferecer
como alternativa de ideal “politizado”.
E, por outro lado, a ignorância das novas gerações sobre um período que elas não viveram, mas do qual ouviram falar intensamente. Tenho a impressão de que, para esses, o que mais se destaca no consumo daquele documentário é a súbita descoberta de uma articulação fértil entre cultura e política. Como se essas duas manifestações humanas, independente da conciliação de políticos ou do oportunismo de artistas, acabassem por “dar uma alma ao Brasil”.
Independente do enorme talento e das
qualidades culturais de Nara Leão, todas as formas de criação musical às quais
ela aderiu ou que descobriu e revelou, estavam marcadas por uma espécie de selo
de qualidade que lhes foi concedido pela própria história da bossa nova, do
samba de morro, do protesto ou do tropicalismo, do que seja no panorama da
música popular brasileira de tantas colinas e esquinas das quais se manifestou.
O que tem que ser celebrado em Nara Leão e em alguns de seus colaboradores,
como Roberto Menescal, Isabel ou José, é sua coragem e brilho ao trazer à luz,
com tanta qualidade e delicadeza, esta história tantas vezes esquecida ou
subestimada pela falta de talento e pela ignorância do poder posto em primeiro
plano.
De 1964 em diante, a ditadura militar se
tornou uma evidência tão clara no Brasil da época, com todas as suas
barbaridades ou hipóteses de barbaridades, que era impossível ignorá-la. Era
impossível não se manifestar contra o regime, uma espécie de insulto intestinal
que o país sofria. Não havia quem tivesse a coragem de manifestar qualquer
apoio a uma iniciativa governamental, não havia quem apoiasse qualquer
iniciativa de um governo sem crédito junto à população. Qualquer gesto de
oposição era um gesto bem vindo, sobretudo se viesse pelas mãos ou pelas
palavras de pessoas sensatas, aquelas que sabiam esperar, ter paciência.
Hoje não é bem assim. Talvez porque o
regime autocrático conduzido por Jair Bolsonaro e seus cúmplices não seja tão
claro, talvez por ele não propor claramente piorá-lo. Ou por ele mentir até
sobre a natureza do regime que propõe presidir. Bolsonaro e, por consequência,
os bolsonaristas seguem mentindo sobre o que sonham fazer do Brasil. E o que
eles sonham é sempre um pesadelo.
É claro que os criadores de cultura devem atuar estrategicamente para sobreviver às armas de seus inimigos. Mas em nenhum caso essa estratégia poderá estar acima da criação. É isso o que faz Nara Leão ser livre e o que ela canta nos servir para sempre.
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