O Estado de S. Paulo.
Conduta de Bolsonaro prejudica o País e a
capacidade da sociedade brasileira de encontrar rumos presentes e futuros
Uma das características da liderança é a
capacidade de indicar rumos. Na especificidade do mundo da política, espera-se
de uma liderança qualificada que tenha antenas para perceber o sentido e o
movimento dos acontecimentos, o que sente e toca a população e, em função
destas percepções, tenha aptidão para engendrar os meios para dar um rumo à
sociedade. No desincumbir-se da gestão, uma liderança, à luz das circunstâncias
e da estratégia de sua personalidade, pode dar mais ou menos ênfase à inovação
e à transformação ou à preservação e à estabilização da sociedade. Usualmente,
uma liderança bem-sucedida sabe criativamente combinar as duas facetas, como é
caso, por exemplo, do presidente americano Franklin D. Roosevelt.
Numa democracia, é parte integrante da
responsabilidade, da liderança presidencial, não destruir e pelo menos
conservar e, se possível, ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre
seus rumos.
Decorridos três anos da gestão de Bolsonaro, o saldo do que encontrou e do que está deixando é francamente negativo, para valer-me da medida preconizada por Joaquim Nabuco em Balmaceda, para julgar o valor de um chefe de Estado. Ele nem conservou nem ampliou o controle do País sobre os seus caminhos em todas as esferas em que vem, direta ou indiretamente, atuando.
Para dar alguns exemplos muito
significativos de um negacionismo destrutivo, isso ocorre no campo da
manutenção das instituições democráticas, da tutela dos direitos humanos, do
capital diplomático da inserção do Brasil no mundo, dos compromissos da
preservação do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável, da saúde
pública, da cultura e da salvaguarda do seu patrimônio e da sua memória, da
pesquisa, do ensino, do papel da Universidade e começa a alcançar, com a
inflação e a carestia, a preservação do real, aumentando as inseguranças das
expectativas que afetam o desempenho da economia e a renda dos brasileiros.
Para este expressivo saldo negativo, muito
contribui o mandonismo da estratégia da personalidade do presidente,
constitutivamente integrado a um negacionismo que compromete sua capacidade de
gestão. É característica do seu negacionismo a recusa, alimentada pelo
conflitivo do espírito de facção, de fatos, evidências e argumentos. É plúmbea
a sua sensibilidade e opaca a intencionalidade de sua consciência em relação ao
que se passa no País. É o que se expressa na regularidade de suas toscas
manifestações, na constância que as acompanha o seu uso de fake news,
propaladas incessantemente pelas mídias sociais que manipula.
O papel da ciência, do conhecimento, da
pesquisa são ingredientes indispensáveis na elaboração e condução de políticas
públicas nas sociedades contemporâneas, que são sociedades de riscos
crescentes. Governar é saber escolher o que não está ao alcance de um agir
impelido por um mandonismo intransitivo e intransigente. Com efeito, hoje, a
gestão pública e privada exige o repertório de soluções que o acervo do
repertório da ciência e do conhecimento oferece para lidar com os múltiplos
problemas e desafios das sociedades. É o que caracteriza a experiência da maior
parte dos países, dos EUA à China, que hoje têm preponderância na vida
internacional. Para ficar com a prata da casa, é o conhecimento gerado pela
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que é a variável crítica
do sucesso do agronegócio brasileiro.
Duas áreas são paradigmáticas do
negacionismo do presidente, exibidas por pensamentos, palavras e obras em
relação à ciência e ao conhecimento: saúde e meio ambiente.
No que diz respeito à saúde pública e ao
enfrentamento da covid-19, o negacionismo é continuamente explicitado pela sua
postura em relação ao uso de máscaras, ao isolamento social, às vacinas, às
competências constitucionais dos Estados e municípios na matéria e o enorme
desprezo pela transparência das informações. Com isto, ameaça o direito à saúde
e amplia a vitimização da população brasileira.
O negacionismo em relação ao meio ambiente
se traduz no seu gosto pelo garimpo ilegal e o desmatamento predatório, pelo
seu empenho no desmanche dos órgãos governamentais incumbidos do monitoramento
e controle das atividades que afetam os ecossistemas, pelo seu descaso e
indiferença em relação às mudanças climáticas e suas consequências. Destarte,
não cumpre o seu dever de tutelar o direito de todos a um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, que é bem de uso comum do povo e essencial à sua
qualidade de vida, a ser preservado para as gerações presentes e futuras como
estipula a Constituição.
Estes são dois grandes paradigmas do
deletério de sua gestão e de sua conduta que prejudicam efetivamente a vida do
País e a capacidade da sociedade brasileira de encontrar rumos para o presente
e o futuro. Para quem acredita em Deus, vale a pena lembrar ao presidente o
ditado latino: Quos vult Deus perdere, prius dementat – A quem Deus quer
perder, primeiro tira o juízo.
*Professor emérito da Faculdade de Direito
da USP; ex-ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
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