Nova política de correção interrompe era de redução da desigualdade por meio do benefício
João Sorima Neto /Revista Época
O governo tem de escolher um lado entre o ajuste fiscal e a redução da desigualdade Para o brasileiro que se acostumou a ter ganho real no salário mínimo nos últimos 20 anos, há uma novidade amarga. O governo estabeleceu que o valor do mínimo de 2020 será reajustado apenas pela inflação. Na prática, acaba-se com uma fórmula de reajuste que garantia um ganho real — acima da inflação — lastreado no crescimento da economia. Com isso, o governo consegue uma folga nos gastos públicos, e a proposta está em linha com a ideia do ministro da Economia, Paulo Guedes, de desvinculação do Orçamento, mas se afasta da redução da desigualdade por meio do benefício.
Na semana passada, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), um compêndio com as prioridades financeiras do governo para o próximo ano, foi entregue ao Congresso, e estabeleceu-se que o mínimo será corrigido apenas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), como manda a Constituição. A estimativa é que o índice suba 4,2% neste ano, segundo o próprio governo. Se for confirmado esse percentual, o valor do mínimo subirá dos atuais R$ 998 para R$ 1.040, em março do ano que vem. Levando em conta a mesma estimativa de inflação, pela regra anterior, o mínimo chegaria a R$ 1.050.
“Num momento de crise fiscal, essa é uma economia importante. E é preciso levar em conta que o salário mínimo é a base para o reajuste automático de diversos benefícios, como a aposentadoria. Portanto, provoca um efeito cascata”, explicou o economista Fábio Klein, especialista em contas públicas da consultoria Tendências, lembrando que, a cada R$ 1 de aumento no salário mínimo, a despesa do governo aumenta em R$ 300 milhões. O impacto negativo para os cofres públicos seria de R$ 3 bilhões a mais, além do rombo de R$ 124 bilhões já previsto para o Orçamento em 2020.
A fórmula que garantia ganho real ao salário mínimo vigorou até janeiro passado. Os governos anteriores utilizaram o salário mínimo como um instrumento de aumento de renda e redução de desigualdade social no país. Na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), depois da adoção do Plano Real, responsável por derrrubar a inflação que corroía o poder de compra dos brasileiros, houve aumento real, ainda que não houvesse um mecanismo de reajuste automático. Foi o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quem criou a fórmula da correção pela inflação, mais a variação do PIB dos dois anos anteriores. E a presidente Dilma Rousseff transformou a regra em lei. Bolsonaro interrompeu essa sequência para 2020, mas segundo o governo isso não significa a definição de uma nova política salarial.
“Temos apenas valores referenciais. Em termos de definição para uma política salarial, o governo tem até dezembro deste ano para enviá-la ao Congresso. Agora não há a definição de uma lei de política para o salário mínimo”, garantiu o secretário de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues Junior, logo após a entrega da LDO ao Congresso. Os especialistas acreditam que, antes de definir uma nova política salarial com algum tipo de aumento real, o governo precisa esperar a aprovação da reforma da Previdência. Se ela for muito desidratada pelo Congresso, e a economia para os cofres públicos ficar muito abaixo do R$ 1 trilhão defendido pelo ministro Paulo Guedes, a chance de um aumento real mais generoso diminui — ou desaparece. Mas, se a reforma da Previdência trouxer um alívio mais robusto aos gastos, então pode-se voltar a pensar em aumento real do mínimo — especialmente se Bolsonaro tentar a reeleição.
Um cálculo feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), uma entidade criada e mantida pelo movimento sindical brasileiro, mostra que o mínimo teve um aumento real de 74,33% entre os anos de 2004 e 2018. Sem essa fatia de ganho, o valor estaria hoje em R$ 573.
“Cerca de 48 milhões de pessoas têm o rendimento atrelado ao salário mínimo, contando trabalhadores formais, entre eles empregados domésticos e assalariados, além dos aposentados, trabalhadores por conta própria. Como não há espaço para poupança, todo o aumento real vai para o consumo, o que acaba girando a economia. Além disso, os impostos recolhidos sobre consumo aumentam, o que melhora a situação da União, mas também de pequenos municípios que precisam de mais dinheiro para investir”, justificou o economista Ilmar Ferreira Silva, do Dieese.
Mesmo que não seja uma política salarial definitiva, a sinalização de cortar o ganho real dada pelo governo Bolsonaro, na avaliação do Dieese, é negativa. Primeiro porque tira a previsibilidade que a fórmula de reajuste do mínimo havia estabelecido. Segundo, porque, para uma economia que precisa voltar a crescer de forma urgente e gerar empregos, trata-se de mais uma trava para a decolagem do PIB. Ilmar Silva lembrou que em 2017 e 2018 o salário mínimo já havia sido reajustado apenas pela inflação, porque em 2015 e 2016 o PIB encolheu.
A definição de uma política para o salário mínimo é uma decisão sobre o patamar de pobreza que o país terá, disse a professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), Marta Arretche. Ela lembra que, nos anos recentes de crise, a renda dos 10% da população mais pobre do país caiu pela metade.
“Na crise econômica, o salário mínimo corrigido e o Bolsa Família evitaram que mais famílias entrassem na pobreza, dada a devastação do mercado de trabalho. O ganho real do mínimo nos últimos 20 anos produziu a redução de desigualdade e foi um colchão de amortecimento na crise”, analisou a professora.
Nos anos 90, havia uma busca por um salário mínimo equivalente a US$ 100. Hoje, o valor corresponde a pouco mais de US$ 250 e, mesmo assim, o salário mínimo está muito aquém de atender às necessidades básicas de uma família de quatro pessoas com habitação, saúde e alimentação, segundo cálculo do Dieese. Os técnicos do órgão apontam que o mínimo ideal seria de R$ 4.200.
Se o aumento real do mínimo ajudou a turbinar o consumo, ele também provocou um efeito colateral, explicou o economista da consultoria Tendências, Fábio Klein. Com ganho real contínuo, o salário mínimo se aproximou do ganho médio dos trabalhadores brasileiros, de cerca de R$ 1.300. Isso fez aumentar o custo da mão de obra, especialmente a de baixa qualificação, mas a produtividade da economia não foi na mesma direção. Esse é um mecanismo ineficiente, disse Klein.
“O ganho real do mínimo está acima do ganho real de produtividade da economia, o que torna mais cara a produção no Brasil. O trabalho é um dos insumos mais caros. Isso limita o crescimento da oferta de produtos e pode ter impacto na inflação”, explicou o economista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário